Quando
criança, com muita frequência e principalmente durante o inverno, encontrávamos
motivo para fogueiras. Os quintais não eram cimentados, nem as ruas asfaltadas
e ainda era possível encontrar lenha. No quintal de tia nunca faltou junto à
fogueira pipoca e contação de história. Às vezes eram simples anedotas, apenas
para rirmos ao redor do fogo. Outras vezes as historias serviam para atiçar
nossa curiosidade e excitar a imaginação. Outras tinham algum ensinamento a ser
tirado. Tia era uma eximia contadora de história, sabia dar ritmo, entonação,
modulação à narrativa. Talvez devido ao fogo, eu sempre tive a impressão que
suas palavras saiam de seu olhar, de seus gestos, das pontas de seus dedos. Mas
toda esta introdução não é para falar de tia não, mas de uma historinha contada
por uma senhorinha que me a lembrou. Adianto que não sei o nome da senhorinha, porque
a acompanhei à distância em uma composição da CPTM e no perrengue entre quem
embarca e quem desembarca a perdi de vista. Acontece que um boçal saiu-se com
esta: “se foi condenado, algum crime cometeu, juiz nenhum condena se não houver
algum crime”. Esta senhorinha esboçou-lhe um sorriso comiserado e tomando a
palavra: “vou contar-lhe uma história!” e começou: “Numa certa noite remota,
uma peixaria foi assaltada e os ladrões levaram cerca de trezentos quilos de
pescado, na fuga deixaram pelo caminho algumas cabeças de sardinha. Um certo
tipo, com a peculiar pinta de suspeito – se você não souber do que estou
falando, olhe a seu redor, de cada dez pessoas aqui, oito tem a peculiar pinta
de suspeito – então, como dizia, um certo sujeito com a peculiar pinta de
suspeito, deu-se com essas cabeças de sardinha pelo caminho. Olhou pros lados
não viu ninguém, conferiu por cima o aspecto das sardinhas, considerou que
estavam próprias para o consumo, pegou-as.
No que dobrou a esquina para chegar em seu barraco, deu de cara com uma
viatura da polícia. Adivinha o que aconteceu? O sujeito está há dois anos preso
para “averiguação” e não se encontra um Gilmar Mendes que o libere – se é que
você me entende”. “Ele não foi condenado ainda”, replicou o boçal. O desalento
nos olhos da senhorinha é indescritível. “Dois anos presos, por algumas cabeças
de sardinha, necessita julgamento?” Perguntou a senhorinha com a ternura de
tia, quando nos questionava sobre qual desfecho deveria ter uma história. “O
fato é que no domingo seguinte ao assalto”, continuou a senhorinha seu relato, “surgiu
na comunidade uma barraca vendendo peixe a “bom preço”, assegurado por uma
viatura da polícia, fazendo a “costumeira” rota pela comunidade. O peixeiro era
puro sorriso...” Muita gente conjectura, como o boçal: “se o sujeito não
tivesse pegado as cabeças de sardinha bla bla bla, bla bla bla...” A mim veio
um dito de dona Lindolvina, comadre de
tia, que também gostava de nos contar uns causos: "Fio, na justiça devemos acreditar, senão perdemos a
esperança. Já em certos juízes..., fio, dou mais crédito ao descomer do Xisto,
meu vira-lata". Tenho pra mim que o boçal é um desses juízes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário