sábado, setembro 22, 2018

UMA CONVERSA COM A FACA



Às vezes eu pegava minha avó falando com um caneco, com um prato, com as galinhas, com o gato. Diziam que ela não atinava bem. Tia, que atinava, dizia que vó era pedagógica. Perguntei a tia, certa feita: “tia que é pedagógico”. “Fio”, respondeu tia, “é coisa que se estuda!” E explicou-me:  “Conceição de seu Noca, sabe seu Noca, de Dona Quitéria, que faz bolo de milho na festa de Santo Antonio, sabe? Conceição filha dela, estuda essa tal pedagogia. Ela diz que é pra poder ensinar as crianças na escola a ler as letras e a fazer os números. Mas ela diz que não é só isso não. Ela não disse pra mim não, ela disse foi lá pras colegas dela que foi lá estuda com ela. Eu tava lá limpando e servindo a patota, escutei a conversa. Ela disse que tem uma tal de pedagogia oculta, que ensina a pessoa sem a pessoa dar-se conta que tá aprendendo. É assim: Você ensina o abc pra criança, ensina 2+2, ensina o dia da semana... e no tom da tua voz, no jeito de explicar, na forma de corrigir a criança, você ensina alguma coisa de você, de ternura, de respeito, de compreensão do outro, porque, como disse Conceição pras coleguinhas: “é modo de ser gente que se ensina no ensinar”.  “Tem dia, dizia Conceição, pras colegas,  “que quem ensina tá triste,tem dia que tá feliz, tem dia que tá animado, tem dia que tá desanimado, tem dia que só ensina a matéria, tem dia que conta e explica um acontecimento que não tem nada a ver com a matéria, mas ele acha importante, e com tudo isso a criança não aprende a só ler e fazer conta, mas a ser.  Eu, agora to pensando, eu ia é perguntar pra Conceição que coisa é isso de ser, que eu fiquei matutando, que ela disse pras amigas que educar “é ensinar a ser não o que se é mas o ser mais”. Mas eu pergunto segunda feira.” Confesso que tudo aquilo não me fez sentido, mas achei bonito. Então perguntei pra tia porque ela dizia que vó não era desatinada, mas pedagógica. “Sua vó fala com as coisas, pra falar com a gente, com seu avô que é muito teimoso e perde fácil a paciência. Então ela explica pros bichos, e pros objetos coisas que, na verdade, quer explicar pra nós.  Sua vó não sabe e nós também não, mas ela é pedagoga, que nem Conceição. E eu penso que Conceição fala alto as coisas que ela aprende pra gente aprender também.” Devo dizer que tia foi uma das primeiras alfabetizadas de Conceição, que foi minha primeira professora. Certa feita, então, eu peguei vó conversando com o gato Ferrugem: “Ferruge, seu manhoso, a vida seria mais fácil se, ao acordar, você dobrasse as cobertas e depois do café lavasse o seu copo... Eu já falei com Gustavo (meu tio) que sem sabe as letras homem não se rege mais, que ele tem que fazer como Marinha (minha tia) pegar firme e aprender as letras, se eu não fosse já de perder a memória eu também tinha vontade de aprender as letras...” Eu quis, naquele momento, aprender as letras só para poder ensinar vó. Lembro aqui essas coisas não apenas para exaltar as figuras de tia, vó, dona Conceição e, nelas, os professores que tive ao longo da vida, mas para dizer que dia desses tive uma conversa com a faca enquanto passava manteiga no pão. Eu dizia pra faca: “Ele não!” Meu filho olhou pra mim como quem diz: “Ficou louco de vez”. Mas eu repeti para a faca: “em memória das dezenas de vidas desaparecidas no Araguaia, ele não!”

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