domingo, maio 10, 2020

MÃE IRMÃ DO CARMO


“Uma experiência particular não obtusa quem visa o Universal”
Rodner Lúcio

A superiora Irmã do Carmo chegou na semana do dia das mães, substituiria irmã Augusta na direção do orfanato. E às vésperas da celebração, funcionários, voluntários, a irmandade das Irmãs de Maria Mãe dos Órfãos, todos, empenhavam-se em decolar os espaços do orfanato com temas maternos.
Na sala de artes, em meio a cola, tintas, pincéis, fitilhos..., Irmã Eustácia produzia, com os órfãos, pequenos mimos que seriam entregues às “mães voluntárias”, um grupo de senhoras que assistiam as obras de caridade da Irmandade, durante a missa do domingo.
No fundo da sala, um menino carrancudo se ocupava em despregar os enfeites que as voluntárias colocavam. Sua vontade era destruir aqueles mimos de Irmã Eustácia. “Deixa ela dar bobeira!”, pensava.
“E aquele?”, perguntou Irmã do Carmo apontando-o.
“É o Rodner!”, disse irmã Eustácia. “É sempre assim. Todo ano, toda festa, sempre mau humorado. Tem que estar de olho nele, senão ele estraga tudo...”
“Faz tempo que está conosco?” Perguntou Irmã do Carmo.
“Chegou com poucos meses. Irmã Dorita o acolheu da roda”
“Aqui todos são ‘filhos da roda’?”, perguntou Irmã do Carmo.
“São sim!” respondeu irmã Eustácia, com desapontamento.
“Então tiveram mais sorte que eu!”, disse Irmã do Carmo.
Gestos maquinais de cortes, recortes, cola, pinta amarra dependura, alarido de conversas amenas, suspenderam-se. Olhares inquietos, interrogativos pousaram sobre as palavras de Irmã do Carmo.
Rodner, o carrancudo, foi quem indagou: “que sorte há em ser abandonado, em não saber quem são seus pais, se é amado por quem deveria te amar?”
“A sorte meu caro”, começou Irmã do Carmo, “a sorte de quem não sabe se é amado por quem deveria amá-lo é maior que a sorte de quem sabe por que não é amada por quem deveria amá-la. É maior ainda que a sorte de quem sabe ser odiada por quem deveria ama-la”.
E continuou Irmã do Carmo:
Não saber-se amado, não significa ser odiado. Pois, por muitos e diversos motivos cada um de nós chegamos aqui, neste orfanato, através da “roda”. Os poucos dias de vida ou meses, não nos permitem muitas certezas. Não sabemos se éramos amados ou não. Mas uma coisa é certa e eu aprendi: por amor, uma mãe é capaz de abandonar o filho. Querer que o filho viva, querer-lhe o bem, e saber que só poderá oferecer-lhe sofrimento, leva muitas mães a abandonarem os filhos... Então, não saber o motivo de estarmos aqui nos deixa aberta a hipótese do amor. Isto já é uma tremenda sorte. Depois não sabermos se fomos amados, não nos impede de sabermos se estamos sendo amados, e é isto que importa: estamos sendo amados?
Mas aproveito esta conversa franca para dizer a vocês de algo mais grave. Mais grave que não saber se foi amado é saber que se é odiado, e odiado por quem deveria amar-nos.
Eu não cheguei ao orfanato com poucos dias ou meses de vida, cheguei aos oito anos. E quando fui abandonada por minha mãe na porta das Irmãs da Irmandade, ela disse-me, em minha cara: “Eu te odeio desde o dia que te pari, você só atrasou minha vida, meus sonhos e só me trouxe tormentos. Não sei por que não te abortei, não te matei no primeiro momento. Vai, some de minha vista, desapareça!”. E minha mãe desapareceu no meio da multidão.
Foi mesmo assim, num fim de tarde de sábado chuvoso e frio. De quem eu tudo esperava ecoou dentro de mim: “eu te odeio”
Tinha apenas oito anos e uma boneca de pano sem um olho e um braço...Pela graça de Deus deparei-me com a porta da Irmandade. Uma noviça me acolheu.
Levei uma vida a me castigar, maltratando-me, culpando-me pelo ódio de minha mãe, eu tinha arruinado a sua e a minha vida. E mesmo já irmã, odiava-me, não achava-me amada, não achava motivos para ser amada. Uma irmã que não ama, meus queridos, uma irmã que não ama é o capeta. E eu fui, por muito tempo o diabo de vestes. Por onde andava provocava estragos.
Certa feita, no meu canto, isolada, solitária, amarga, ouvi uma conversa: “Ela vai nos arruinar, ela vai nos por abaixo..., não há quem goste dela, nem ela...” dizia uma das vozes. Então a outra retrucou: “Então, irmã, é este o nosso esforço: amá-la por ela, se ela mesma não se ama, nós a amaremos por ela”. Mas a outra voz insistiu: “Mas irmã, um que não sabe o que é ser amado, sendo amado, não saberá que é; ela nos colocará abaixo. Ou a mandamos embora, ou será nossa ruína!” “Ela indo, vou junto, não a abandonarei”; ouvi de uma terceira voz.
Eu tinha plena certeza de que falavam de mim. E durante dias vivi a expectativa de ser desligada da Irmandade. Uma inquietação tomava-me tempo e angustiava-me: procurava saber quem dentre as irmãs estava disposta a ficar a meu lado. A voz não me era desconhecida, mas por mais que me esforçasse não me ocorria lembrar qual irmã abandonaria tudo por mim.
Um dia, na ocupação de deslindar esta procura, caiu-me em mãos a obediência. Eu devia fazer as malas, seria transferida para a Casa Maria Mãe dos Homens. Era o orfanato onde eu vivera.
Quando a porta abriu, recebeu-me irmã Colatina: Ben tornata figliola (Bem vinda filhinha)”. Fora irmã Colatina aquela noviça que me recebera naquela fatídica tarde de meu abandono.
Vendo-a braços abertos, sorriso franco, confiante chamar-me figliola, descobri a voz que eu procurava desvendar. Recordei-me, então, de algo que ela me dissera quando eu ainda era uma meninota carrancuda desfazendo-se de tudo que lembrasse festa: “Sabe, dizia-me irmã Colatina, na vida devemos aprender tudo. Devemos, sobretudo, aprender a fazer escolhas. Ocupar-nos por saber porquê não fomos amados é uma empresa impossível, muitos podem ter sido os motivos, pode até mesmo não ter havido um.  O importante não é sabermos porque não fomos amados, o importante é sabermos se estamos sendo amados. É com o que estamos sendo que fazemos nossas melhores e nossas piores escolhas. O passado nos deixam pedras, com pedras construímos túmulos, muros, estradas, castelos e armas. As pedras ai estão, o que vamos construir: nós decidimos.”
O fato, queridos que naquele reencontro com Irmã Colatina, o conforto de seu abraço, o calor carinhoso de sua voz, o sorriso materno me acolhendo ressoou em mim a voz que eu ouvira: “Eu não a abandonarei!”
Nunca mais preocupei-me em saber porque minha mãe me adiara. Passei a ocupar-me com quem me amava e a corresponder a aquele amor que me acolhia e me abria os braços.
Termino, queridos, esta falação toda com uma pergunta: “Quando procuramos uma moeda perdida, somos nós que a encontramos ou é ela que se deixa achar, melhor, que nos encontra?
Nós nem sempre sabemos se fomos amados, mas se procurarmos amar,o amor nos encontrará...
No mesmo dia que minha mãe me abandonou, irmã Colatina me acolheu. Assim é a celebração do dia das mães, celebração que odiei durante muito tempo na minha vida. No dia das mães não celebramos uma figura particular. Alias nenhuma celebração é de algo particular, nenhuma mãe é perfeita, nenhuma mães e parece com as mães que vemos nas propagandas. No dia das mães celebramos um amor sem medidas, e por não ter medidas não cabe em ninguém em particular. Saber se fomos amados é menos importe que saber se queremos amar. E é apenas querendo amar mais que ter sido amado é que descobrimos que mãe é quem nos acolhe e não nos abandona, mesmo que não nos ponha no mundo.


*****

Contou-me esta história Rodner Lúcio. Caminhávamos ao logo do Tevere, em Roma. Era um domingo de maio, o segundo. Andávamos à Irmandade de Maria Mãe dos Órfãos. Rodner Lúcio portava consigo uma boneca de pano que ele havia confeccionado.

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