domingo, outubro 31, 2021

PAREMOS DE COMER MANGA

 “Eu estou te dizendo: os alienígenas já estão entre nós. Eles nos confundem, nos dividem, para nos dominar. A polarização em que vivemos, é estratégia de dominação alienígena.” (Antônio Carlos, motorista de taxi)

 

O ano é 1968, o mês, maio, o dia, 19, a hora, 15, a localidade, a sui generis Bananópolis. Na data, hora e local especificado, um fato extraordinário aconteceu, sem que os habitantes dessem conta até o dia de hoje: uma invasão alienígena. Era, como dito, 15h, do dia 19 de maio do ano de 1968, um domingo chuvoso e frio. Na madrugada daquele dia nasceu um sujeito torto e destinado a ser breve. Por volta das 15 h, as preocupações estavam todas voltadas para ele que desatara a chorar, não era choro de fome, havia sugado a mãe minutos antes. O fato é que seu berreiro concentrava os cuidados das mulheres, os homens acompanhavam a radio na expectativa de Palmeiras e Santos, e a invasão alienígena passou desapercebida. Não era mesmo dos invasores chamar atenção. Na verdade não poderiam, minúsculo que eram. Alguém poderia dizer tratar-se de uma pequena semente de dente de leão que espalhamos ao ar com um sopro. De fato, a espaçonave alienígena era com uma microscópica haste presa a um tufo de 1000 filamentos. Assim: “Cala a boca Rex!”, foi a única coisa que se ouviu vindo do casebre, além do choro lancinante do recém-nascido.  Tranquilamente instalados, os alienígenas puderam exploraram o entorno. Analisaram as couves e os tomates na horta, uma joaninha e uma vespa, uma possa d’água próximo da mangueira, Rex, que focinhava o entorno da mangueira. Depois de coletar dados e processar análises criteriosas, os alienígenas tomaram uma decisão, instalaram-se na mangueira. Perfuraram seu tronco, acessaram um veio de seiva e ali se instalaram. Dalí, esses alienígenas tem se espalhado por Bananópolis. Através da seiva da mangueira eles atingem os frutos. Quando um Bananópelense consome o fruto, consome junto comunidades de alienígenas, que passam a colonizar seu cérebro.  Ontem, durante um debate, um bananopolense se saiu com essa: “Opinião não mata, o que mata são ações, não opinião!”. Alguém tentou lhe explicar que a palavra também é ato, e que opiniões motivam ações, mas o tipo era impedernido: “Não há crime em defender algo que seja crime, sendo opinião!” Desconsolado, o seu debatedor se saiu com esta: “Mano, para de tomar suco de manga, tá te fazendo passar vergonha! Você não percebe o prejuízo que te causa tuas opiniões estapafúrdias, quando não criminosas. O que você coloca no seu suco de manga?” Foi aí que atentei-me: nós estamos sendo colonizado. Nosso abobamento é dominação alienígena. Assim, faço um alerta: paremos de comer manga!

sexta-feira, outubro 29, 2021

EDILEUZA

 

O domingo começa seu vesperal, os últimos turistas preparavam o retorno à enfadonha rotina dos dias cinzas da capital, recolhendo guarda-sóis, isopores, pranchas. Gibi, HQ e Almanaque, bolavam um ultimo naco de mariguana e acompanhavam, pela radio de pilha, Corinthians e Flamengo. Gibi falava de seus encantos por Edileuza, os amigos faziam gracejo: “É muito peixe, pra pouca barca, parceiro!”, ria, um riso bolado, HQ. “Edileuza, compadre, é sereia de arrastar pescador experiente pro mar!”, observava Almanaque: “Num é pra pescador de maré baixa, como nóis, não!”, completou.  “Pescador de maré baixa, parceiro, é só se for ocê. Eu, por Edileuza, varo este marzão, esgoto suas águas”. “Edileuza não se deixa escolher, parça. Ela é quem escolhe!”, retomou, com gravidade bolada, HQ. “O escolhido sente o presente, parça! Eu me sei presenteado!” disse Gibi, também bolado. O jogo ia dois a um para o Corinthians, o céu vestia-se de lilás e dourado para seu encontro com as águas azuladas e mansas do mar. A subida da serra se congestiona. Zenon, aos 35 do segundo tempo, assinalava o terceiro gol alvinegro, “um tiraço de fora da área”, o grito de gol de Osmar Santos preenchia a já quase deserta praia. Os amigos celebram o tento. Quando deram conta, Edileuza, seios nus, dança entre as ondas, mergulha, emerge senhora de si, mergulha novamente, balança a cauda reluzente, desaparece entre as águas. O jogo termina 4 a 1 para o Corinthians. Agora na radio Ritchie domina com seu sotaque estrangeiro. Gibi, tomado pela maresia, segue a canção: “Você vem não sei de onde, eu sei, vem me amar...” e suspira: “Um dia eu serie em ti, mar adentro, minha sereia!” No céu, a lua domina rodeada de estrelas.

domingo, outubro 24, 2021

DEUSA DE UM INSTANTE

 


Saio da padoca do Galego e caminho para o ponto do ônibus, aquele da praça Garibaldi. Dele acompanho o movimento matutino. Crianças uniformizadas, acompanhadas de suas mães, avós, babas, atravessam, ainda sonolentas, a praça rumo à escola que a contorna. Também, já em algazarras, adolescentes e jovens atravessam ruas e a praça, sem muita atenção, em todos os sentidos. Uns tomam a direção do Politécnico, outros do Cientifico, outros do Professor Coutinho.  Trabalhadores também circulam a praça de um lado a outro. Um ou outro se firma para um café, um cigarro, um drops, ou tudo isso e outra coisa qualquer, nas banquinhas improvisadas, ou nas barraquinhas em seu entorno. A maioria se dirige para a estação. Pela madrugada e até certa hora da manhã, o ponto é mais de desembarque que de embarque. Ônibus vindos das localidades mais distantes despejam a turba amarrotada e descomposta, que, já alquebradas, descem e tomam, quase em bloco, o mesmo destino: a estação. Do ponto é, então, possível acompanhar o cortejo cotidiano de crianças, jovens, adultos seguindo autômatos o que lhes parece ser destino. Atraído pelos badalos do sino, avisando da missa a começar, olho para a igreja, suas escadarias, as imponentes torres, a imagem de Nossa Senhora da Piedade, figurando a faixada. Não há almas em sua direção. Retorno ao vai e vem das pessoas, tomando a praça, cruzando-as em todas as direções. De tanta e variada gente, passa muita gente de atrair o olhar: uma cor de paletó ou calça diferente, um salto alto mais alto que os demais, um cabelo melhor ou menos arrumado, qualquer coisa: tem sempre, na turba, um tipo que se destaca e que o olhar acompanha. Era assim a garota que vinha caminhando da Igreja, para o centro da praça. Descia as escadarias como que desfilando. Não era da missa, por certo que vinha, pois vinha num molejo de passista abrindo ala. De chinelinha de dedo, bermuda legging preta, destas que destacam bem o playground, um top cavado, verde claro, realçando os bustos arredondados, os cabelos molhados, os lábios abatonados. Parecia não ir a lugar nenhum, apenas se desfilava. E atravessava, indiferente aos olhares e suspiros dos homens e de algumas mulheres, a praça. Teve um que tropeçou. Teve outro que levou um safanão da companheira. Um que armava a barraca, colocou a lona do avesso, outro deixou a mercadoria esparramar-se toda. Teve uma que lhe soltou: “que bife!”. Indiferente, ela vinha em direção ao ponto e preenchia meus olhos, que já se alojavam entre os catetos e a hipotenusa, evidenciados por sua bermuda. Ao meu lado, uma, toda executiva, tomou do celular, teclou um número lá: “Olha, eu vou ter que ir ao médico! Amanhã levo o atestado!” Levantou-se e foi em direção à minha miragem: “primeiro vamos ao remédio!”, disse a mim, como em confidência, num sorriso sacana. E insensível ao arrebatar de meus olhos, foi abordar a deusa daquele instante, furtando-a de mim. Quando o ônibus chegou, eu era largado em fantasias de como estariam se amando.  

quarta-feira, outubro 20, 2021

ESTA INÚTIL ESPERANÇA É A NOSSA ÚNICA FORÇA

 

Embora o capitalismo tenha a propriedade de tudo transformar em mercadoria, que, uma vez consumida, torna-se descartável: e a vida tornou-se descartável. Embora o capitalismo deteriore as relações de trabalho em mando e obediência, em ganho de uns e perdas para tantos: tão poucos com tudo, tanto e tantos sem nada. E embora o acúmulo e não a partilha seja a mola do capitalismo e seu produto a indiferença, a mesquinhez, a pior das misérias humanas: a ganância. Não obstante a miséria humana, a terra arrasada que o capitalismo desenha em seu avanço, há algo que lhe escapa: o humano é esperança. É contra a esperança que o capitalismo avança. E só a esperança o ameaça. Contra o capitalismo não nos faltam discursos. Contra o capitalismo a esperança é a ação que nos falta. Sem esperança não há mudança, há apenas resignação e cantinelas amarguradas contra o que compete a nós mudarmos. Esta inútil esperança, sobre a qual o capitalismo avança, em sua náusea sufocante, é a nossa única força.

terça-feira, outubro 19, 2021

Discurso de Classe

 

Que a classe trabalhadora isto
Que a classe trabalhadora aquilo
Mas de qual classe trabalhadora
Eles falam?
Quando vão se dar conta que
O trabalho está automatizado
Que o robô substitui o operário
A inteligência artificial a atendente
Os aplicativos os vendedores
Quando vão se dar conta que o capital
Já não conta
Com o trabalho humano
E nem com a produção de produtos de consumo
Não existe mais classe
Só empreendedores
Naquilo em que o capital
Não tem mais interesse.

domingo, outubro 17, 2021

DIA DE MISSA

 

Era domingo tardinha. Os tios acompanhavam Corinthians e Palmeiras, jogando carta. O primo e alguns amigos ouviam vitrola e bolavam um baseado. As primas se arrumavam para acompanhar vó e tia à missa. Maria Rita escolhia o vestido e perguntava à tia o seu juízo: “Este florido, com o arranjo de cabelo combinará bem.” Clarinha corria para o banheiro. Desceu o vestido, tolheu o sutiã, tirou a calcinha... A água corria seu corpo ensaboado: “sinto por dentro uma força, vibrando uma luz. A energia que emana de todo prazer.” “Onde anda Tunico?”, era vó. “Tuniiico, Tuniiico, diacho de menino, onde você se meteu?” Eu era, entre frestas, perdido nos segredos de Clarinha. Se vó me pegasse era castigo certo. Escorreguei gatuno para o quintal. “Meu bem você me dá agua na boca...”, o primo e os amigos, bolando, curtiam vitrola. O tio gritava: Gooool. “Tunico, vem se aprontar, menino!”. Vó me chamava para irmos à missa.

quinta-feira, outubro 14, 2021

NAÇÕES NÃO SE PRODUZEM COM ARMAS

 

Em um dia, o ministro da economia da Republiqueta de Bananas chega a ganhar 14mil dólares em especulação financeira. Neste mesmo período, milhares de pessoas passam o dia sem uma refeição sequer. Não é por disciplina religiosa ou estética que estas pessoas deixam de comer, é por privação econômica. A fome dessas pessoas não é dieta, é descaso político. O ministro da economia, ganhando seus 14mil dólares, diz que tudo está bem e o Assombroso que governa a republiqueta deita uma solução: “mais bala, menos feijão.” Acredita o inominável, o execrável, o abominável, que armas garantem o alimento, o gás, a água, a luz, o emprego. E cita do Evangelho o que lhe convém. Esquece o Genocida o que diz o profeta: “Eis o que diz o Senhor: Praticai o direito e a justiça, e livrai o oprimido das mãos do opressor. Não deixeis o estrangeiro sofrer vexames e violência, nem o órfão e a viúva, nem derrameis neste lugar sangue inocente” (Jeremias, 22,3), ou “Vós que engolis o pobre, e fazeis perecer os humildes da terra... converterei vossas festas em luto, e vossos cânticos em elegias fúnebres...” (Amós 5, 7-15). Mas se o Cristo sugeriu aos seus comprarem espadas, foi mais incisivo aqui: “Tendes ouvido o que foi dito: “Amarás o teu próximo e poderás odiar teu inimigo.” Eu, porém, vos digo: “amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos [maltratam e] perseguem.” (Mateus 5, 43-44). Ante a massa faminta, Jesus não lhes sugere tomar em armas, e recomenda aos discípulos: “dai-lhe vós mesmos de comer.” Ao jovem rico, Jesus não lhe sugere comprar armas. Não, Jesus apenas lhe ensina que sua riqueza é fruto da exploração e expropriação das centenas de pobres que o rodeiam. Mas Jesus, para não ser indelicado, não lhe diz claramente: “a tua riqueza é fruto de roubo, de exploração”. Jesus é sutil, apenas sugere: “vende tudo o que tem e dá aos pobres” (Mateus 19, 16-22). Na minha versão Jesus diria: “Como queres ser bom, se explora e expropria e se sacia da fome, do desemprego, da especulação financeira?  Toma tudo o que roubastes e devolves aos expropriados. Deixes de produzir commodities e alimentes o povo.” Não Abominável, armas não produzem liberdade, armas não constituem pátria soberana, armas apenas mantém o fosso entre os que ganham 14mil dólares por dia especulando a alta do dólar e as milhares de pessoas que passam fome. Uma hora, e não vejo a hora, estas pessoas deixam de apelar a Deus e tomam das armas. Disto não surgirá uma nação. Nações se produzem com justiça, com distribuição de renda, com escolas e livros.   

terça-feira, outubro 12, 2021

AOS PÉ DE MARIA

 

Era um doze de outubro, mãe, desesperada, se apegava à Nossa Senhora. O Bernardo pelava em febre. Pai fizera o turno da noite, já era para estar chegando. Mãe rezava e arrumava as coisas de Bernardo numa bolsa: documentos, fraldas, mamadeira. “Aguenta Bernardo, assim que seu pai entrar por aquele portão, eu corro contigo!” Mas pai não entrava pelo portão. “Rodrigo, presta a atenção”, disse-me mãe apressada, angustiada, “não dá mais para esperar teu pai chegar. Fica quetinho, não mexe em nada. Vou levar o Bernardo no médico. Vou passar na Quitéria, para ela vir te olhar. Só abre a porta para a Quitéria, entendeu? Fica deitadinho no teu canto. Só abre a porta para a Quitéria.” E mãe ganhou mundo com Bernardo nos braços. Não demorou, Quitéria apareceu.  Preparou-me café, me deixou assistir televisão. Pai só apareceu por volta das dez, já bêbado. Como chegou deitou, dormiu, sem dar atenção a que Quitéria lhe informava de mãe e Bernardo. No hospital não havia pediatra, o plantonista não fora, mãe precisava aguardar. E, aguardando mãe se apegava a Nossa Senhora.  Tardezinha, vieram avisar: “Bernardo partira, a mãe, a sedaram. Era preciso providenciar os documentos para o enterro!” Todos os anos mãe visita a Basílica, um dia lhe perguntei como conseguia manter a fé: “dando a Deus o que é de Deus, ao homem o que é do homem”. E me explicou: “Nós nascemos e nós morremos, não sabemos como, não sabemos quando. Mas, não ter hospitais, não ter médicos, perder nossos filhos não é problema de fé, é de política. No morrer não há querência de Deus, não se morre porque Deus quer, se morre porque é dos homens morrerem. É o morrer desassistido, quando não falta conhecimento e instrumentos que é um problema. Mas este não é um problema de Deus, é político. Na fé encontro razões para crer que meu filho é e eu serei, um dia novamente com ele.” Quando me tornei professor, minha mãe orgulhou-se: “não ensine teus alunos a duvidar de Deus, os ensinem a acreditar que podem, com conhecimento e com os instrumentos de sua criação, produzirem um mundo justo em que as pessoas vivam dignamente.” De mãe, de sua fortaleza, ainda aprendi: “Tem mais valor aos olhos de Deus quem nele não crê e produz justiça, que um devoto fervoroso, mas incapaz de caridade.” Mãe é hoje com Bernardo. Pai e eu mantemos o hábito de vir à Basílica. E aos teus pés , Maria, agradeço o que com ela vivi e aprendi: “Deus faz nascer o sol sobre justos e injustos, porque quem decide ser um ou outro é cada homem, é cada mulher.”

segunda-feira, outubro 11, 2021

MYSTERIUM VITAE

 

Venceslau Candido é um tipo “olha sapatos” e “voz para dentro”, como o definira Rigoberta Saraiva e Silva. “Muito prestativo, educado, faz as coisas com zelo e presteza”, informava Rigoberta aos “doutores”.  Os “doutores” eram o delegado e o escrivão. “As pessoas o dão por apalermado. Vivem bulindo com o coitado. E ele, nem sal, nem açúcar, caladão, cumprindo o que o chefe pede. ” “Ele vinha aqui todas as quintas e sábados”, explica o balconista. “Sentava ali no canto, naquela mesa. Se a mesa estava já ocupada, ficava encostado lá no canto, aguardando desocupar. Mas não era de se demorar muito. Acho que o negócio dele é com a Brighitte, depois da apresentação dela, ele pagava a conta, geralmente uma dose de vodka e uma latinha de Coca, uma porção de amendoim ou pururuca, a consumação de uma ou outra menina.” “A Brighitte”, explica o gerente, “apenas faz show, ela não faz programa. Ela se apresenta às quintas e sábados. Nestes dias, a casa ferve. “A vida é uma incógnita”, começou o Antunes, “há nela uma ordem oculta, conduzindo as pessoas, sem que se deem conta. Na vida, cada pessoa cumpre um papel determinado.  Venceslau cumpriu o seu.” “Não seu doutor”, explica Rigoberta, “o Venci, é assim que o chamamos por aqui, o Venci nunca faltou, chega sempre dez, quinze minuto antes, cumpre o horário de almoço rigorosamente, não é como uns e outros – olha para o Claudemiro – que começam quinze minutos antes e terminam meia hora depois. Não, o Venci, em tudo, é muito certo, muito correto. Em tudo, ele é muito organizado.” “Uma única vez, que me lembre”, relatou o garçom “ele foi pro quarto com uma garota, a Bia, se não me engano. Mas faz anos isto! A Bia, tadinha, já nem está mais entre nós. Ela morreu há uns dois anos, num acidente de carro. Era irmã da Brighitte, e uma das melhores garotas da casa, Deus a tenha”. “Ele era na dele”, conta o gerente, “sentava naquela mesa, ordenava uma vodka, uma Coca, uma porção qualquer, geralmente aceitava a companhia de uma das garotas, pagava o seu consumo, mas recusava qualquer proposta de programa, eu acho que ele era brocha. “No armário dele, ele guarda um foto dele ao lado de uma garota. Estão abraçados, ele parece feliz”, informa Rigoberta. “Eu sei porque foi algo excepcional. Ele, como disse, é muito organizado em suas coisas e cioso também, mas aquele dia, ele deixou a porta aberta, deixou a porta aberta. Então eu vi a foto dele com a garota Muito bonita, alias.” “Cada um de nós”, retoma o discurso Antunes, “está obrigado, sem se dar conta, a usar certo tipo de traje; a estar preso a certos rituais, a determinados comportamentos. Nosso modo de ser é regrado pelas circunstancias, as estruturas em que nascemos e vamos nos desenvolvendo nos enredam.” “Como de costume, ele chegou, tomou a mesa lá do canto, pediu uma vodka e uma Coca.” Explica o garçom. “A Brighitte teve um contratempo, não pode vir. Então, a substituímos. Quem se apresentou foi a Albertinna”, relata o gerente.  “Quando soube da mudança, ele simplesmente levantou-se e saiu”, informou o garçom. “Demonstrou contrariedade ao pagar a conta, mas não disse nada”, observou, ainda...  O sangue escorria pelo meio fio misturado à água que escorria vindo das casas mais acima. O corpo debruçado ao solo. Ao redor olhares curiosos, vozes desencontradas, narrações entrecortadas, especulando, indignando-se, justificando... “Somos indeterminações apenas por ignorância, tivéssemos conhecimento das leis que nos regem, nos saberíamos determinados. Cada gesto nosso, está já em nosso nascimento”, filosofa Antunes. Do outro lado da cidade Brighitte recebe a notícia: o irmão se suicidara.