sexta-feira, junho 28, 2019

PERFUME CHEIRA, MAS NÃO LIMPA SUJEIRA.



  
“Tem certas marmotisses”, dizia tia, “que apenas confirmam aquilo que se pretende negar”. E contava tia: “veja seu nhô Nicodemos, vive pra baixo e pra riba com jornal debaixo do braço, pra provar que não é analfabeto, mas pede pra ele lê as noticias, pede: “esqueci meus óculos na venda”, é o que vai responder. O prefeito é outro, sempre rodeado de mulheres, quando todo mundo sabe que ele, de fato, é invertido” (eu não sabia o que tia queria dizer com invertido, e tia não era de dar explicações). “Quem muito mostra, atrai interesse para aquilo que esconde”, dizia tia. “Coronel faz uma festa que só pra sinhá Rosalva, inté seresta o diacho faz, mas ensaia sinhá Rosalva botar o nariz na porta ou espichar um tantinho o olhar à janela, é sova que sobra”.  “E com Justino, na venda, abraça, paga cachaça, “esse negro é homem bom, tem alma de branco!”, como se tivesse prezando, e leva Justino pra todo o canto em campanha. Com os seus, porém, “não confie nessa gente, nenhum presta”. Tia não me dizia essas coisas, eu que espichava orelha pra suas conversas com vó. “Fia, quem muito perfume usa, isquece que perfume cheira, mas num limpa sujeira”, dizia vó. Sempre que vejo imagens do Néscio com o Dep. Hélio Bolsonaro a tiracolo, eu fico pensando nas conversas de tia e vó. Eram mulheres sabias.

quarta-feira, junho 12, 2019

O CASO CARLUXO



Embora pavio curto e grosseiro, Flavio Eduardo Carluzzo não era de ir às vias de fato. Elevava a voz, gesticulava apontando o dedo, cerrando o punho, dizia impropérios, parco de argumentos era como se impunha. Quando presente, as pessoas, então, evitavam assuntos polêmicos, sobretudo, questões de gênero. Carluxo, como os amigos o chamavam, tinha posições extremadas: “queimaria todos esses comunistas de merda na fogueira!” Aconteceu que a companheira de Carluxo, dado dia, desapareceu. Investigado, Carluxo foi indiciado e formalmente acusado da morte da companheira. A procuradoria, na peça acusatória, mesmo alegando não ter encontrado o corpo da vítima, afirmava que ela havia sido executada a golpes de faca. E fundamentou sua convicção no perfil grosseiro e agressivo do réu, e na ausência de uma faca num jogo de facas suíças que o réu ostentava em sua cozinha. Para a promotoria, a faca faltante teria sido ocultada junto com ao corpo da companheira desaparecida. À falta de provas, o promotor arengou que a prova “do maior crime, jamais cometido na história da humanidade”, era justamente o fato não ter prova alguma, “a prova cabal das convicções da promotoria”. Assim, “não haver provas confirmam nossa tese de que o réu é o maior criminoso de todos os tempos!”, concluiu o promotor contra Carluxo. Para convencer o júri de suas teses, a promotoria até montou um elaborado PowerPoint, apresentando situações conflituosas em que o réu se envolvera desde a mais tenra idade. Mas o apelo maior da promotoria foi à comoção que o caso havia suscitado na comunidade. Durante meses, a mídia havia alimentado tal comoção. Diuturnamente se reprisava imagens de Carluxo e seus gestos grosseiros, seus posicionamentos extremados, sua parca razoabilidade; narrava a simpatia, a generosidade, a ingenuidade da companheira. “A comunidade exigia o sentenciamento de Carluxo”, apelava o promotor, reforçado por comentadores de noticiário (jornalismo é algo que falta em Bananópolis). Para a comemoração de muitos, Flavio Eduardo Carluzzo, foi sentenciado após seis meses do desaparecimento da companheira. A celeridade do processo foi louvada e atribuída, em laudadas tintas de jornais, à competência e firmeza de caráter do juiz do processo. O fato é que recentemente a desaparecida companheira de Carluxo apareceu. Conta-se que, enfastiada com nossos ares, a nobre dama andava pela Europa, fazendo compras; aproveitou para levar a faca para um ajuste numa oficina especialidade na Suíça. Mas, pasmem! Caros leitores, nossa desaparecida foi vista, nada mais, nada menos, que sendo cortejada pelo eficiente e impoluto juiz que presidiu o júri de seu suposto assassinato. Questionado, o honrado guardião da lei afirmou não vê motivo para suspeição ou constrangimento, “visto que só nos conhecemos após a conclusão do referido processo.” Há comentários, porém, de que o cúpido dessa relação não seria outro que o promotor do caso Carluxo. A comunidade está chocada, mas há quem escuse o relacionamento de nossos pombinhos. “Carluxo, pelo perfil que tem”, dizem “tem que estar preso.” Bananópolis tem este tipo de gente, geralmente se dizem cidadãos de bem e torcem para que o Varão de Bananópolis, como é conhecido nosso juiz, assuma nossa desaparecida.

segunda-feira, junho 10, 2019

TAL UM CORINTHIANS X PALMEIRAS


Expliquei a situação a meu vizinho nos seguintes termos:

 

Houve uma final importantíssima entre dois grandes clubes, um clássico tipo Corinthians x Palmeiras. Jogo duro, pegado, tenso até o último minuto. E, de fato, aos 45 minutos tudo indicava que o jogo iria para os pênaltis. Era o último contra-ataque de uma das esquadras, e o centroavante recebeu a bola limpinha, limpinha, era amaciar a pelota, avançar alguns passos e finalizar. O tipo atrapalhou-se todo, tropeçou na bola, despencou no gramado.  Para a surpresa, a estupefação de uns e a contrariedade de outros, o juiz correu para a marca do pênalti. O resultado foi 1X0. Durante dias, meses, se comentou o caso, se viu e se reviu o lance. Todos estavam de acordo: não fora pênalti: o jogador estava só no lance, talvez até impedido, seu tropeço não chegara a ser propriamente dentro da área, fora muito próximo da linha, mas não propriamente dentro da linha. Para a torcida da equipe vencedora, na alegria irracional, importou o resultado. Diziam que a torcida adversária estava era de mimimi. Havia a justificativa confortadora de que a esquadra que perdera, costumava usar dos mesmos artifícios. O fato é que meses passados, o juiz da partida assumiu função de conselheiro no time vencedor. Poucos ousaram questionar a eticidade e a moralidade da situação. Agora, descobriu-se que, dias antes da partida, o juiz e o tal jogador que se arribou por terra haviam entabulado uma conversa por telefone em que o juiz orienta o jogador: “se cair na área é pênalti, já está tudo combinado com os auxiliares de linha”.  Explicado nestes termos, fui obrigado a ser claro com meu vizinho: “o seu não entendimento da situação não é ignorância não, é mau-caratismo mesmo!”


domingo, junho 09, 2019

BOLINHOS DE CHUVA



Quando nós nos machucávamos, vó lavava a ferida com sabão de coco e depois jogava sobre a ferida uns inguentos de folhas. Era um processo dolorido. Tia que a auxiliava no ofício ficava sugerindo-nos: “sopra fio, sopra que passa!” Vó ralhava: “Sopra nada! Seja homi, seja muié! A dor ensina, da próxima veis brinca sem se machucar!”” Assim evitávamos nos machucar porque sabíamos que o tratamento seria dolorido.  O momento que atravessamos é de uma grande ferida que precisa ser purgada metendo o dedo nas feridas que atravancam nossa passagem à civilidade. Em torno da ferida que se instalou, falo deste governo, temas por muito tempo soprado, mostram sem pudor sua face mais dolorida: mandonismo, sexismo, machismo, racismo, intolerância, ódio ao povo, desfiram ante nossos olhos suas bandeiras em dia de domingo. Não é possível mais soprá-los, é preciso deixá-los aflorar. Vó, enquanto nos curava de nossas feridas, nos alertava: “Tem feridas, fio, fia, que só com fogo se estanca o sangramento. Às veis, é preciso cortar o membro”. Vó quando queria era sombria, assustadora. Depois de curar nossas feridas, vó fazia bolinhos de chuva: estávamos prontos para novas aventuras.  A aventura que nos espera é a civilização. Antes é preciso enfrentar nossas feridas.   

sábado, junho 08, 2019

BANANÓPOLIS



Bananópolis um dia será devidamente estudada. Seu povo é por demais sui generis. Desprezam o ensino e a pesquisa, mas gostam de ostentar falsas informações, quanto à formação acadêmica, em seus currículos. Atacam as universidades públicas, mas gastam fortunas com escolas para seus filhos terem vagas garantidas nas universidades que atacam. Fazem leis, as desrespeitam, e porque as desrespeitam, desfazem a lei. É disto que quero tratar. Era senso comum em Bananópolis que pisar na grama não convinha. Então colocava-se onde houvesse grama uma pracinha indicando: “Não pise na grama”. Um legislador achou por bem tornar o que era senso comum lei. E lei, sabemos como é, nós não as cumprimos de bom grado. Tanto é verdade, há cientistas que dedicam toda uma vida procurando entender as leis do universo e da vida, procurando modo de burla-las. Então, junto com a lei, sempre se torna preciso criar mecanismos de vigilância. Assim, em Bananópolis criou-se os gramáticos, ficais de cumprimento da lei que proibia pisar na grama. Surgiram dois problemas: Bananópolis não podia onerar-se com mais este sistema, a extensão do território não permitia fiscalizar todos os pontos gramados. A fiscalização tornou-se ineficiente e abusiva. Os descontentes com a lei, como os cientistas, buscavam meios de a burlar.  Em Bananópolis quando algo parece tornar-se muito problemático, sempre aparece um jênio. Como a lei das gramas tornou-se problemática, e retornar ao senso comum não era mais possível, um jênio sugeriu: “porque não cimentamos tudo?”. Bananópolis está em pé de guerra: “Não ter grama é um direito!” gritam os defensores do jênio. “o direito é ter grama!”, retruca os opositores.  Para agradar a gregos e troianos o governo de Bananópolis editou um decreto assai interessante. Reza o decreto: “aqueles que acham que não devem pisar na grama ficam proibidos de pisar na grama; aqueles que acham que podem pisar na grama ficam livres para pisar na grama”. À imprensa explicou o governo: “tomamos essa medida porque o cimento está caro e não teríamos como cimentar toda Bananópolis!”. Bananópolis um dia será devidamente estudada.

NOSSO MENOR PROBLEMA É O ALUNO


Quando eu fui conduzido para escola pela primeira vez, eu não queria ir. Chorei, esperneei, não teve jeito, minha mãe me deixou lá, entre outros meninos e meninas e uma professora que, antes de se apresentar, apresentou a disciplina, uma régua de alfaiate. Todo o primeiro esforço que fiz para aprender foi por medo da disciplina, não por gosto do querer saber. Depois, em casa, havia o discurso: "Olha as notas, se tirar nota vermelha leva castigo! Olha, não vá perder o ano! Olha o castigo!". Não foi por querer aprender que eu me empenhei um longo tempo de meus anos escolares, foi por medo do castigo. A ameaça “se você não estudar, você não vai ser ninguém na vida”, estava no discurso de todo professor e de nossos pais. Era uma ameaça assustadora porque não sabíamos o que era ser alguém. E ser alguém parecia nosso destino: ou nos tornávamos alguém ou nos queimaríamos nas profundezas do inferno. O medo sustentado pela religião. Não foi na escola que encontrei o gosto por aprender. Na escola eu temia não aprender, temia a disciplina que vi muitas vezes serem aplicada, temia o castigo familiar, que consistiu em ficar sem a televisão por um mês, temia o castigo divino. Os professores de então contavam com a disciplina, com um relativo apoio dos pais: nem sempre castigavam, mas mantinham as ameaças, com o temor religioso. Eu comecei a gostar de aprender quando encontrei um grupo de jovens que queria saber de música, fanzine e teatro. Eu era como um alienígena no meio desses jovens. Eu não sabia tocar violão, não sabia desenhar, não escrevia e não atuava, mas vivia no meio deles. Com eles, que não me cobravam saber nada, fui percebendo que precisava saber alguma coisa. Eu continuo no meio deles, sem saber tocar instrumento algum, sem saber atuar e sabendo coisas de pouco valor pra nossa realidade. Tornei-me professor, mas não me coloco o desafio de ensinar a quem não quer aprender. No lugar do desafio, assumi um paradoxo: Se eu me empenhar em aprender com que ensino, quiçá, quem não quer aprender aprende. Há trinta anos envolvido com educação fui percebendo que o que condenamos no presente, no futuro nos surpreende. Tive um aluno complicado, desbocado, marrudo, não daria em nada aquele menino. Vejo-o passar diariamente em frente meu portão com o seu menino. O que seria espinho é um botão de humanidade. O que seria nada, tornou-se senhor de si. Hoje não contamos mais com o medo: não temos disciplina, as famílias afrouxaram um pouco, o inferno não existe. Mas ainda não soubemos substituir o medo pelo gosto. O querer se move entre a necessidade e o gosto. Na escola no lugar do medo colocamos a obrigatoriedade, que não é nem necessidade nem gosto. Poucas pessoas entendem a necessidade da escola, poucas tomam gosto pelo saber da escola. Estão na escola porque são obrigadas. Aqui está nosso desafio, as pessoas estão na escola obrigadas e elas estão obrigadas a estarem em um lugar de pouco prestígio, com pessoas pouco prestigiadas. Dê uma olhada no que se fala da escola pública: “não presta”, “é ineficiente”, “não ensina”. Quem quer estar num lugar deste se não for obrigado a estar? Olha o que dizem dos professores: “são mal formados”, “não sabem ensinar”, “são doutrinadores”. Quem quer aprender com esse tipo, se não for obrigado? Tem pai, tem mãe, que não vai na escola saber do filho, vai policiar o professor a professora. O não querer aprender do aluno é fichinha ante o desafio que temos ante a sociedade, as famílias e o Governo: Estabelecer respeito a nosso ofício. Como você consegue lecionar após o Ministro da Educação, em rede nacional, orientar pais e alunos a desconfiarem de ti? Como você quer que teu aluno aprenda contigo se ele desconfia de teu saber que, se não é deficitário, é doutrinário? Desconfiança sustentada por ministros de governo. Como aluno, eu gostei pouco da escola. Como professor, sei que seu menor problema é o aluno.

quarta-feira, junho 05, 2019

MENOS LIVROS, MAIS ARMAS



Dado o cenário político que vivemos, eu penso que aqueles oito ou dez alunos de uma escola de Carapicuíba, que arremessaram livros e carteiras contra a professora, poderiam ser convidados a irem a Brasília, passando pelo gabinete daquela deputada de Santa Catarina, pelo gabinete do Sr ministro da Educação, onde posariam para uma foto albergados sob seu guarda-chuva, e por fim , visitariam o palácio do governo para uma live ao lado do Néscio que, aproveitaria para reafirmar sua convicção de que nós professores somos um perigo, que somos nós que colocamos o Brasil em risco.
Há anos a escola pública, estrategicamente sucateada, é desprestigiada e atacada. Num pacote só, desmerecemos sua clientela e seus servidores. No centro do desprestigio à escola pública, o professorado, há anos, é o que tem sido mais atacado. E mesmo assim, no limite do sacrifício, desdobrando-se em jornadas exaustivas, com rendimentos cada vez mais restritos, nosso professorado mantém o gosto pelo ensino e a crença de que só nos há saída através da educação.  Mas estamos num limite, pois o ente que deveria ser o respaldo do professorado, promovendo sua figura, valorizando seu exercício, reconhecendo o seu sacrifício para levar adiante o ensino, e através dele, algo de educação, que é a formação do ser cívico, este ente o ataca, e convoca pais e alunos a intimidarem seu oficio.
Tem sido constante os ataques do atual governo aos professores. Generalizando o discurso, ora diz que são mal formados, ora diz que, por serem mal formados, não sabem ensinar, mas, sobretudo afirma que são doutrinadores e ameaçam a família, Deus e a pátria. Deputados, ministro da educação, segmentos de nossa sociedade, generalizando nosso oficio, nos desautoriza, lança sobre nós suspeitas, desacredita-nos. Por esses e outros motivos, não podemos esperar que nossos alunos nos queiram bem ou queiram bem a escola. Quando não se quer bem alguma coisa, ou uma pessoa, por ela não se há respeito. Onde não há respeito, sobra violência.
O signo desse governo e de alguns seguimentos de nossa sociedade é a violência. Não por caso, podemos até intuir um lema para nosso atual cenário: “Menos livro, mais armas”.
Os adolescentes, as adolescentes, envolvidos no caso de Carapicuíba, juntamente com seus tutores legais – eu penso, e corrijam-me se erro: em casos assim falta maternidade e paternidade –, devem ser responsabilizados, se acreditamos, ainda, em urbanidade e no papel de formador do caráter cívico e não apenas do comportamento esperado na sociedade de consumo, que delegamos a professores e professoras. Não há reforma econômica alguma que coloque uma nação de pé. O que faz uma nação ser pungente é a educação que lhe é oferecida, e esta passa pela valorização de seus educadores, mesmo discordando deles.
Mas com o governo que temos, que se silencia sobre a morte brutal de um trabalhador alvejado oitenta vezes por militares e corre a prestar homenagem a quem espanca uma mulher grávida, enquanto deputados, ministros e segmentos de nossa sociedade fazem "arminhas", não podemos esperar outra coisa de nossos alunos. Nesse cenário, os alunos de Carapicuíba merecem uma condecoração. E salve-se quem puder!

terça-feira, junho 04, 2019

DOUTRINAÇÃO

Hoje eu tentei doutrinar meus alunos. Não é sempre que faço isso não, mas, véspera de provas, senti-me no dever. Orientava, isto é, doutrinava meus alunos, dizendo-lhes que colar além de imoral era passível de penalidades. E menos preocupado com as penalidades e mais com a imoralidade do ato, expunha-lhes valores como responsabilidade, autenticidade, honestidade. Um aluno então objetou e disse-me: "vou denunciar pra direção, pois meus pais me disseram que "quem não cola não sai da escola e errado não é quem cola, mas quem é pego colando", e o senhor nos quer ensinar outra coisa, aquilo que o senhor acha certo: isto é doutrinação". Ao fim, resolvi que aplicaria prova com consulta. Um aluno perguntou-me: "Posso consultar o caderno de meu amigo? Eu não tenho toda a matéria, explicou-se". Desisti: "Esqueçam a prova", disse a meus alunos, "um dia, no currículo de vocês, coloquem que estudaram em Haward, e, quem sabe, se tornem ministros".