sábado, setembro 15, 2018

A SENHORINHA DA CPTM



Quando criança, com muita frequência e principalmente durante o inverno, encontrávamos motivo para fogueiras. Os quintais não eram cimentados, nem as ruas asfaltadas e ainda era possível encontrar lenha. No quintal de tia nunca faltou junto à fogueira pipoca e contação de história. Às vezes eram simples anedotas, apenas para rirmos ao redor do fogo. Outras vezes as historias serviam para atiçar nossa curiosidade e excitar a imaginação. Outras tinham algum ensinamento a ser tirado. Tia era uma eximia contadora de história, sabia dar ritmo, entonação, modulação à narrativa. Talvez devido ao fogo, eu sempre tive a impressão que suas palavras saiam de seu olhar, de seus gestos, das pontas de seus dedos. Mas toda esta introdução não é para falar de tia não, mas de uma historinha contada por uma senhorinha que me a lembrou. Adianto que não sei o nome da senhorinha, porque a acompanhei à distância em uma composição da CPTM e no perrengue entre quem embarca e quem desembarca a perdi de vista. Acontece que um boçal saiu-se com esta: “se foi condenado, algum crime cometeu, juiz nenhum condena se não houver algum crime”. Esta senhorinha esboçou-lhe um sorriso comiserado e tomando a palavra: “vou contar-lhe uma história!” e começou: “Numa certa noite remota, uma peixaria foi assaltada e os ladrões levaram cerca de trezentos quilos de pescado, na fuga deixaram pelo caminho algumas cabeças de sardinha. Um certo tipo, com a peculiar pinta de suspeito – se você não souber do que estou falando, olhe a seu redor, de cada dez pessoas aqui, oito tem a peculiar pinta de suspeito – então, como dizia, um certo sujeito com a peculiar pinta de suspeito, deu-se com essas cabeças de sardinha pelo caminho. Olhou pros lados não viu ninguém, conferiu por cima o aspecto das sardinhas, considerou que estavam próprias para o consumo, pegou-as.  No que dobrou a esquina para chegar em seu barraco, deu de cara com uma viatura da polícia. Adivinha o que aconteceu? O sujeito está há dois anos preso para “averiguação” e não se encontra um Gilmar Mendes que o libere – se é que você me entende”. “Ele não foi condenado ainda”, replicou o boçal. O desalento nos olhos da senhorinha é indescritível. “Dois anos presos, por algumas cabeças de sardinha, necessita julgamento?” Perguntou a senhorinha com a ternura de tia, quando nos questionava sobre qual desfecho deveria ter uma história. “O fato é que no domingo seguinte ao assalto”, continuou a senhorinha seu relato, “surgiu na comunidade uma barraca vendendo peixe a “bom preço”, assegurado por uma viatura da polícia, fazendo a “costumeira” rota pela comunidade. O peixeiro era puro sorriso...” Muita gente conjectura, como o boçal: “se o sujeito não tivesse pegado as cabeças de sardinha bla bla bla, bla bla bla...” A mim veio um dito de dona  Lindolvina, comadre de tia, que também gostava de nos contar uns causos: "Fio, na justiça devemos acreditar, senão perdemos a esperança. Já em certos juízes..., fio, dou mais crédito ao descomer do Xisto, meu vira-lata". Tenho pra mim que o boçal é um desses juízes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário