sábado, dezembro 31, 2016

DOIS MIL E DEZESSEIS


Dois mil e dezesseis é daqueles anãs que cede passagem ao ano seguinte sem terminar. Um ano que fica. Muito aconteceu este ano e ele será invocado perenemente, como o 11 de setembro de 2001, o 24 agosto de 1954, o 6 de junho de 1944.   2016 foi um ano nefasto.  Tivemos a apologia à tortura e homenagem a torturador, um golpe orquestrado entre mídia, setores reacionários da política e da justiça e apoio de uma elite inculta e voltada para seu egoísmo natural. Tivemos a eleição de Trump, ainda está ocorrendo a guerra civil na Síria, e milhões de refugiados são abandonados à própria sorte, pois o xenofobismo assola o velho continente. A morte de um ambulante na estação do metro de São Paulo, fecha e resume este ano que não acaba, apenas cede passagem para o próximo, voltaremos nele nos próximos 20 anos.

FAUSTHINA  



Que o ano que se inicia seja-nos propicio, porque o que se finda, poderíamos não tê-lo vivido. (Euripedes dos Santos)

Da varanda goumert se podia ver a torre do campanário de São Silvestre, o lago em toda sua extensão espelhando as luzes dos prédios ao redor, encobrindo o caminho que dava às casinhas da vila. Espichando o olhar, via-se uma ou outra luz espaçada cintilando nos contornos da serra fundindo-se a noite clara de lua e estrelas. O olhar acompanha, agora, um casal que se amassa, embaixo, na marquise de um magazine: “a adolescência é a perca do pudor e a virulência dos instintos”, pensou. Mudando o foco, acompanha um grupo de rapazes fazendo um barulho “desmedido”, acelerando suas motos e soltando rojões...
Margareth, no quarto, experimenta as peças que irá usar para “obter sorte e fortuna”. Mas, pelo tamanho das peças, a esperança é pouca. A ver a calcinha, a fortuna, se vier, não será lá grande coisa. “Não fechar o mês no vermelho já está de bom tamanho!”, pensa, contemplando-se na minúscula peça.
 Anthunes cantarola e barbeia-se. Ethelvina corre com os últimos detalhes: “logo chegam os tios e os primos, e a carne ainda não foi ao forno, tio Iago fica inquietado com atrasos. Espero que Marcela esteja de bom humor, ano passado fez “casino” por nada...” 
Os tios chegaram, um primo não veio, desceu com os parentes da noiva para o litoral. Tio Iago trouxe a gaita, tia Marcela, como sempre, já chegou fazendo carão pra tudo e todos. Prima pediu licença, “tinha que retocar a maquiagem, e trocar de roupa; queria iniciar o ano com energias positivas, e era bom começar com roupas novas, recém vestidas”, explicava. Enquanto se trocava, aproveitou para mostrar para Roberta a pequena tatuagem perto da virilha esquerda, uma pequena fadinha com uma frase: “vem beijar-me!” “Como você teve coragem?! Madrinha viu?” indagou Roberta. “Imagina que eu vou mostra pra mamãe, ela me mata!”, respondeu prima, vestindo a pequena tanga azul celeste: “Eu quero um pouco de paz de espírito, este ano que passou foi muito conturbado”. Por pouco não fui pego espionando as mulheres se trocando e confidenciando segredos. Um dos primos queria mostra-me sei lá que nova tecnologia havia ganhado no natal... Eu lá queria saber de tecnologia, queria aproveitar uma ocasião e traçar a prima. 
Tia perguntou por Fausthina. “Disse que desceria à cidade para a missa e talvez ficasse por lá, com os amigos, embora eu duvide que ela tenha algum”, comentou Ethelvina. 
A mesa estava pronta e farta. Anthunes fez as orações, desejou um bom ano a todos, serviu Ethelvina. Terminada a ceia, os comensais continuaram á mesa, conversando amenidades, fuxicando vidas alheias, preparando-se para a contagem regressiva. De repente, um corpo nu atravessou a sala e aproximou-se da varanda, espichou o quanto pode o olhar para lá da torre do campanário de São Silvestre, contemplou o céu estrelado, a febril a algazarra nas estradas, nos apartamentos ao redor, sorriu um sorriso confuso, tomou a beira da mureta de proteção, e quando o céu encheu-se de luzes, com o espocar dos primeiros rojões, lançou-se a abraçar a todos que corriam à varanda para impedir-lhe a insensatez. Fausthina tinha dessas, passar o ano nua fora sempre uma sua ameaça: “que o ano que chega nos impulsione a cumprir coisas que passamos uma vida inteira prometendo”, bailava Fausthina nos braços estupefatos de Antunes, recuperando-se do susto que a caçula lhe pregava.     

sábado, dezembro 24, 2016

O JULGAMENTO


Juiz de Primeira Instância (JPI) – Aqui está dizendo que, em dezembro de 1967, o senhor escreveu ao Papai Noel, pedindo uma bicicleta. O Senhor confirma?

Réu – Em dezembro de 1967, meritíssimo, eu não era, ainda, nascido. Eu nasci em maio de 1968.

JPI – Sr promotor público, corrija a data.  Aponte nos autos que o réu aqui presente enviou missiva ao Papai Noel em dezembro de 1968 e não em dezembro de 1967. 
JPI – O Senhor então confirma que, em dezembro de 1968, enviou uma carta ao Papai Noel?

Reú – Meritíssimo, eu aprendi a escrever muito tarde, e onde eu morava não se cultiva esse uso de enviar cartas a Papai Noel. Em casa, vó montava presépio e, na véspera de natal, a gente rezava o terço. Então vó depositava na manjedoura o pequenino Menino Jesus. Era só, não havia nem o habito de trocar presentes.

JPI – O senhor se lembra quando mais ou menos o senhor aprendeu a ler e escrever?

Réu – Quando abandonei a casa de vó e fui para a cidade, em meados dos anos 80. Aprendi no Circulo de Cultura.

JPI – Ajunte aos atos, Sr promotor, que o réu reconhece ter participado de grupos de desordeiros e destes ter sofrido influências. Corrija também a data da missiva ao Papai Noel. Queira, por gentileza, ajuntar ao processo que o réu enviou carta ao Papai Noel em meados dos anos 80, quando adquiriu a competência escritora. 
JPI – O Sr ainda tem a bicicleta que o Papai Noel te deu?

Réu – Meritíssimo, eu nunca tive bicicleta, verdadeiramente eu nem sei andar de bicicleta.

JPI – O senhor nega, então que este aqui, segurando uma bicicleta, não é o senhor?  (Juiz mostra antigo monóculo com imagem ao réu).

Réu – Sou eu sim senhor, senhor meritíssimo. Eu tinha por volta de doze anos, mas se o senhor notar bem, quem segura a bicicleta é o primo Marcelo e não eu. A bicicleta era de Marcelo, que a recebeu de Michel, em toca de umas rapaduras e queijos que Marcelo, meu primo, vendia no mercado.

JPI – Ajunte-se aos autos que o réu reconhece ter participado de mal feitos, reconhece também a alegada bicicleta, que os digníssimos promotores afirmam convictos pertencer ao mesmo.  O senhor (dirigindo-se ao réu), sabia que o Papai Noel que te dou a bicicleta era funcionário do correio, que comoveu-se com sua singela missiva, e resolveu fazer a vez do bom Velhinho?

Réu – Senhor meritíssimo, eu jamais escrevi a papai Noel algum, jamais tive bicicleta, e desconheço qualquer funcionário do correio que me haja presenteado uma.

JPI – O Senhor tem como provar suas alegações?

Réu – Meritíssimo, com mil perdões, não cabe à promotoria apresentar provas aos autos?

JPI – Ajunte aos autos que mediante a recusa do réu em colaborar com o processo em curso, e tendo a promotoria, após exaustiva leitura e exame de jornalecos e semanais de duvidosa reputação, elaborado peça acusatória em ilustrativo PowerPoint, eu, Juizeco de primeira instância, mas sentindo-me Deus, em minha mais ilibada convicção condeno o réu a não mais comer a coxa do peru nas ceias natalina.

quinta-feira, dezembro 22, 2016

CRONACA GIALLA


Conheci H no ginásio. Era um menino introvertido, ensimesmado. Travei aproximação devido a um trabalho de artes que a professora exigia ser em grupos. Nós nos encontramos na casa de Marcela, para o trabalho. Naquela tarde, a gata de Marcela desapareceu, sendo encontrada morta na manhã seguinte, sem um pequeno brinco com o qual Marcela a ornava... Passado este incidente lamentável, durante o colégio troquei poucas palavras com H. Depois do colégio, mudei-me com minha família, não mais vi Marcela, H, as outras crianças com quem estudara...
Grata surpresa tive, portanto, quando apresentei-me para o estágio em uma empresa de comércio exterior. H era trainee da empresa e me recepcionou, apresentando-me aos novos colegas de trabalho, a meus novos supervisor e coordenador de setor. Durante meus primeiros meses na empresa, procurei manter distância de H que estava um tanto quanto mudado, embora continuasse um rapaz reservado, comunicava-se bem, com cortesia e discrição. No entanto, com o tempo, enamorei-me do “Estranho”, como o chamávamos nos remotos tempos de escola. Um dia, com certo acanhamento, H apresentou-me um pequeno brinco: “lembras da gata da Marcela?” Olhei-o confusa, espantada, admirada, não sei. Sorriu-me tímido, diante minha estupefação: “brincadeira!” E tímido me convidou: “Quer almoçar comigo?”.
Depois de um ano de namoro, um pouco mais, nos casamos. Eu abri meu próprio negócio, ele continuou na empresa e assumiu a direção de logística de importação. Devido a sua posição na empresa, H viajava o Brasil e o mundo. Algumas vezes, acompanhei-o, mas tinha as crianças, Helena e Heródoto.
Sempre que volta de uma viagem, H presenteia-me um par de brincos novos. Assim, tenho brincos dos quatro cantos do país e de uma dezena de países dos quatro continentes. Recentemente, enquanto aguardava o dentista, folheava uma revista italiana e deparei-me com uma “cronaca gialla”, uma espécie de narrativa policial. A matéria reportava ocorrências policiais em que jovens mulheres, de localidades diversas da Europa, apareciam mortas. O que atraia a atenção nas investigações era uma peculiaridade em comum entre as vítimas: a falta de seus brincos.

Aquilo me intrigou por alguns dias, comecei a relacionar o relato às viagens de H ao velho continente, aos brincos que me presenteava, à gata de Marcela. Contatei o consulado italiano, contei das viagens de H, dos pares de brinco... H está sendo procurado pela Interpol; acabo de receber a visita de um delegado da Polícia Federal do Recife. Acabo de receber também um novo par de brincos de alguma ilha do Caribe. H sempre soube como me fazer feliz.

domingo, dezembro 18, 2016

ÉDHIPO




Geni Casta, durante uma festa universitária, teve a bebida batizada. E o amigo, Silas Mal’affare, a seviciou. Geni acordou confusa e nua no reitorado, ao seu lado uma pequena medalha com o brasão do judiciário. Envergonhada, Geni preferiu abandonar a universidade. O fato é que Geni percebeu-se grávida. A família, de valores cristãos e nome a zelar, enviou Geni em viagem ao exterior. Trazendo ao mundo um menino, Geni o deixou, com a medalha que encontrara ao seu lado, num abrigo para refugiados, retornou à família e à universidade.
Silas Mal’Affare tornou-se homem público, comunicador social de grande apelo popular. É famoso por seus bordões: “Não importa o caráter do rei, seja-lhe amigo, pois sendo amigo do rei, tudo te convém!”. Silas Mal’Affare, era casado com Ella, filha do presidente da suprema corte e tinha uma filha, Ellinha.
Geni tornou-se esposa de magistrado. Com a ajuda de uma amiga, a quem confidenciou seu drama de adolescência, articulou a morte de Ella Mal’Affare. Mal’Affare, para não expor sua imagem, tratou a trama como um “lamentável acidente”. O filho abandonado entre refugiados, certa noite, desembarcou na capital. Trazia recomendações de nomes importantes do cenário mundial que o adotara. É preciso dizer que numa noite, antecedendo seu desembarque na capital, o jovem socorreu um velho cego numa travessia de Berna. Para recompensar-lhe, o velho cego leu-lhe a mão: “serás o amante dos que te geraram”. “Não seria amado?”, redarguiu o mancebo... O velho cego apenas riu um riso sacana: “para onde vais, meu caro, não há tragédias e os dramas são fugazes”.
Com as recomendações que o acompanhava, logo o jovem instalou-se na capital e assumiu cargo importante numa estatal. Numa destas festas para autoridades e empresários influentes, travou contato com Geni e dela enamorou-se. Não demorou muito para os dois se enlaçarem amorosamente. Certa noite, enquanto o jovem amante dormia, Geni, vasculhando seus pertences, encontrou a esquecida medalha...
Geni foi a Disney, fez compras em Miami, adquiriu um Romero Britto e apareceu, meses depois, rejuvenescida. O jovem abandonado, logo encontrou novo enlace amoroso: Ellinha Mal’affare.
Durante o jantar de apresentação, Silas Mal’affare, admirou a boa forma física e a “elegância intelectual” do futuro genro, na oportunidade que teve, levou-o ao seu escritório. Naquela noite o estrangeiro dividiu o leito com filha e o pai.
Sobre a capital caiu um desgraça, e todos se sentiam ameaçados, muitos foram às ruas, protestaram, denunciaram, pintaram a cara, vestiram as cores da bandeira. A boca pequena, uns defendiam antigos regimes, outros pretendiam passar a borracha, outros esperavam algo novo. O governo eleito foi deposto. O novo não agradava, era decorativo. Silas Mal’affare, em seu prestigiado programa de auditório, defendeu que “o pais precisava de um administrador, alguém que não fosse político”, e lançou o genro-amante em cadeia nacional. Logo sua aposta tornou-se “o mito”.
Geni Casta, então, num talk show, trouxe à tona a verdade. Apresentou, entre risos, a medalha; contou, às gargalhadas, seu enlace com o filho rejeitado, e disse saber, de fontes seguras, do caso de Mal’affare, filha e genro. O escândalo não durou dias. À boca miúda se repetia: “sendo amigo do rei, porque não?”

No partido poucos rejeitaram a ideia, não havia aliança melhor, e lançaram, “pela pátria, a família e Deus”, Edhipo e Geni Casta candidatos a presidente e vice. Se não ganhassem, não haveria problema: “sabiam como depor presidentes eleitos”.

sexta-feira, dezembro 09, 2016

UMA REPÚBLICA ENGRAÇADA


É  uma república muito engraçada

 Poucos tem tudo, muitos tem nada

Os que não tem nada não podem protestar nela não

A policia desce a repressão

Os que tem tudo, não manifestam não,

Desfilam abraçados a corruptos contra a corrupção

Tiram self com a polícia, elegem heróis de ocasião



É uma republica muito engraçada

Presidente nela não existe não

Quem a dirige é um oportunista, que passou de decorativo à piada:

Um reles cagão

As câmaras tomadas de canalhas;

O Tribunal acovardado rasgou a Constituição.



É uma república feita com muito esmero

Tem um povo sofrido, uma elite soberba,

E uma classe média, fazendo jus à medianidade,  medíocre.

Uma imprensa de dar pena, com articulistas áridos, rendidos ao sistema

más crível a um bando de otários, fiando-se em um juízeco

desfilando de verde e amarelo...  



É uma república desequilibrada

Ao povo toda a culpa,

aos ricos toda prata.


terça-feira, dezembro 06, 2016

A HORDA

“Tudo posso naquele que me serve, dizia um senhor montado em seu escravo, trocadilhando a Sagrada Escritura.”



Estava à toa na vida
O meu
 amor me chamou
Pra ver a horda passar
clamando direitos de Senhor

A minha gente sofrida
espoliada e de “cor”
vendo a horda passar

Clamando heróis sem pudor

O homem lobista que despachava dinheiro desfilou
O playboy com conta na Suíça desfilou
A
socialite que contava sapatos
Para ver, ouvir e dar passagem

A filha do deputado, tanta vezes denunciado, aderiu
A funcionária fantasma vestindo verde e amarelo aderiu
E os meninos do MBL, financiados por Aécio e Caiado, se assanharam
Pra ver a horda passar
com aquele pato, um horror

O velho fraco e sem aposentadoria acostumado a não pensar em crise
acreditou que ainda era moço e podia ser empreendedor e dançou
A madame com suas panelas debruçou na janela
Acenava à horda desfilando pra ela

A horda verde e amarela se espalhou na avenida e insistiu
A imprensa que dos estudantes nada diz cobriu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver a horda passar clamando ser tratada Doutor!

Mas para meu espanto
O que era passado voltou
na memória de quem não o viveu
junto com o pato que passou

E cada qual com seu argumento
Em cada argumento um mesmo desejo
Depois da horda passar
Clamando direitos de Senhor

segunda-feira, dezembro 05, 2016

BELLA

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei

Manuel Bandeira



Em tempos de melindres, devido ao assédio, temo aproximar-me das mulheres. Um flerte pode ser mal interpretado e, de galanteador, passamos por cafajeste, assediador. A conquista,  no entanto, mesmo que para um relacionamento casual, exige a abordagem direta, ou deixada subtendida num gesto, numa cortesia, num chiste...

Na Pasárgada do poeta, creio, não careceríamos de subterfúgios. Bastaria, penso, não sendo grosseiro, convidar a  mulher que queremos, sem promessas de amor eterno, para cama que havemos de escolher.  Contigo, eu supriria a necessidade de cama: quero amar-te ao vento, sobre a relva, na areia no descançar das ondas. Mas bem sei que o querer de um não é dever ao outro. E, então, mesmo fosse amigo do rei, sei que só posso convidar, esperançoso de aceitação para este encontro fugaz, sem afeto, apenas desejo.

Há, por certo, outras mulheres no salão. O mesmo respeito devo a elas. Posso apenas desejar tê-las em meus braços, numa dança em que havemos de decidir o que virá a seguir. Mas, não posso esperar nem pelo assentimento desta corte. Cabe à dama aceitar conceder-nos ou não a dança. Mas dentre todas, neste reino em que me faltam amigos, é a ti, que como a velha raposa ante a verde uva, contemplo com libido nos olhos. O convite, à depois deste nosso blinde vir deitar-se comigo, não vindo a ser aceito, não torne-se motivo de constrangimento. Prometo-te, sem garantia de cumprimento, correr-te toda em ponta de língua e corpo frêmito  “indo à fonte de teu ser”,  afagando teus cabelos molhados “com a sutileza que lhe fez à perfeição”, como o sambista cantou... Sou poeta, me tomes no colo, me embales na rede, me deites no chão, na relva, onde quiseres, como fosse o primeiro: faça-me homem; sois uva-vulva-mulher.

Não havendo de ti concordância, ceda-me apenas a dança, e partilhe comigo uma taça, brindando o fugaz instante em que na beleza desse teu olhar eu pude em ti me embrenhar.


domingo, dezembro 04, 2016

ANGHELINA


Em todo prazer há do sofrer de outrem (Eurípedes Santos)


Há algumas semanas não ejaculo. Para evitar a fadiga sem sucesso, enfurno-me em um novo texto e na leitura compulsiva. E quando acosto-me ao lado de seu corpo quente, ressonando, o dia está para clarear. Tomo o remédio... Ouvi quando despachou os meninos para a escola e anunciou estar saindo: “não vá se atrasar! Tenha um bom dia!!! Não chegue tarde!!!” Não dei resposta alguma...
Acordo sufocado de um sonho. Consulto o despertador, meio dia passado. Levanto-me. Tomo um banho, masturbo-me sem chegar a ejacular. Algo inquieta-me, um desejo de evasão, ansiedade sem objeto esperado.
Deixo o chuveiro. Tomo um conhaque observando o jardim. Rememoro o sonho. Nele, verifico os meninos que dormem sem amanhã: invejo-os. Desço à sala, ligo, desligo, repetidas vezes a televisão, pego um livro a esmo, tomo copos e copos de conhaque, folheio por folhear o livro.  Vejo-me no quarto, sento-me sufocado, o ar abafado. Abro a janela, acompanho o passeio solitário de um gato saltando de um telhado a outro na noite deserta. A brisa suaviza-me o animo: “Porque você não vem dormir?”, murmurou-me sonolenta. Deixo a janela entre aberta e deito-me a seu lado. Volto a levantar-me e me ocupar de um livro infantil dos meninos: “seria bom se a vida, ao fim, tivesse uma moral qualquer”...
Almoço verificando emails, correndo os olhos pelos sites de noticia: “o desumano desfila sua face em cores de nossa bandeira”... Acessei uma página “adulta”, procurando algo que me excitasse, masturbei-me: fadiga sem gozo! Tomei minhas coisas, saí para o trabalho. No trem acompanhava as mulheres falando de seus filhos e suas apreensões enquanto tentava ler Gênio Obsessivo, de Barbara Goldsmith... Veio-me a mistura de fragmentos de Camus (“No fundo de toda beleza jaz algo de desumano”) e Leopardi (“Na verdade esta vida é tristeza e infelicidade...”).  O que se deu já não era algo insólito, apenas incomodo. Peguei-me chorando sem motivo algum, sufocava-me os rumores das muitas vozes em torno a mim, os olhares me oprimindo, escorria-me suor frio...  Interrompi a viagem, descendo do trem na primeira oportunidade. Meu corpo comichava, sentia calor e sufocamento, pensei que perderia o sentido. Alguém puxou-me: “Ei, atenção! A linha amarela!” Agradeci desnorteado, procurei onde sentar-me, respirei, procurei por balas na bolsa, não achei! Tive a impressão de estar sendo vigiado... Recobrei-me. Conjecturei não ir trabalhar.  Voltar pra casa exigiria explicações e a paciência de ouvir todo um rosário de preocupações que eu deveria ter com minha saúde, que deveria “procurar um médico, retomar a medicação, etc.” Havia a opção de ficar perambulando pela cidade, pensei em tomar rumo da rodoviária, tomar um ônibus qualquer para uma cidade qualquer, não sentia disposição para aventuras. Retomei o caminho do trabalho: “estou tornando-me um homem cotidiano, resignado às contas e despesas...”
As horas arrastavam-se em intermináveis minutos grávidos de segundos agonizantes. Mau humor, impaciência, irritação, ansiedade, misturando-se, sufocando-me, nauseando-me. Nenhum assunto prendia-me, as conversas exasperam-me. A atendente, em especial, uma máquina de falar sem respirar, parecia ter dez pessoas falando nela em continuidade. Para não ser mais azedo que de costume, isolei-me no arquivo, organizando relatórios. Entre pilhas de papéis, Albert Camus me assolou novamente: “Um gesto desses se prepara no silêncio do coração, da mesma maneira que uma grande obra. O próprio homem o ignora. Uma noite, ele dá um tiro em si mesmo ou se joga pela janela...”.
Reviro, nauseado, relatórios e arquivos, o ar empesteado, o topor, a reminiscente fragrância de Anghelina...
 A vida era sonho. Uma tarde de veraneio, mãe corria seus dedos sob meus cabelos, tinha a brisa do mar e seu rumorejo acalantando o dia terminando. Eu era um sorriso só com o de mãe. “Olha mãe!”, aproximou-se Anghelina, desatando o biquíni para mostrar a marca de sol. A vulva rosada, os primeiros pentelhos despontando na mancha clara, destoando da pele dourada. Tive minha primeira ereção. “Meu menininho já é homenzinho!”, burlou mãe. “E safadinho”, emendou Anghelina, requebrando-se para mim. Escondi-me, encabulado, no colo de mãe. Tomava consciência do vexame.
Quando o sonho se perdeu, Anghelina já não irradiava felicidade. Ela andava tristonha, fora preterida por um certo Consentino. Pai a ameaçava de coça caso não se compusesse: “moça de família não fica de choramingo pela casa por causa de homem, quem lhes procura homem e as casa é o pai! Se você não recolhe estas lágrimas vos darei bom motivo para chorar!” E pai mostrava-lhe o reio. Mãe a socorria: “não seja bruto! É apenas uma criança enamorada! Logo passa!” e a acolhia em seus braços, a embalava em seu colo...
Eu devia ter visto a tristeza nos olhos de Anghelina, eu era preocupado com meu prazer. Eu a espiava em seus demorados banhos e meu grito alertou a família...
Como mãe, ela tomou da navalha de pai, correu-a com delicada tristeza (porque eu não percebi sua tristeza?) sob as pernas, a virilha, a púbis... Maquiou-se, tomou dos pelos pubianos e os envelopou junto com um bilhete, com seus lábios abatonados de vermelho selou o envelope. Usou do perfume de mãe, voltou a brincar com a navalha de pai, correndo-a por seu corpo, seu sexo... Havia vazio na pantomima toda. Era tudo tristeza e dor. Eu cego à sua dor, não sabia se ejaculava ou gritava denunciando-me, vendo o sangue escorrer-lhe o corpo...
Porque me prendi à navalha percorrendo seu sexo, e não a seu olhar esvaziando-se de sentido? Essa náusea que me sufoca comanda o meu sentido de ser.
Retornando para casa, caminho por ruas escuras, abandonadas aos ratos correndo entre as lixeiras. Retardando o passo, vou consumindo-me na certeza de que nosso gozo é desumano; é o sofrer de alguém. Um dia acordamos e percebemos: só o salto nos redime. Nossa angustia é não saber o momento do salto. A noite sem luar está carrega de uma fragrância que lembra uma tarde de veraneio em que vou me perdendo.