sexta-feira, maio 29, 2020

AINDA SOBRE O AMOR



Amar é dar o que não se tem a quem não pediu (Lacan)

Nós nos estruturamos com um “eu” como centro de nós mesmos. E no entorno deste centramento o mundo gira. Na superfície de nossa consciência centrada no “eu”, desperta a determinação: “amarás a ti mesmo”.  Este mandamento inflacionado implica: antes a tua existência, antes a tua vida, antes você. Pense em você, faça para você e por você. Assim, na superfície de nossa consciência, a centralidade do “Eu” pode desdobrar-se em egoísmo. E, então, nada que não nos seja vantajoso, útil e necessário; nada que não seja para nosso gozo inflado nos move ou co-move. Aqui o afeto se enlaça à necessidade e à utilidade e atraímos as pessoas para usufruirmo-nos, retirar delas o nosso gozo.  Se somos todos estruturados assim, então tudo é simulação nossa e do outro para atingir nosso escopo: o gozo de si mesmo. Se na periferia de nosso centramento não há outra força que nos mova a não ser a lei do amor a si mesmo, por essa lei vivemos. Amar, nesta perspectiva é saciar nossas necessidades e desejos inflacionados, desregulados. Insaciáveis vivemos para nos saciar.

Mas estamos aqui na superfície de nossa consciência. Aprofundando-nos na estrutura de nosso “Eu” percebemos que ele é um “Eu” construído socialmente, que ele se estabelece em redes de relações intercambiáveis, variáveis e mutáveis: ora hostis, ora amistosas, ora agradáveis, ora desagradáveis. São estas experiências que, internalizadas nos estruturam em profundidade. Aqui percebemos que não somos apenas frustrações reprimidas, somos também potencialidades criativas. Saindo da superfície de nosso “Eu” compreendemos  que não somos apenas um centramento narcísico. Somos, sobretudo, empáticos. Nos inclinamos a  um outro.  Não abandonamos o mandamento: “ama-te a ti mesmo”. Compreendemos que não temos consciência de nós próprios senão temos percepção do outro; não saberíamos o que é este “ti mesmo” sem confrontarmo-nos com o outro.

Na superfície de nossa personalidade não há motivo para amar o outro. Mas também não chegamos a nos amar. Não podemos amar o que não conhecemos. Se amo um “eu” dissociado das redes de relações que o constitui, amo um espectro. Na superfície de nossa estrutura vemos apenas um fantasma, uma vaga imagem em que podemos nos perder. É no reconhecimento de outros centros egóicos que nos desafiam a cada instante, e, sobretudo, nos cativam a cada instante, que vamos configurando mais nitidamente o nosso verdadeiro “Eu”. De inseguros, ameaçados, confusos, resistentes, passamos a amantes de um que não é nós mesmos. Assim, compreendendo nós mesmos como seres centrados e inter-relacionados, damo-nos conta que amar a nós próprios requer sermos amados não por nós mesmos. E requer que amemos não só a nós mesmos. Sem amigos, não nos amamos suficientemente bem. Assim, para amar-nos como convém temos que nos apoiar no amor de outros. Aqui enraíza-se um segundo mandamento: “Amas o teu próximo como amas a ti mesmo”.

Tal mandamento não nos pede que desloquemos o amor por nós mesmos ao outro. Não diz que devemos deixar de nos amar, mas que só sabemos se nos amamos amando o que nos faz sabermos de nós.  Amando o próximo descobrimos que a maior e mais profunda das satisfações que podemos obter em nossa existência é a livre, espontânea e grata possibilidade de escolhermos com quem compartilhar nossa presença. De tal modo, o amor ao próximo se destaca na realização de quem amamos como seres livres, espontâneos e gratos de nossa companhia... É na plena realização de quem amamos que percebemos nos amar.  “Se posso dizer a outrem: “Eu te amo”, devo ser capaz de dizer: “Amo em ti a todos, através de ti amo o mundo, amo-me a mim mesmo em ti.”” (Erich Fromm, A arte de Amar. Belo Horizonte: Itatiaia. 1966: p. 56).


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