sábado, dezembro 31, 2016
DOIS MIL E DEZESSEIS
FAUSTHINA
Da varanda goumert se podia ver a torre do campanário de São Silvestre, o lago em toda sua extensão espelhando as luzes dos prédios ao redor, encobrindo o caminho que dava às casinhas da vila. Espichando o olhar, via-se uma ou outra luz espaçada cintilando nos contornos da serra fundindo-se a noite clara de lua e estrelas. O olhar acompanha, agora, um casal que se amassa, embaixo, na marquise de um magazine: “a adolescência é a perca do pudor e a virulência dos instintos”, pensou. Mudando o foco, acompanha um grupo de rapazes fazendo um barulho “desmedido”, acelerando suas motos e soltando rojões...
Margareth, no quarto, experimenta as peças que irá usar para “obter sorte e fortuna”. Mas, pelo tamanho das peças, a esperança é pouca. A ver a calcinha, a fortuna, se vier, não será lá grande coisa. “Não fechar o mês no vermelho já está de bom tamanho!”, pensa, contemplando-se na minúscula peça.
Anthunes cantarola e barbeia-se. Ethelvina corre com os últimos detalhes: “logo chegam os tios e os primos, e a carne ainda não foi ao forno, tio Iago fica inquietado com atrasos. Espero que Marcela esteja de bom humor, ano passado fez “casino” por nada...”
Os tios chegaram, um primo não veio, desceu com os parentes da noiva para o litoral. Tio Iago trouxe a gaita, tia Marcela, como sempre, já chegou fazendo carão pra tudo e todos. Prima pediu licença, “tinha que retocar a maquiagem, e trocar de roupa; queria iniciar o ano com energias positivas, e era bom começar com roupas novas, recém vestidas”, explicava. Enquanto se trocava, aproveitou para mostrar para Roberta a pequena tatuagem perto da virilha esquerda, uma pequena fadinha com uma frase: “vem beijar-me!” “Como você teve coragem?! Madrinha viu?” indagou Roberta. “Imagina que eu vou mostra pra mamãe, ela me mata!”, respondeu prima, vestindo a pequena tanga azul celeste: “Eu quero um pouco de paz de espírito, este ano que passou foi muito conturbado”. Por pouco não fui pego espionando as mulheres se trocando e confidenciando segredos. Um dos primos queria mostra-me sei lá que nova tecnologia havia ganhado no natal... Eu lá queria saber de tecnologia, queria aproveitar uma ocasião e traçar a prima.
Tia perguntou por Fausthina. “Disse que desceria à cidade para a missa e talvez ficasse por lá, com os amigos, embora eu duvide que ela tenha algum”, comentou Ethelvina.
A mesa estava pronta e farta. Anthunes fez as orações, desejou um bom ano a todos, serviu Ethelvina. Terminada a ceia, os comensais continuaram á mesa, conversando amenidades, fuxicando vidas alheias, preparando-se para a contagem regressiva. De repente, um corpo nu atravessou a sala e aproximou-se da varanda, espichou o quanto pode o olhar para lá da torre do campanário de São Silvestre, contemplou o céu estrelado, a febril a algazarra nas estradas, nos apartamentos ao redor, sorriu um sorriso confuso, tomou a beira da mureta de proteção, e quando o céu encheu-se de luzes, com o espocar dos primeiros rojões, lançou-se a abraçar a todos que corriam à varanda para impedir-lhe a insensatez. Fausthina tinha dessas, passar o ano nua fora sempre uma sua ameaça: “que o ano que chega nos impulsione a cumprir coisas que passamos uma vida inteira prometendo”, bailava Fausthina nos braços estupefatos de Antunes, recuperando-se do susto que a caçula lhe pregava.
sábado, dezembro 24, 2016
O JULGAMENTO
quinta-feira, dezembro 22, 2016
CRONACA GIALLA
domingo, dezembro 18, 2016
ÉDHIPO
sexta-feira, dezembro 09, 2016
UMA REPÚBLICA ENGRAÇADA
terça-feira, dezembro 06, 2016
A HORDA
O meu amor me chamou
Pra ver a horda passar
clamando direitos de Senhor
A minha gente sofrida
espoliada e de “cor”
vendo a horda passar
O homem lobista que despachava dinheiro desfilou
O playboy com conta na Suíça desfilou
A socialite que contava sapatos
Para ver, ouvir e dar passagem
A filha do deputado, tanta vezes denunciado, aderiu
A funcionária fantasma vestindo verde e amarelo aderiu
E os meninos do MBL, financiados por Aécio e Caiado, se assanharam
Pra ver a horda passar
com aquele pato, um horror
O velho fraco e sem aposentadoria acostumado a não pensar em crise
acreditou que ainda era moço e podia ser empreendedor e dançou
A madame com suas panelas debruçou na janela
Acenava à horda desfilando pra ela
A horda verde e amarela se espalhou na avenida e insistiu
A imprensa que dos estudantes nada diz cobriu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver a horda passar clamando ser tratada Doutor!
Mas para meu espanto
O que era passado voltou
na memória de quem não o viveu
junto com o pato que passou
E cada qual com seu argumento
Em cada argumento um mesmo desejo
Depois da horda passar
Clamando direitos de Senhor
segunda-feira, dezembro 05, 2016
BELLA
Em tempos de melindres, devido ao assédio, temo aproximar-me das mulheres. Um flerte pode ser mal interpretado e, de galanteador, passamos por cafajeste, assediador. A conquista, no entanto, mesmo que para um relacionamento casual, exige a abordagem direta, ou deixada subtendida num gesto, numa cortesia, num chiste...
Na Pasárgada do poeta, creio, não careceríamos de subterfúgios. Bastaria, penso, não sendo grosseiro, convidar a mulher que queremos, sem promessas de amor eterno, para cama que havemos de escolher. Contigo, eu supriria a necessidade de cama: quero amar-te ao vento, sobre a relva, na areia no descançar das ondas. Mas bem sei que o querer de um não é dever ao outro. E, então, mesmo fosse amigo do rei, sei que só posso convidar, esperançoso de aceitação para este encontro fugaz, sem afeto, apenas desejo.
Há, por certo, outras mulheres no salão. O mesmo respeito devo a elas. Posso apenas desejar tê-las em meus braços, numa dança em que havemos de decidir o que virá a seguir. Mas, não posso esperar nem pelo assentimento desta corte. Cabe à dama aceitar conceder-nos ou não a dança. Mas dentre todas, neste reino em que me faltam amigos, é a ti, que como a velha raposa ante a verde uva, contemplo com libido nos olhos. O convite, à depois deste nosso blinde vir deitar-se comigo, não vindo a ser aceito, não torne-se motivo de constrangimento. Prometo-te, sem garantia de cumprimento, correr-te toda em ponta de língua e corpo frêmito “indo à fonte de teu ser”, afagando teus cabelos molhados “com a sutileza que lhe fez à perfeição”, como o sambista cantou... Sou poeta, me tomes no colo, me embales na rede, me deites no chão, na relva, onde quiseres, como fosse o primeiro: faça-me homem; sois uva-vulva-mulher.
Não havendo de ti concordância, ceda-me apenas a dança, e partilhe comigo uma taça, brindando o fugaz instante em que na beleza desse teu olhar eu pude em ti me embrenhar.