“Uma
experiência particular não obtusa quem visa o Universal”
Rodner
Lúcio
A superiora Irmã do Carmo
chegou na semana do dia das mães, substituiria irmã Augusta na direção do
orfanato. E às vésperas da celebração, funcionários, voluntários, a irmandade
das Irmãs de Maria Mãe dos Órfãos, todos, empenhavam-se em decolar os espaços
do orfanato com temas maternos.
Na sala de artes, em meio a
cola, tintas, pincéis, fitilhos..., Irmã Eustácia produzia, com os órfãos,
pequenos mimos que seriam entregues às “mães voluntárias”, um grupo de senhoras
que assistiam as obras de caridade da Irmandade, durante a missa do domingo.
No fundo da sala, um menino
carrancudo se ocupava em despregar os enfeites que as voluntárias colocavam.
Sua vontade era destruir aqueles mimos de Irmã Eustácia. “Deixa ela dar
bobeira!”, pensava.
“E aquele?”, perguntou Irmã
do Carmo apontando-o.
“É o Rodner!”, disse irmã
Eustácia. “É sempre assim. Todo ano, toda festa, sempre mau humorado. Tem que
estar de olho nele, senão ele estraga tudo...”
“Faz tempo que está
conosco?” Perguntou Irmã do Carmo.
“Chegou com poucos meses.
Irmã Dorita o acolheu da roda”
“Aqui todos são ‘filhos da
roda’?”, perguntou Irmã do Carmo.
“São sim!” respondeu irmã
Eustácia, com desapontamento.
“Então tiveram mais sorte
que eu!”, disse Irmã do Carmo.
Gestos maquinais de cortes, recortes,
cola, pinta amarra dependura, alarido de conversas amenas, suspenderam-se. Olhares
inquietos, interrogativos pousaram sobre as palavras de Irmã do Carmo.
Rodner, o carrancudo, foi
quem indagou: “que sorte há em ser abandonado, em não saber quem são seus pais,
se é amado por quem deveria te amar?”
“A sorte meu caro”, começou
Irmã do Carmo, “a sorte de quem não sabe se é amado por quem deveria amá-lo é maior
que a sorte de quem sabe por que não é amada por quem deveria amá-la. É maior ainda
que a sorte de quem sabe ser odiada por quem deveria ama-la”.
E continuou Irmã do Carmo:
Não saber-se amado, não
significa ser odiado. Pois, por muitos e diversos motivos cada um de nós
chegamos aqui, neste orfanato, através da “roda”. Os poucos dias de vida ou
meses, não nos permitem muitas certezas. Não sabemos se éramos amados ou não. Mas
uma coisa é certa e eu aprendi: por amor, uma mãe é capaz de abandonar o filho.
Querer que o filho viva, querer-lhe o bem, e saber que só poderá oferecer-lhe
sofrimento, leva muitas mães a abandonarem os filhos... Então, não saber o
motivo de estarmos aqui nos deixa aberta a hipótese do amor. Isto já é uma
tremenda sorte. Depois não sabermos se fomos amados, não nos impede de sabermos
se estamos sendo amados, e é isto que importa: estamos sendo amados?
Mas aproveito esta conversa
franca para dizer a vocês de algo mais grave. Mais grave que não saber se foi
amado é saber que se é odiado, e odiado por quem deveria amar-nos.
Eu não cheguei ao orfanato
com poucos dias ou meses de vida, cheguei aos oito anos. E quando fui
abandonada por minha mãe na porta das Irmãs da Irmandade, ela disse-me, em
minha cara: “Eu te odeio desde o dia que te pari, você só atrasou minha vida,
meus sonhos e só me trouxe tormentos. Não sei por que não te abortei, não te
matei no primeiro momento. Vai, some de minha vista, desapareça!”. E minha mãe
desapareceu no meio da multidão.
Foi mesmo assim, num fim de
tarde de sábado chuvoso e frio. De quem eu tudo esperava ecoou dentro de mim: “eu
te odeio”
Tinha apenas oito anos e uma
boneca de pano sem um olho e um braço...Pela graça de Deus deparei-me com a
porta da Irmandade. Uma noviça me acolheu.
Levei uma vida a me
castigar, maltratando-me, culpando-me pelo ódio de minha mãe, eu tinha
arruinado a sua e a minha vida. E mesmo já irmã, odiava-me, não achava-me
amada, não achava motivos para ser amada. Uma irmã que não ama, meus queridos,
uma irmã que não ama é o capeta. E eu fui, por muito tempo o diabo de vestes. Por
onde andava provocava estragos.
Certa feita, no meu canto, isolada, solitária,
amarga, ouvi uma conversa: “Ela vai nos arruinar, ela vai nos por abaixo...,
não há quem goste dela, nem ela...” dizia uma das vozes. Então a outra
retrucou: “Então, irmã, é este o nosso esforço: amá-la por ela, se ela mesma
não se ama, nós a amaremos por ela”. Mas a outra voz insistiu: “Mas irmã, um
que não sabe o que é ser amado, sendo amado, não saberá que é; ela nos colocará
abaixo. Ou a mandamos embora, ou será nossa ruína!” “Ela indo, vou junto, não a
abandonarei”; ouvi de uma terceira voz.
Eu tinha plena certeza de
que falavam de mim. E durante dias vivi a expectativa de ser desligada da Irmandade.
Uma inquietação tomava-me tempo e angustiava-me: procurava saber quem dentre as
irmãs estava disposta a ficar a meu lado. A voz não me era desconhecida, mas
por mais que me esforçasse não me ocorria lembrar qual irmã abandonaria tudo
por mim.
Um dia, na ocupação de
deslindar esta procura, caiu-me em mãos a obediência. Eu devia fazer as malas,
seria transferida para a Casa Maria Mãe dos Homens. Era o orfanato onde eu
vivera.
Quando a porta abriu,
recebeu-me irmã Colatina: Ben tornata figliola (Bem vinda filhinha)”. Fora irmã
Colatina aquela noviça que me recebera naquela fatídica tarde de meu abandono.
Vendo-a braços abertos,
sorriso franco, confiante chamar-me figliola, descobri a voz que eu procurava
desvendar. Recordei-me, então, de algo que ela me dissera quando eu ainda era uma
meninota carrancuda desfazendo-se de tudo que lembrasse festa: “Sabe, dizia-me
irmã Colatina, na vida devemos aprender tudo. Devemos, sobretudo, aprender a
fazer escolhas. Ocupar-nos por saber porquê não fomos amados é uma empresa
impossível, muitos podem ter sido os motivos, pode até mesmo não ter havido um.
O importante não é sabermos porque não
fomos amados, o importante é sabermos se estamos sendo amados. É com o que
estamos sendo que fazemos nossas melhores e nossas piores escolhas. O passado
nos deixam pedras, com pedras construímos túmulos, muros, estradas, castelos e
armas. As pedras ai estão, o que vamos construir: nós decidimos.”
O fato, queridos que naquele
reencontro com Irmã Colatina, o conforto de seu abraço, o calor carinhoso de
sua voz, o sorriso materno me acolhendo ressoou em mim a voz que eu ouvira: “Eu
não a abandonarei!”
Nunca mais preocupei-me em
saber porque minha mãe me adiara. Passei a ocupar-me com quem me amava e a
corresponder a aquele amor que me acolhia e me abria os braços.
Termino, queridos, esta
falação toda com uma pergunta: “Quando procuramos uma moeda perdida, somos nós
que a encontramos ou é ela que se deixa achar, melhor, que nos encontra?
Nós nem sempre sabemos se fomos amados, mas
se procurarmos amar,o amor nos encontrará...
No mesmo dia que minha mãe
me abandonou, irmã Colatina me acolheu. Assim é a celebração do dia das mães,
celebração que odiei durante muito tempo na minha vida. No dia das mães não
celebramos uma figura particular. Alias nenhuma celebração é de algo
particular, nenhuma mãe é perfeita, nenhuma mães e parece com as mães que vemos
nas propagandas. No dia das mães celebramos um amor sem medidas, e por não ter
medidas não cabe em ninguém em particular. Saber se fomos amados é menos
importe que saber se queremos amar. E é apenas querendo amar mais que ter sido
amado é que descobrimos que mãe é quem nos acolhe e não nos abandona, mesmo que
não nos ponha no mundo.
*****
Contou-me esta história Rodner
Lúcio. Caminhávamos ao logo do Tevere, em Roma. Era um domingo de maio, o
segundo. Andávamos à Irmandade de Maria Mãe dos Órfãos. Rodner Lúcio portava
consigo uma boneca de pano que ele havia confeccionado.
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