Nós
nos estruturamos com um “eu” como centro de nós mesmos. E no entorno deste
centramento o mundo gira. Na superfície de nossa consciência centrada no “eu”, desperta
a determinação: “amarás a ti mesmo”.
Este mandamento inflacionado implica: antes a tua existência, antes a
tua vida, antes você. Pense em você, faça para você e por você. Assim, na
superfície de nossa consciência, a centralidade do “Eu” pode desdobrar-se em
egoísmo. E, então, nada que não nos seja vantajoso, útil e necessário; nada que
não seja para nosso gozo inflado nos move ou co-move. Aqui o afeto se enlaça à
necessidade e à utilidade e atraímos as pessoas para usufruirmo-nos, retirar
delas o nosso gozo. Se somos todos
estruturados assim, então tudo é simulação nossa e do outro para atingir nosso
escopo: o gozo de si mesmo. Se na periferia de nosso centramento não há outra
força que nos mova a não ser a lei do amor a si mesmo, por essa lei vivemos. Amar,
nesta perspectiva é saciar nossas necessidades e desejos inflacionados,
desregulados. Insaciáveis vivemos para nos saciar.
Mas
estamos aqui na superfície de nossa consciência. Aprofundando-nos na estrutura
de nosso “Eu” percebemos que ele é um “Eu” construído socialmente, que ele se
estabelece em redes de relações intercambiáveis, variáveis e mutáveis: ora
hostis, ora amistosas, ora agradáveis, ora desagradáveis. São estas
experiências que, internalizadas nos estruturam em profundidade. Aqui
percebemos que não somos apenas frustrações reprimidas, somos também
potencialidades criativas. Saindo da superfície de nosso “Eu” compreendemos que não somos apenas um centramento narcísico.
Somos, sobretudo, empáticos. Nos inclinamos a um outro.
Não abandonamos o mandamento: “ama-te a ti mesmo”. Compreendemos que não
temos consciência de nós próprios senão temos percepção do outro; não
saberíamos o que é este “ti mesmo” sem confrontarmo-nos com o outro.
Na
superfície de nossa personalidade não há motivo para amar o outro. Mas também
não chegamos a nos amar. Não podemos amar o que não conhecemos. Se amo um “eu”
dissociado das redes de relações que o constitui, amo um espectro. Na
superfície de nossa estrutura vemos apenas um fantasma, uma vaga imagem em que podemos
nos perder. É no reconhecimento de outros centros egóicos que nos desafiam a
cada instante, e, sobretudo, nos cativam a cada instante, que vamos
configurando mais nitidamente o nosso verdadeiro “Eu”. De inseguros, ameaçados,
confusos, resistentes, passamos a amantes de um que não é nós mesmos. Assim, compreendendo
nós mesmos como seres centrados e inter-relacionados, damo-nos conta que amar a
nós próprios requer sermos amados não por nós mesmos. E requer que amemos não
só a nós mesmos. Sem amigos, não nos amamos suficientemente bem. Assim, para
amar-nos como convém temos que nos apoiar no amor de outros. Aqui enraíza-se um
segundo mandamento: “Amas o teu próximo como amas a ti mesmo”.
Tal
mandamento não nos pede que desloquemos o amor por nós mesmos ao outro. Não diz
que devemos deixar de nos amar, mas que só sabemos se nos amamos amando o que
nos faz sabermos de nós. Amando o
próximo descobrimos que a maior e mais profunda das satisfações que podemos obter
em nossa existência é a livre, espontânea e grata possibilidade de escolhermos
com quem compartilhar nossa presença. De tal modo, o amor ao próximo se destaca
na realização de quem amamos como seres livres, espontâneos e gratos de nossa
companhia... É na plena realização de quem amamos que percebemos nos amar. “Se posso dizer a outrem: “Eu te amo”, devo
ser capaz de dizer: “Amo em ti a todos, através de ti amo o mundo, amo-me a mim
mesmo em ti.”” (Erich Fromm, A arte de Amar. Belo Horizonte: Itatiaia. 1966: p.
56).
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