sexta-feira, maio 29, 2020

AINDA SOBRE O AMOR



Amar é dar o que não se tem a quem não pediu (Lacan)

Nós nos estruturamos com um “eu” como centro de nós mesmos. E no entorno deste centramento o mundo gira. Na superfície de nossa consciência centrada no “eu”, desperta a determinação: “amarás a ti mesmo”.  Este mandamento inflacionado implica: antes a tua existência, antes a tua vida, antes você. Pense em você, faça para você e por você. Assim, na superfície de nossa consciência, a centralidade do “Eu” pode desdobrar-se em egoísmo. E, então, nada que não nos seja vantajoso, útil e necessário; nada que não seja para nosso gozo inflado nos move ou co-move. Aqui o afeto se enlaça à necessidade e à utilidade e atraímos as pessoas para usufruirmo-nos, retirar delas o nosso gozo.  Se somos todos estruturados assim, então tudo é simulação nossa e do outro para atingir nosso escopo: o gozo de si mesmo. Se na periferia de nosso centramento não há outra força que nos mova a não ser a lei do amor a si mesmo, por essa lei vivemos. Amar, nesta perspectiva é saciar nossas necessidades e desejos inflacionados, desregulados. Insaciáveis vivemos para nos saciar.

Mas estamos aqui na superfície de nossa consciência. Aprofundando-nos na estrutura de nosso “Eu” percebemos que ele é um “Eu” construído socialmente, que ele se estabelece em redes de relações intercambiáveis, variáveis e mutáveis: ora hostis, ora amistosas, ora agradáveis, ora desagradáveis. São estas experiências que, internalizadas nos estruturam em profundidade. Aqui percebemos que não somos apenas frustrações reprimidas, somos também potencialidades criativas. Saindo da superfície de nosso “Eu” compreendemos  que não somos apenas um centramento narcísico. Somos, sobretudo, empáticos. Nos inclinamos a  um outro.  Não abandonamos o mandamento: “ama-te a ti mesmo”. Compreendemos que não temos consciência de nós próprios senão temos percepção do outro; não saberíamos o que é este “ti mesmo” sem confrontarmo-nos com o outro.

Na superfície de nossa personalidade não há motivo para amar o outro. Mas também não chegamos a nos amar. Não podemos amar o que não conhecemos. Se amo um “eu” dissociado das redes de relações que o constitui, amo um espectro. Na superfície de nossa estrutura vemos apenas um fantasma, uma vaga imagem em que podemos nos perder. É no reconhecimento de outros centros egóicos que nos desafiam a cada instante, e, sobretudo, nos cativam a cada instante, que vamos configurando mais nitidamente o nosso verdadeiro “Eu”. De inseguros, ameaçados, confusos, resistentes, passamos a amantes de um que não é nós mesmos. Assim, compreendendo nós mesmos como seres centrados e inter-relacionados, damo-nos conta que amar a nós próprios requer sermos amados não por nós mesmos. E requer que amemos não só a nós mesmos. Sem amigos, não nos amamos suficientemente bem. Assim, para amar-nos como convém temos que nos apoiar no amor de outros. Aqui enraíza-se um segundo mandamento: “Amas o teu próximo como amas a ti mesmo”.

Tal mandamento não nos pede que desloquemos o amor por nós mesmos ao outro. Não diz que devemos deixar de nos amar, mas que só sabemos se nos amamos amando o que nos faz sabermos de nós.  Amando o próximo descobrimos que a maior e mais profunda das satisfações que podemos obter em nossa existência é a livre, espontânea e grata possibilidade de escolhermos com quem compartilhar nossa presença. De tal modo, o amor ao próximo se destaca na realização de quem amamos como seres livres, espontâneos e gratos de nossa companhia... É na plena realização de quem amamos que percebemos nos amar.  “Se posso dizer a outrem: “Eu te amo”, devo ser capaz de dizer: “Amo em ti a todos, através de ti amo o mundo, amo-me a mim mesmo em ti.”” (Erich Fromm, A arte de Amar. Belo Horizonte: Itatiaia. 1966: p. 56).


terça-feira, maio 26, 2020

PREMISSAS PARA PENSAR A IMPORTÂNCIA DE LER


A humanidade se constituiu pela linguagem escrita e a leitura e a existência de plataformas matérias e digitais de leitura são instrumentos indispensáveis aos seres humanos. A leitura é, sem, dúvida necessária seja para a comunicação humana seja para uma melhor compreensão do mundo e de si mesmo. No entanto, livros físicos ou digitais, como outras formas de comunicação impressa, não são isentos de contradições, erros e enganos. Assim, embora a leitura seja necessária, a fala-ação, isto é, a troca de percepções e de entendimentos que se dá no diálogo, no debate, na explanação de um argumento, não é substituível pela leitura.

De tal modo, engana-se quem acredita que a leitura por si mesmo produz conhecimento. Como tudo que o homem tem à sua disposição para tornar-se melhor, livros são meios, são instrumentos de enriquecimento intelectual e de mera fruição. E num sentido ou outro, podem ser usados de maneira inadequada e tornar-se, ao invés de vantajoso, pernicioso. O risco de se assumir valores, concepções de mundo, de vida, de vida humana arbitrários, frutos de uma leitura deficitária ou mal orientada é algo que não podemos perder de vista ao abrir um livro. Assim a expressão: “o importante é ler” precisa ser tomada com cuidado. Sim ler é importante e devemos ler de tudo. No entanto, o mais importante é não apenas ler, mas colocar à prova o entendimento daquilo que se lê.

Assim, ainda que a leitura possa instigar as pessoas a pensarem que a leitura em si mesma é suficiente para o conhecimento, sem a exposição franca das ideias, sem a abertura à crítica e sem a disposição à revisão, a releitura e retomada de conceitos e reelaboração do próprio entendimento, que apenas a fala-ação proporciona, fiar-se plenamente apenas no que apreendemos de nossas leituras, pode estar apenas nos alienando.

Em suma, a escrita é um produto social, e sempre carrega as contradições das relações sociais. É no debate, na explanação, na reverberação de uma leitura que nos desenvolvemos e tornamos razoáveis nossos saberes. Em nada, nem mesmo com um texto sagrado, nos tornamos melhores apenas lendo. Como seres sociais nos tornamos melhores se somos capazes de socializar-nos, nossas leituras são pontes nesse processo. Com elas, no entanto, podemos construir muros...

quarta-feira, maio 20, 2020

AQUI PERTO

Nas cercanias de Aqui Perto tinha lá um abobalhado, produtor de laranjas, que não dizia coisa com coisa, e vivia encostado. Tipo parvo, quando metia uma ideia na cabeça, não tinha ciência que a demovesse. Era sujeito folclórico, popular em conversas de boteco. E não é que o abestado deu de ser prefeito e foi eleito. Em exercício decretou, para combater uma "gripezinha" que assolava a cidade, refeições a base de grama. Inquirida sobre o que pensava, minha avó respondeu: "Não é com o louco que me espanto, meu espanto é com quem o segue, responsável por este traste é quem o elegeu".

SOBRE O MUNDO NOVO


"Uma criança para se tornar adulta precisa de adultos" (Rodner Lúcio)
Quando um mundo acaba, com ele tudo acaba. Um mundo novo, no entanto, não se constitui do nada, um mundo novo se ergue dos escombros, das ruínas do mundo velho. A tarefa de constituição de um novo mundo passa por decidir sobre o que preservar e o que descartar do que tiramos das ruínas. Com cacos podemos produzir mosaicos, com fragmentos podemos recompor histórias, preservar memórias. Um mundo quando acaba nos lega sítios arqueológicos. Um mundo novo só se sustenta se não esquecer o que levou à ruína o mundo antigo. É de ruínas de um antigo mundo que nos chegam a luzes para o novo mundo. O novo só vinga se embalado nos braços do antigo.

terça-feira, maio 19, 2020

PARA QUEM PENSA QUE ESTAMOS BEM


“Estar bem é estar morto!”
“Nós só sabemos que algo é destino depois que o vivemos” (Eurípedes Dos Santos)

Nós sorrimos, nós cantamos, nós dançamos e conversamos amenidades. Nós nos alegramos com a alegria de outros. Nós nos encantamos com a flor que, de botão, torna-se plena à luz do sol. Nós nos encantamos com a borboleta que, na flor, repousa o voo. Pássaros nos encantam, um sorriso nos encanta, uma canção, a página de um livro, a conversa com os amigos... Os meninos brincando como se nada estivesse ocorrendo prende a atenção, apreende e nos faz quere um outro mundo, em que eles não deixem de ser meninos, mesmo com as coisas ocorrendo. E por eles, e por teus sonhos, ficamos “bem”. Nós escrevemos coisas sem nexo, coisas que não compreendemos e coisas corriqueiras: vaidades e banalidade. Na verdade não sabemos outra forma de escapar ao que nos insidia. E ler, lemos compulsivamente, como escrevemos. Nós buscamos nesses fragmentos lampejos de esperança, tênues chamas que nos legaram a humanidade em continua tempestade...
Sorrimos, cantamos, dançamos e nos fazemos alegres com a alegria dos presentes. Mas não estamos bem, não sabemos estar bem. Apenas, com desejos outros, estamos vivos. “Só os mortos ficam bem! E por ora sigo um princípio: “um pai não deve enterrar o filho”. Princípios também sucumbem...

Meu amor,
Caso eu salte
Nos braços daquela
Que em meus ouvidos
Canta
Não foi por não
Amar a vida que tanto me
Espanta
E nem a você que me
encanta
É  que desde que sou
Sou mais para o
Salto
Que para o amor




sexta-feira, maio 15, 2020

SABER

O verdadeiro saber
É saber que não sabe
E que conhecer é
inversa proporcionalidade:
Quanto mais se conhece
Menos se sabe
Daí que, para alguns
Ignorar parece
Vantagem
Mas saber que não sabe
Não é ignorar
Ignorar é não saber
Que não sabe
E se orgulhar
Deste vazio
Um que sabe não saber
Esta sempre a conhecer
O ignorante voluntário
Apavoa-se sábio

domingo, maio 10, 2020

MÃE IRMÃ DO CARMO


“Uma experiência particular não obtusa quem visa o Universal”
Rodner Lúcio

A superiora Irmã do Carmo chegou na semana do dia das mães, substituiria irmã Augusta na direção do orfanato. E às vésperas da celebração, funcionários, voluntários, a irmandade das Irmãs de Maria Mãe dos Órfãos, todos, empenhavam-se em decolar os espaços do orfanato com temas maternos.
Na sala de artes, em meio a cola, tintas, pincéis, fitilhos..., Irmã Eustácia produzia, com os órfãos, pequenos mimos que seriam entregues às “mães voluntárias”, um grupo de senhoras que assistiam as obras de caridade da Irmandade, durante a missa do domingo.
No fundo da sala, um menino carrancudo se ocupava em despregar os enfeites que as voluntárias colocavam. Sua vontade era destruir aqueles mimos de Irmã Eustácia. “Deixa ela dar bobeira!”, pensava.
“E aquele?”, perguntou Irmã do Carmo apontando-o.
“É o Rodner!”, disse irmã Eustácia. “É sempre assim. Todo ano, toda festa, sempre mau humorado. Tem que estar de olho nele, senão ele estraga tudo...”
“Faz tempo que está conosco?” Perguntou Irmã do Carmo.
“Chegou com poucos meses. Irmã Dorita o acolheu da roda”
“Aqui todos são ‘filhos da roda’?”, perguntou Irmã do Carmo.
“São sim!” respondeu irmã Eustácia, com desapontamento.
“Então tiveram mais sorte que eu!”, disse Irmã do Carmo.
Gestos maquinais de cortes, recortes, cola, pinta amarra dependura, alarido de conversas amenas, suspenderam-se. Olhares inquietos, interrogativos pousaram sobre as palavras de Irmã do Carmo.
Rodner, o carrancudo, foi quem indagou: “que sorte há em ser abandonado, em não saber quem são seus pais, se é amado por quem deveria te amar?”
“A sorte meu caro”, começou Irmã do Carmo, “a sorte de quem não sabe se é amado por quem deveria amá-lo é maior que a sorte de quem sabe por que não é amada por quem deveria amá-la. É maior ainda que a sorte de quem sabe ser odiada por quem deveria ama-la”.
E continuou Irmã do Carmo:
Não saber-se amado, não significa ser odiado. Pois, por muitos e diversos motivos cada um de nós chegamos aqui, neste orfanato, através da “roda”. Os poucos dias de vida ou meses, não nos permitem muitas certezas. Não sabemos se éramos amados ou não. Mas uma coisa é certa e eu aprendi: por amor, uma mãe é capaz de abandonar o filho. Querer que o filho viva, querer-lhe o bem, e saber que só poderá oferecer-lhe sofrimento, leva muitas mães a abandonarem os filhos... Então, não saber o motivo de estarmos aqui nos deixa aberta a hipótese do amor. Isto já é uma tremenda sorte. Depois não sabermos se fomos amados, não nos impede de sabermos se estamos sendo amados, e é isto que importa: estamos sendo amados?
Mas aproveito esta conversa franca para dizer a vocês de algo mais grave. Mais grave que não saber se foi amado é saber que se é odiado, e odiado por quem deveria amar-nos.
Eu não cheguei ao orfanato com poucos dias ou meses de vida, cheguei aos oito anos. E quando fui abandonada por minha mãe na porta das Irmãs da Irmandade, ela disse-me, em minha cara: “Eu te odeio desde o dia que te pari, você só atrasou minha vida, meus sonhos e só me trouxe tormentos. Não sei por que não te abortei, não te matei no primeiro momento. Vai, some de minha vista, desapareça!”. E minha mãe desapareceu no meio da multidão.
Foi mesmo assim, num fim de tarde de sábado chuvoso e frio. De quem eu tudo esperava ecoou dentro de mim: “eu te odeio”
Tinha apenas oito anos e uma boneca de pano sem um olho e um braço...Pela graça de Deus deparei-me com a porta da Irmandade. Uma noviça me acolheu.
Levei uma vida a me castigar, maltratando-me, culpando-me pelo ódio de minha mãe, eu tinha arruinado a sua e a minha vida. E mesmo já irmã, odiava-me, não achava-me amada, não achava motivos para ser amada. Uma irmã que não ama, meus queridos, uma irmã que não ama é o capeta. E eu fui, por muito tempo o diabo de vestes. Por onde andava provocava estragos.
Certa feita, no meu canto, isolada, solitária, amarga, ouvi uma conversa: “Ela vai nos arruinar, ela vai nos por abaixo..., não há quem goste dela, nem ela...” dizia uma das vozes. Então a outra retrucou: “Então, irmã, é este o nosso esforço: amá-la por ela, se ela mesma não se ama, nós a amaremos por ela”. Mas a outra voz insistiu: “Mas irmã, um que não sabe o que é ser amado, sendo amado, não saberá que é; ela nos colocará abaixo. Ou a mandamos embora, ou será nossa ruína!” “Ela indo, vou junto, não a abandonarei”; ouvi de uma terceira voz.
Eu tinha plena certeza de que falavam de mim. E durante dias vivi a expectativa de ser desligada da Irmandade. Uma inquietação tomava-me tempo e angustiava-me: procurava saber quem dentre as irmãs estava disposta a ficar a meu lado. A voz não me era desconhecida, mas por mais que me esforçasse não me ocorria lembrar qual irmã abandonaria tudo por mim.
Um dia, na ocupação de deslindar esta procura, caiu-me em mãos a obediência. Eu devia fazer as malas, seria transferida para a Casa Maria Mãe dos Homens. Era o orfanato onde eu vivera.
Quando a porta abriu, recebeu-me irmã Colatina: Ben tornata figliola (Bem vinda filhinha)”. Fora irmã Colatina aquela noviça que me recebera naquela fatídica tarde de meu abandono.
Vendo-a braços abertos, sorriso franco, confiante chamar-me figliola, descobri a voz que eu procurava desvendar. Recordei-me, então, de algo que ela me dissera quando eu ainda era uma meninota carrancuda desfazendo-se de tudo que lembrasse festa: “Sabe, dizia-me irmã Colatina, na vida devemos aprender tudo. Devemos, sobretudo, aprender a fazer escolhas. Ocupar-nos por saber porquê não fomos amados é uma empresa impossível, muitos podem ter sido os motivos, pode até mesmo não ter havido um.  O importante não é sabermos porque não fomos amados, o importante é sabermos se estamos sendo amados. É com o que estamos sendo que fazemos nossas melhores e nossas piores escolhas. O passado nos deixam pedras, com pedras construímos túmulos, muros, estradas, castelos e armas. As pedras ai estão, o que vamos construir: nós decidimos.”
O fato, queridos que naquele reencontro com Irmã Colatina, o conforto de seu abraço, o calor carinhoso de sua voz, o sorriso materno me acolhendo ressoou em mim a voz que eu ouvira: “Eu não a abandonarei!”
Nunca mais preocupei-me em saber porque minha mãe me adiara. Passei a ocupar-me com quem me amava e a corresponder a aquele amor que me acolhia e me abria os braços.
Termino, queridos, esta falação toda com uma pergunta: “Quando procuramos uma moeda perdida, somos nós que a encontramos ou é ela que se deixa achar, melhor, que nos encontra?
Nós nem sempre sabemos se fomos amados, mas se procurarmos amar,o amor nos encontrará...
No mesmo dia que minha mãe me abandonou, irmã Colatina me acolheu. Assim é a celebração do dia das mães, celebração que odiei durante muito tempo na minha vida. No dia das mães não celebramos uma figura particular. Alias nenhuma celebração é de algo particular, nenhuma mãe é perfeita, nenhuma mães e parece com as mães que vemos nas propagandas. No dia das mães celebramos um amor sem medidas, e por não ter medidas não cabe em ninguém em particular. Saber se fomos amados é menos importe que saber se queremos amar. E é apenas querendo amar mais que ter sido amado é que descobrimos que mãe é quem nos acolhe e não nos abandona, mesmo que não nos ponha no mundo.


*****

Contou-me esta história Rodner Lúcio. Caminhávamos ao logo do Tevere, em Roma. Era um domingo de maio, o segundo. Andávamos à Irmandade de Maria Mãe dos Órfãos. Rodner Lúcio portava consigo uma boneca de pano que ele havia confeccionado.

sexta-feira, maio 08, 2020

A VERDADE NOS LIBERTARÁ?


As pronunciadas palavras de Jesus: “conheceis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8, 32), em bocas mal-intencionadas, precisa ser esclarecida.
Consciente ou não do que fazia, Jesus, o Nazareno, que ao longo dos séculos foi tornado o Cristo, deu-se a tarefa de humanizar o homem.
E nesta tarefa que acabou em aparente fracasso, seja por sua desfigurada pessoa na cruz, seja pelo uso que se faz de seu nome nos dias de hoje, encontramos a razão de continuar apostando na realização de seu Reino entre nós. Vejamos.  
Em seu ensinamento, antes de tudo, Jesus afirma a presença divina, não como presença transcendente, mas como presença histórica, que se dá na intervenção humana na história. O deus que Jesus ensina é um Deus na história, com a história, com uma ampla e generosa opção pelos mais pobres, começando pelos mais desvalidos: os cegos, os coxos, os paralíticos, os leprosos, os surdos, as adulteras e prostitutas, marcados pela rejeição pelo abandono pela morte (Mt. 5-6).
Na pedagogia do Nazareno, Amor conjuga-se com perdão, acolhida, distribuição e partilha dos dons e dos bens. A fé é atitude de humildade e caridade e de expectativa operativa e não resignada.
Como aquele que Deus enviou para preparar o caminho, João Batista, que não se veste de roupas luxuosas, nem vive em palácios (Mt 11, 9s), Jesus também apresenta-se simplório e chega a ser considerado comilão, beberrão, amigo de populares e devassos... (Mt, 11, 19).
Caminhando pelas ruas, entre os mais simples e os últimos de sua sociedade, Jesus nunca tomou a si mesmo como messias e proíbe contundentemente qualquer publicidade sobre seu possível messianismo (Mt. 16, 20; Lc 9, 21, Mc 8, 30).
Como dissemos, o reinado divino que Jesus anuncia não se instaura com a ação divina, mas com a intervenção humana nos rumos de sua história. Diante de uma multidão faminta: “Daí-lhes vós mesmo de comer” é o apelo que Jesus nos faz. E mesmo ele operando a multiplicação dos pães, adiante nos lembrará: “Dei-vos o exemplo para que, como eu voz fiz, assim façais também vós” (Jo 13, 15). E em sua despida, repassando com os discípulos tudo o que havia ensinado diz: “Ide pois, e ensinai a todas as nações... Ensinai-as a observar tudo que vos prescrevi.” (Mt. 28 19; 20). Ensinar, não é impor, não é submeter, não é reduzir o outro ao que cremos, ensinar é viver o que cremos aceitando que outros possam não crer. Mas o que foi mesmo que Jesus nos prescreveu?
1º A tua oferta não é mais importante que a reconciliação com teu irmão. E é melhor entrar em acordo com teu adversário que ficar de joelhos prostrados em oração ou estar em dia com o dizimo.
2º A mulher deve ser respeitada até mesmo em pensamento e nós homens não devemos ser a causa de sua difamação.
3º O falso juramento, o testemunho falso não promove a justiça e te condena diante de Deus.
4º Não faças propaganda de tua compaixão e misericórdia, se tiras proveito de tuas ações elas são políticas e não práticas de caridade.    
5º Devolvas aos pobres os bens que deles tirastes. (Mt., 5-6, 19, 16-22)
No reino que o Nazareno nos propõe “os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos ouvem, os mortos são [respeitados] e ressuscitam, e a Boa Nova é anunciada aos pobres. (Mt. 11, 5). Cabe lembrar, novamente: Como ensinar, anunciar não é impor, nem condicionar a ação divina à aceitação do anúncio. Não! Independente da aceitação ou não do anúncio por parte de quem o recebe, ele realiza o reino das bem-aventuranças se aquele que as anuncia, as anuncia com a vida, isto é, na vivência destas bem-aventuranças...
Em uma sociedade em que muitos já nascem enjeitados, rejeitados e condenados à morte, ter a garantia de viver já é ressurreição. Ter a garantia de que nossos mortos receberão o respeito solene da despedida dos seus e esses a devida e respeitosa consolação, é já ressurreição. O Deus do Nazareno não é transcendência; é história presente, é a dignificação do homem no agora de sua história.
A promessa do Cristo é algo presente: o esfomeado come, o doente é atendido, é cuidado, é curado, o desempregado é tratado com a mesma dignidade e respeito que o empregado... o aposentado é respeitado e sua experiência é valorizada... Não há reino futuro, há reino no agora, no agir de cada homem e de cada mulher que o coloca em andamento... A ressurreição não é o amanhã: é o hoje, ou não é.
“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (Jo 8, 32). E eis a verdade do Cristo: “porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber, era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim” (Mt. 25, 35ss), por tudo isto realizastes o Reino. Que os que têm olhos que vejam, e os que têm entendimento, que entendam, parafraseando Mateus 13, 9...

quarta-feira, maio 06, 2020

DESTE CÁLICE NÃO HEI DE TOMAR


"Os que lavam as mãos o fazem em uma bacia de sangue"
De Lima Duarte para Flavio Migliaccio

De fato nós não demos certos
Somos irremediáveis
Em apostar
Nos que nos des-humanizam
Des sempre foi-nos mais
sedutor
Que cons e co
Des-união, des- construção
Des-pertencimento
Con-tradição
Nos seduz de fora
Anulando-nos o que nos
É intimo
Um outro mundo
é em nós
Eu não banhei minhas mãos
Nesta bacia
Que a orgulhosa ignorância
Oferece-nos
Deste cálice que a tantos inebria:
Pátria, Deus, Família
Minha insanidade me
Imuniza
Antes o salto
A tomar parte
Desta
Idiocracia...

segunda-feira, maio 04, 2020

MONUMENTO

Aos que vão partindo, enquanto não assumimos a coragem de seguir-lhes o caminho.

Como temos em toda parte monumento
aos soldados mortos na guerra
como se erigiu monumentos
às vitimas da covardia nazi-fascista
havemos de ter monumentos às vitimas
da covid-19
vitimas da mesquinhez e da ignorância
mais
que do vírus corona.
A função pedagógica de um monumento
é nos lembrar
que podemos ser melhores do que
temos sido
que podemos ser
humanos
que não precisamos ser atrozes.
Mas porque deles só tiramos proveito
para "belas" fotos
Havemos sempre de os erigir...
escolhemos sempre sermos
piores...

QUERELAS DO BRASIL


Hoje, muitos de nós iremos relembrar à exautão a magistral obra de Aldir Blanc: O Bêbado e o Equilibrista, magistralmente interpretada por Elis Regina. Para mim no entanto, Querelas do Brasil, composição de Aldir Blanc e Mauricio Tapajós, também interpretada magistralmente por Elis Regina é de um atualidade nua, crua, desesperante:
O Brazil (este acima de todos) não conhece o Brasil (este das centenas de vidas perdidas como a de Aldir Blanc numa crise pandêmica)
O Brasil (este que vai às ruas manifestar-se em favor de um louco) nunca foi ao Brazil (ao Brasil que sempre sofreu o descaso com a saúde pública, com a falta de investimento em educação de qualidade, que vê negado seus direitos mais básicos)
O Brazil (que bate continência à bandeira americana, e pede intervenção militar) não merece o Brasil (da massa trabalhadora, dos brasileiros na informalidade, dos que estão na luta de frente na batalha com a covid-19: médicos, enfermeiros, voluntários...)
O Brazil (da ignorância instituida, das fake news) tá matando o Brasil (de balas perdidas, de negacionismos)
Do Brasil (desta gente que insiste, resiste e luta), S.O.S. ao Brazil (Dos que não desiste da utopia de um Brasil solidario, humanitário, justo)
"O Brazil não conhece o Brasil
O Brasil nunca foi ao Brazil
O Brazil não merece o Brasil
O Brazil tá matando o Brasil
Do Brasil, S.O.S. ao Brazil
Do Brasil, S.O.S. ao Brasil"
Aldir Blanc/Maurício Tapajós. QUERELAS DO BRASIL

sábado, maio 02, 2020

A CABEÇA E O RABO DA COBRA*


Em A cabeça e o rabo da cobra, Tolstói narra o seguinte:

O rabo e a cabeça da cobra discutiam sobre quem devia andar na frente. A cabeça disse:
- Você não pode ir na frente, você não tem olhos nem ouvidos.
O rabo disse:
- Em compensação, a força está em mim, sou eu que faço você andar: se eu quiser, me enrosco numa árvore e você não vai sair do lugar.
A cabeça disse:
- então vamos nos separar!
E o rabo separou-se da cabeça e rastejou para frente. Mas assim que se afastou um poço da cabeça, caiu num buraco e sumiu.

Parece-me que a fábula de Tolstoi ilustra bem o confronto de hoje em Curitiba entre moroloídes e bolsolóides. O que Tolstói não relata é que enquanto o rabo de cobra vai pro buraco, a cabeça cega e surda se alia a outra qualidade de cobra: o tal centrão. Esta sim é venenosa.

* In Liev Tolstói Contos Completos. Tradução Rubens Figueiredo. Vol II. São Paulo: Cosac Naif. 2015

sexta-feira, maio 01, 2020

NADA MUDAMOS SENÃO A NÓS MESMOS




A história da humanidade é a história que o homem empreendeu para se proteger da natureza em busca de alimento, abrigo, proteção, segurança. De caça, o homem passou a caçador, de coletor de grão, frutos, raízes, passou a cultivador do solo, de habitante das copas de árvores, fendas e cavernas, tornou-se construtor de cabanas, casebres, palácios, templos, de errante nômade, apropriou-se de territórios, fixou-se e formou comunidades: aldeias, tribos, cidades, megalópoles. Aprendeu a dominar o fogo, a usar a força dos ventos, a enfrentar a fúria das tempestades, alcançou o espaço.
Em sua aventura, o homem enfrentou tormentas, furacões, terremotos, irrupções vulcânicas. Instalou-se nas mais inóspitas regiões do planeta, se enfrentou em guerras, foi atingido por calamidades naturais e terríveis flagelos, frutos de suas mãos. Milhões de espécies animais e vegetais foram anuladas, povos foram dizimados, vidas escravizadas, sacrificadas para atingirmos conforto, comodidade, segurança.
Levou séculos, mas o homem tornou-se capaz de conhecer e usar a seu favor as leis da natureza, criou um mundo próprio: o mundo humano. Acreditando-se senhor de si e de tudo o que o rodeia, o homem entrou numa corrida suicida de a tudo e a todos dominar e submeter.
A natureza, embora se deixe conhecer, e se ofereça às necessidades humanas, continua seu curso, que alguns julgam saber quando começa – o fim, em todos os sentidos é especulação, ninguém sabe como nossa história termina –, indiferente à criação humana, seu mundo de “comodidades”, “bem estar”, “desfrute de seus prazeres e poder”, o universo mantém suas leis.   De quando em quando a natureza – que nãos se vinga – nos  faz lembrar que também nós somos naturais e que aniquila-la é nos aniquilar, que conhecer suas leis não nos tornam seus senhores, nos tornam responsáveis por nossos destinos. E onde não há respeito por todos e por tudo não há futuro. A natureza não precisa de nós, somos nós que dela dependemos. A extinção da vida humana não afeta a existência do universo. Nossa música, nossa dança, nossa poesia, nossa arrogância, nada abala suas leis. Não basta conhecer e manipular as leis da natureza. Entre nós, passou um sábio que ensinava: “é preciso conhecer-te a ti mesmo.” Em tudo o que fazemos, nada mudamos se não mudamos a nós mesmos: eis a lei que nos imprimiu a natureza.