segunda-feira, março 29, 2021

NÃO BASTA TROCAR O BURRO

 

A carroça destroçando-se segue perdendo dia após dia frutos já maduros, mudas em desenvolvimento, sementes que já não serão semeadas. As perdas são incalculáveis, incontornáveis. Pela frente, não obstante algumas nuances de sol, ainda há muita dor e sofrimento. O burro que a puxa, teima por caminhos tortuosos e sombrios. Nega os sinais e avisos pelo caminho, confia apenas nas sanguessugas apeadas em seu lombo. Mas é preciso olhar para as rodas que sustentam tal desatino. Uma delas é verde oliva, cheia de estrelas, guinando a carroça para a direita, saudosa de desastres passados. Bem lubrificada de regalias e garantias de bons soldos, não faz caso da mortandade a que se associa. Desculpem-me, eu estava falando de rodas, e não de uma instituição que abriu mão de suas atribuições para fazer da administração pública um cabide de emprego para oficiais, que, mesmo com um país quebrado, cortando direitos e congelando salários, obtiveram aumento nos soldos e nos proventos dos aposentados. Esses sustentam, com notinhas em jornais e ameaças intervencionistas, uma política genocida. Mas voltemos à nossa história. A carroça, perdendo frutos, mudas e sementes, segue indo ao abismo. Cogitam trocar o burro, quando o problema está também nas rodas e nas sanguessugas. De uma das rodas vimos falamos, a outra acredita que o burro é ungido, defende o caminho do abismo: “é melhor que o comunismo!”, diz. Estou eu, de novo, entrando em outro assunto. Esta história não terá fim. Tragédias não acabam sem expiação. As sanguessugas, em momento oportuno, sacrificarão o burro, mas, antes, precisam garantir salvarem-se e a seus interesses...  

domingo, março 28, 2021

A HUMANIDADE FUTURA

 

Eu não duvido da humanidade futura

Ela já está entre nós

Tecendo sonhos

Rabiscando projetos

Fazendo-se história

Esta humanidade

Está em meus filhos,

 Em meus sobrinhos e sobrinhas

Está nas meninas da Lidi e do Fabinho

Nas crianças do Geraldo

Nos sobrinhos e sobrinhas do Marco Senna

Nos da Luciene

Na Moniquita dos Maida

Nas meninas do Filé e da Jacque

Nas crianças, que no Elvis e na Cris,

Encontram, não catequistas,

Sonhos do humano possível

A humanidade futura está entre nós

Nas filhas do Filipi.

A humanidade futura é entre nós

Nela eu acredito...

 

quarta-feira, março 24, 2021

MINHA ESTÉTICA É UMA MÁSCARA

 

Tenho procurado uma estética positiva, uma estética que reforce o valor pela vida, que dê ânimo às pessoas e as motive em suas lutas diárias, as encoraje ante as dificuldades e angústias; uma estética quase alta ajuda. No mesmo sentido tenho dirigido meus estudos e minhas leituras: tenho procurado autores que, mesmo críticos de nossa realidade, do sistema que nos absorve, conseguem acreditar em saídas para a ruína à qual caminhamos. Mas no fundo, esta estética que procuro, e os estudos aos quais me dedico, não passam de uma máscara, que dissimula meu desencontro com o mundo e meu desejo de não ser, de evadir-me, de salto no absurdo...  Poucas coisas me prendem ao mundo;  são fios tênues: a Flor de minha existência, meus dois gigantes, uma promessa a meu pai, alguns poucos amigos, seus sonhos e suas lutas. Tenho medo de saber como eles estão, o que se passa com eles. Qualquer noticia desfavorável me abala. Medo e desejo tornam-me confuso e em tensão. Pendo à beira do abismo para onde o mundo, seu sistema vigente, nos empurra. O que me segura são tênues presenças e uma promessa.

terça-feira, março 23, 2021

"Eu não gosto de errar. Quando erro, mesmo que não goste, tenho que ser corrigido. Sinto-me tratado com indiferença, se, cometendo erro, ninguém diz nada, é como se eu não existisse. A indiferença machuca mais que a correção..." (Urbino Salvatore)

UM MUNDO PARA SE VIVER EM DESEPERO

Na época em que ainda, “inocentes”, fazíamos planos de viajar o mundo de mochilas nas costas e pouco dinheiro no bolso, corríamos pela orla, ficávamos horas no chapadão assistindo as ondas arrebentarem-se nas pedras, os surfistas e suas manobras, os banhistas, o céu ao horizonte multicolorindo-se. Eu deitado em teu colo, falava-te da escola, dos professores, da turma, e, para provocar-te, da Izaura.  Havia tanta beleza em ti, tanta alegria, tanta vontade de vida, de uma vida de aventuras. Às vezes, ficávamos no Marujo, petiscando marisco frito, tomando cerveja, acompanhando os pescadores preparando os barcos, as redes, lançando-se ao mar... Nós nos víamos numa daquelas barcas assumindo o mar, tornando-o nossa estrada, nosso destino, nossa morada. Pensávamos viver de porto em porto. Em nossos sonhos não havia noites tenebrosas, tinha sempre estrelas nos iluminando e uma lua plena nos guiando. Em nossos sonhos não havia dias terríveis, tenebrosos, não havia insanidades, havia incrédulos, mas não negacionistas. Em nossos sonhos reinava a sensatez, a camaradagem, o bom humor, a cortesia, a partilha, a solidariedade. Nos víamos atravessando o mundo sendo acolhidos sem distinções, sem restrições, sem classificações. Nós sabíamos dos conflitos, das guerras, da intolerância, da violência que nos campeia, mas projetávamos um outro mundo. Um mundo que me lias em tuas poesias, que cuidando de tuas plantas me ensinava. Numa daquelas tarde de nossa “inocência”, falaste-me de uma casa com jardim, horta para suas ervas, pomar, uma biblioteca. E um quarto em que um gigante haveria de reinar. De tão feliz que fiquei, lancei-me tal criança no mar, abracei-te e beijei-te tanto que o mundo parou a nos contemplar. Nossos planos mudaram, os sonhos não. Com eles criamos os meninos, que seguem os próprios caminhos.  Não estava tudo perfeito, nos desdobrávamos para ajustar-nos à realidade, sem perder a “inocência de nossas tardes”. Então, por que fazes isto comigo? Por que partes para as aventuras de nossos sonhos, para o outro mundo possível? Por que te vais? Por que eu fico? Porque levas nossos planos, nossos sonhos, nossa inocência contigo? Por que tira-me o chão? Por que deixa-me sem sentido?

 

 

Estamos chegando a 300mil sonhos que hão de se realizar em outro mundo. Neste não cabe inocência só desespero...

segunda-feira, março 22, 2021

MEU RISO

 

“Não temos tempo para chorar, as pessoas nos chegam desesperadas, e temos que lhes transmitir confiança.” (Márcia dos Silvas, Enfermeira)

 

Razões tenho apenas para o choro

E o abandono no

Absoluto nada

Mas um riso permanece

Não pela improvável mudança

Dos rumos que seguimos

Meu riso é para lenir

Quem ainda acredita

E se mantém

A resistir

Meu riso máscara

Não muda o mundo

Não alivia a dor

Não cicatriza as feridas abertas

Apenas acalanta

As ilusões

Dos que ainda esperam na intervenção

Divina

Quando aos homens compete

E estão na luta

Meu riso placebo

Não é resignação

É impotência

E perda de sentido

Meu riso lágrima contida

É a única acolhida aos

Que já são despedida...

 

 

sábado, março 20, 2021

PERCIVAL

 

O sítio era pequeno, tinha uma modesta casa de farinha e um não menos modesto alambique. Ambos muito pouco utilizados. A roça parecia abandonada e os poucos animais, alguma cabeças de cabra, outras de galinhas e patos, os dois cachorros, um caramelo: Bio, o outro malhado: Curisco, e Sabina, uma cadelinha simpática, pareciam deixados à própria sorte. Tinha ainda três leitõezinhos, num chiqueiro improvisado.  A casa, 3 quarto, banheiro interno, “Coisa difici di incontrar nestas banda”, informava Adelma, sala e cozinha com um fogão de lenha, portas e janelas a tramela, precisava de reforma. “Esta meio precarizado...” Adelma, olhou-me com semblante inquisitivo. “Está precisando de ser cuidado, ajustado, parece abandonado”, disse-lhe. “Adespois que nhô Bastião morreu, que Deus o tenha, sinhá Matilda perdeu gosto. Os menino já tudo formado, morando na cidade, quase não vem por cá. Eu e Osório faz o que pode, mas num dá conta, não!”. Enquanto Jhoana averiguava tudo com olhar criterioso, atendo-se a detalhes: “esta tramela é segura?”, “aquela rachadura ali, não é perigosa?”; “este assoalho...”, “aquele fogão de lenha...”, as crianças encantavam-se com os bichos. “Pai vamos levar um leitãozinho?” pedia um. “Aquela cabritinha, pai”, pedia outro. Para o almoço Adelma caprichou: Couve na manteiga, frango com quiabo, farofa de torresmo, feijão com toucinho, arroz temperado no alho. Osório ofereceu-me cachaça: Tá pruns 10 anos está cachaça, dotô. Pedrinho, tava pra nascer.” Pedrinho era o neto de dona Matilda, a dona do sítio. “Pedrinho nunca que veio aqui!”, comentou Adelma.  Depois do almoço, exploramos o sítio. Jhoana recolhia mudas de plantas e ervas, os meninos corriam soltos, vivazes, aventurando subir em árvores.  Partimos no finzinho de tarde, depois de tomarmos um farto café. Adelma preparou-nos ainda um fardo: broa de milho, pão de queijo,  rapadura, queijo, uma garrafa de cachaça. Os meninos, extenuados da jornada, era um misto de contentamento e desapontamento: “O Percival ficou triste, ele queria tanto vir com a gente!”, disse o mais novo. “Quem é Percival?”, perguntamos. “O leitãozinho, ele queria tanto conhecer a cidade!”

sexta-feira, março 19, 2021

TEOREMA DE PITÁGORAS


O nosso prazer era jogar bola, empinar pipa, andar de carrinho de rolimãs. O campinho era rente à casa de dona Beatriz, nossa professora de matemática. Naquela tarde, como de costume, jogávamos bola com olhos no céu. Pipas dançavam em sua imensidão lilás-alaranjada. Um chute mais forte arremessou a bola no quintal de dona Beatriz. Coube-me ir resgatá-la. Ao mesmo tempo, a meninada saia correndo atrás de uma pipa mandada. Gatuno, saltei o muro e espichei o olhar pelo quintal à procura da bola. No jardim, entre as rosas não se encontrava. Não estava, também, na horta, de onde colhi um tomate já amadurecendo. Inexplicavelmente, a avistei rente à parede do quarto de dona Beatriz, propositadamente, embaixo da janela. O chute fora forte, mas não o suficiente para a bola estar onde estava. Fora um anjo, um espírito, algo do gênero, não havia outra explicação. A janela entre aberta chamou meu olhar, que, senhor de si, seguiu a seu chamado sem pestanejar. Entrou por entre a fresta e pousou sobre dona Beatriz despindo-se para o banho... Quando voltei com a bola a gritaria era geral: “foi fazer a bola, é?”; “entrou num labirinto, foi?”; “era o quintal de Alice, era?” Não dava bola aos queixumes. Eu já não tinha interesse no jogo, já não tinha interesse nas pipas. Meus olhos haviam ficado em dona Beatriz. Desde aquela tarde não mais compreendi o Teorema de Pitágoras. Catetos e Hipotenusa não entram em minha cabeça, ocupada com o vértice do triângulo.

"Ponto de vista não consiste da posição em que você observa um objeto. Consiste do quanto de objetividade e subjetividade você emprega na análise do objeto. Consiste do quanto e da qualidade de informações acerca do objeto você tem. Consiste da sua retidão moral e de seus princípios éticos no trato com as informações, com o conhecimento e com o respeito para com a verdade que você tem..." (Rodner Lúcio)

quarta-feira, março 17, 2021

PARAÍSO PERDIDO EM MIM

 

 Na manhã daquele dia, ao sair para o trabalho, tomei o 513U que passa pela Magalhães Pinto. Comumente eu tomo o 512C, que passa pelo Colégio Bonifácio Almeida. Mas eu queria, antes de chegar à empresa, passar na Quintino, uma banca de jornal na esquina da Magalhães Pinto com a Olivia Tastemark. A Quintino era uma banca voltada para a comunidade japonesa e oferecia uma gama variada de hentais. Quem me apresentou o hentai e me falou da Quintino foi o Augusto, que era “consumidor compulsivo de orientalismo”, conforme ele dizia. Então, naquela manhã, eu tomei o 513U. Foi no ponto da Souto Silva que você entrou toda atabalhoada, tentando dar conta da pasta A2, a régua T, o canudo de arquiteto e o ajustar da camiseta insistindo em erguer-se e você insistindo em ajustá-la à cintura. Ofereci-te o lugar. Teus olhos brilharam, teu sorriso abriu-se. Em tua voz agradecendo-me, colhi o paraíso. Para não perdê-lo, nunca mais tomei o 513U. Quando vou à Quintino, desço na Porto Ferreira, e caminho pela Paulo Arantes, passando em frente à Faculdade de Arquitetura

domingo, março 14, 2021

Tarde Morna

 Na tarde morna

Uma flor se abre

De entre as páginas

 de um livro

 Eu sei de cor cada verso

Um beija flor entrou

Pela janela

 Na tarde morna

Uma flor se abre

De ti

“Minhas mãos sabem

de cor teu corpo”

beijo a flor

de entre tuas pernas.

sábado, março 13, 2021

ESTAMOS NOS ACOSTUMANDO AO INTOLERÁVEL

 

O conhecimento é uma fábrica de dúvidas. Nasce da curiosidade, não há conhecimento sem curiosidade, e produz dúvidas. Um conhecimento nunca é certeza absoluta sobre nada. Certezas inamovíveis têm os estúpidos. Ignorância, no sentido epistêmico, é falta de curiosidade e apego a incertas certezas, e a única coisa que produz é mais ignorância, no sentido ético do termo. Uma pessoa ignorante, mesmo tendo algum conhecimento, é arrogante, é intolerante, é destemperada. Vale-se da brutalidade física e verbal para impor suas incertas certezas. Para estas pessoas nada se discute, porque elas já têm tudo por acertado e o contraditório é uma afronta. Então esbravejam, ofendem, ameaçam e agridem. São pessoas estéreis de curiosidade e dúvidas. O conhecimento delas é um conhecimento estagnado. A curiosidade nos leva a querer saber, o saber nos dá certa compreensão das coisas, mas esta compreensão logo faz nascer dúvidas e novamente a curiosidade nos desperta. Evoluímos em espiral, o ciclo não se fecha sobre si mesmo, dá sempre um salto. A ignorância luta contra o salto, prefere acomodar-se a incertas certezas.  Sem curiosidade, sem dúvidas, temos apenas o intolerável: as ofensas, as ameaças, às agressões físicas e verbais, à incivilidade. E estamos nos acostumando a ele.

quinta-feira, março 11, 2021

Flor-Neide


 

Como continuar?


Eu não quero escrever sobre 2394 mortes em um dia. Não quero falar de vidas próximas, vidas intimas que cruzaram o meu existir.

O mundo me exaspera, me angustia. Assoma-me uma impotência nauseante. O mundo, a gestão da pandemia me conturba. O desejo é esvair-me.

Então, me alieno em ti, nesta tarde de primavera, em que pela fresta da janela vi-te a te despir. É nesta fresta que me refugio dos horrores que me assombram, do mundo e seus escombros. É em teu sono vespertino que, eu menino, repouso meu existir.

 

segunda-feira, março 08, 2021

ALUCINAÇÃO

 

Eu tinha olhos apenas para o mar

Angustiado olhar lançado

ao ir e vir das ondas

e seu arrebentar nas pedras

Na linha do infinito

borrava-se o céu de lilás

Saíste destas águas

me invocando

a não mais buscar

O que aqui não se encontra

Saístes destas águas

ajustando o bikini

que lhe descobria

exígua  pelugem

Viestes a mim

e sorristes

Aproximou teus lábios do meu

o gosto de mar estremeceu-me

“Este é meu corpo

tomai-me e comei-me”

Perdi-me em teus braços

mergulhei-me em teus lábios

afoguei-me em teus seios.

Tornei a buscar o que

Aqui não se encontra

Nos braços de um salva vidas.

quinta-feira, março 04, 2021

CONHECER É UMA ESTRATÉGIA

 “O conhecimento é um dos temas fundamentais da Filosofia. Isto porque é através dele que podemos intervir no mundo transformando-o ou arruinando-o.”  (Rodner Lúcio)

O modo de ser humano é sua existência, tecida historicamente pela ação. É agindo que o ser humano se relaciona com a natureza e dela retira os recursos necessários de sua sobrevivência. Pela ação também, o ser humano é inserido na comunidade humana e passa a partilhar dos interesses comum da comunidade, elaborando daí interesses particulares. É na prática social de que fazemos parte que vamos nos tornando quem somos. É na pratica social também que não apenas retiramos recursos da natureza para suprir nossas necessidades, socialmente produzimos o mundo, o conjunto de instituições e relações que humanizam-nos. Para tornar a natureza um mundo humano é preciso conhecê-la. E para nos desenvolver plenamente no mundo humano é preciso conhecê-lo. De tal modo, o conhecimento, fruto das ações e relações humanas constitui o universo cultural-simbólico que nos humaniza. Inserir-se nesse universo significa o conhecimento de diferentes linguagens e dos valores que regulam as relações entre as pessoas em particular e a comunidade humana como um todo, desenvolvendo postura ética e sensibilidade política.

Em resumo, o ser humano é um ser de ação, que se desdobra sobre a natureza, sobre si mesmo e os outros, sobre  o universo de valores e símbolos que ele desenvolve. E sobre estes três aspectos, o conhecimento faz-se presente e necessário.

Pelo conhecimento, o ser humano se apropria de si e coloca-se propósitos de plena realização, se apropria de um conjunto de habilidades e técnicas adequadas à sua ação; se apropria dos valores culturais, éticos e políticos de sua comunidade e de sua existência histórica.

Neste sentido: “o conhecimento é uma estratégia que nasce embutido na ação” (Antônio Joaquim SEVERINO). É uma estratégia de que não podemos abrir mão se queremos conduzir nossa existência norteando-a em vista de nossa plena realização.

Sem conhecimento, ou com conhecimentos precários, a ação humana torna-se catastrófica, quando não impossível. Assim, o que nos leva a querer conhecer é querer viver, e viver da melhor forma possível.

Conhecer é prever, é antecipar, é preparar-se adequadamente para um desafio, para enfrentar uma dificuldade, para alcançar um propósito. Conhecer também é um poder tornar-se livre, autônomo, independente, desenvolvendo nossas habilidades e potencialidades, tornando-nos melhores a nós mesmos. Conhecer significa melhor qualidade de vida, mais saúde, mais conforto, mais bem estar pessoal e social. O conhecimento é a única porta que se abre para uma melhor realização de si.

Num contexto mais amplo, um país só é grande e soberano à medida em que seus cidadãos têm um alto nível cientifico, técnico e cultural, na medida que privilegia e investe em conhecimento. (Jacob BAZARIAN)

terça-feira, março 02, 2021

IDEOGRAMA

 

“Às vezes no silêncio da noite, eu fico pensando em nós dois...”

 

Querida, desculpe-me se vou direto ao ponto, correndo o risco de estar cometendo uma cafajestagem. É que, dia desses, mesmo absolvida em minhas atribuições, não pude deixar de acompanhar conversa sua com uma colaboradora. Como não participava diretamente da conversa, não sei precisar seu conteúdo, mas alguns fragmentos tocaram-me. “Sinceridade é tudo”, dizia você à colaboradora. Num outro instante você arguiu não gostar “de floreios”: “Sou mais o sujeito que chega e diz logo o que quer, que esses metidos a romântico, cheios de lisonjeio. Comigo tem que ser na lata, preto no branco”. Pois bem, embora trabalhemos a considerável tempo juntas, não temos intimidade. Vez ou outra, trocamos gestos breves de cortesia, tudo na mais comedida polidez, como se requer entre pessoas educadas e em um sadio ambiente de trabalho. Mas não somos de trocar intimidades. Acho que é devido um pouco à minha timidez. Eu sou de ficar de canto, de não me enturmar. Mas vamos ao ponto, sem rodeios, sem meias palavras: quero transar com você. Quero beijar-te um demorado beijo, de arrepiar os pelos, correr-me por teu corpo, brincando com seus mamilos, instalar-me entre tuas pernas e deliciar-me em ti. Quero escorregar minha língua por seu corpo inteiro, sentindo o seu cheiro, sua carne tremendo, seu coração pulsando. Quero brincar com todos os teus sentidos e, então, quero te fazer sentir prazer e gozar intensamente. Desejo pegar-te de jeito, nas mais variadas posições, uma noite inteira. Pronto! Falei! Cabe esclarecer que este desejo nasceu recentemente e de uma situação peculiar. Desde que trabalho nesta empresa, acompanho, por oficio, suas atividades, observando planilhas, relatórios, sua interação com os funcionários, pontualidade, prontidão, disponibilidade. Sou eu quem avalio seu desempenho e aprovo uma sua possível promoção. Admiro sua reservada compostura e compromisso profissional, sua prontidão às metas é exemplar. O fato é que nunca a tinha notado fora dos padrões profissionais até pouco mais de um mês. É bem verdade que tem um nosso companheiro que, com certas observações maliciosas ou mesmo grosseiras, vez ou outra, faz-nos notar alguns seus atributos, como de outras companheiras. Mas entre homens, você já deve ter percebido, é corriqueiro ou discutir futebol ou estar fantasiando arroubos sexuais em aventuras que jamais vivenciarão. De tal modo, mesmo com as observações desse nosso companheiro, jamais cheguei a devotar qualquer distinção por você ou qualquer outra funcionária, vítimas de sua boçalidade. Mas, como disse, acerca de pouco mais de um mês, em um seu movimento para ajustar a blusa no corpo, ao levantar-se, notei que você tem uma singela tatuagem em seu quadril direito, um pouco abaixo da linha do umbigo. Pareceu-me tratar-se de um ideograma chinês. Tivesse intimidade, eu teria perguntado a você o porquê de tal tatuagem e o significado. Retive-me, por receio de intromissão e indevida curiosidade. Ademais, foi uma situação muito rápida. Nasceu, porém, a curiosidade junto com a dúvida de ser mesmo um ideograma chinês que eu vira, e, por conseguinte, seu significado. Evitando aborda-te, procurei na internet por algo parecido com o que conservava em mente. Uma empreitada infeliz. Passei, então, a observa-te, na esperança de rever a tal tatuagem. Devido a seu recato no vestir-se, e distinção nos modos, tive apenas outras duas, também fugazes, oportunidades. Este estar a observar-te melhor, sua tatuagem, passei, indiretamente, a saber mais sobre você. Assim, percebi que você costuma ciciar uma canção do Cazuza, enquanto confere o material a ser reciclado, e outra da Rita Lee, quando analisa as tabelas de produção. Descobri que você aprecia Dostoiévski, que desconheço quem seja. Acompanhei uma sua conversava com a copeira e você comentava algo acerca de um “idiota”, penso que seja este Dostoiévski, pois citastes o nome dele. Reforço que meu interesse era caracterizar melhor o ideograma. E no ir observando-te acabei notando que você carrega uma flor de lótus na altura do cóccix, e um olho de Osíris, centrado na passagem do pescoço para o tronco, na linha dos ombros. De um comentário seu, que ouvi passando da copa ao banheiro, soube que você tem outras duas tatuagens. Uma no franco esquerdo, um pouco abaixo do busto, parece ser uma inscrição. A outra ignoro do que se trata e onde se localiza. Em sua mesa de trabalho, observei anotações sobre Lacan e Zizek. Passei as últimas noites pesquisando na internet sobre os mesmos. Confesso não ter entendido coisa alguma. Descorçoei. Mas, depois fiquei fantasiando eu e você tratando de cultura chinesa, Lacan, e esta coisa de significante, signo, significado, desembocando num jogozinho inebriado, os nossos corpos buscando o êxtase desmesuradamente. Querida, bem sei que o desejo que aqui expresso poderia conservá-lo, como conservo certas fantasias sexuais e as desafogo comigo mesma. Não é nenhuma necessidade premente. Mas, ficaria lisonjeada se aceitasse meu convite de passarmos uma noite juntas, num motel aqui perto. Aquele às margens do Pindorama, próximo ao retorno que dá acesso à Duque de Caxias.

 

No aguardo de um seu assentimento

Renata Bessa (Gerente de RH)