quinta-feira, setembro 26, 2019

DE ELIZABETH ECKFORD A GRETA TUMBERG: CRIANÇA NÃO MUDA O MUNDO, CRIANÇA RECEBE UM MUNDO A SER MUDADO.




No dia 4 de setembro de 1957, Elizabeth Eckford e outros oito estudantes negros, procurando fazer cumprir uma determinação do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, tentaram entrar na Little Rock Central High School, uma escola, até então, reservada para estudantes brancos. O Supremo Tribunal dos Estados Unidos havia declarado ilegal a segregação racial e exigia que se efetivasse a integração de alunos negros às escolas. A imagem de Elizabeth Eckford sendo hostilizada por alunos e pais de alunos brancos ganhou as páginas de jornais e revistas norte americanas. E levou Hannah Arendt a redigir um polêmico ensaio, “Reflexões sobre Little Rock”, publicado apenas em 1959 pela revista Dissent, com notas explicativas à abordagem de Arendt sobre temas controversos, como segregação e discriminação. Polêmicas a parte, aqui me interessa destacar a constatação arendtiana de que nós adultos renunciamos à nossa responsabilidade pelo mundo, empurrando-a para as crianças e jovens. Em seu artigo, Arendt critica a exposição e o abandono de crianças e jovens aos holofotes públicos, assumindo a posição que caberia a nós adultos ocupar.  A imagem de Greta Tumberg com mega fone em mãos, e a campanha de ódio, fake news e preconceitos que se dirigem contra ela, reproduzem, em um outro contexto, a imagem de Elizabeth Eckford sendo hostilizada por homens e mulheres resistentes à integração do negro à sociedade. As questões que envolvem a proteção do planeta e a preservação do mundo, espaço das relações humanas, são questões que nós adultos deveríamos estar enfrentando. Mas, parece-me, que a intuição arendtiana, de que nós adultos nos omitimos de nossa responsabilidade apenas se aprofundou. Parece patente que temos delegado às crianças e jovens enfrentarem problemas que nós criamos e que coloca o destino do planeta, do mundo e das novas gerações em risco. Ao invés de ficarmos atacando a pequena Greta, poderíamos nos dar o trabalho de pensar sobre o que estamos fazendo e porque não somos nós a estar ocupando a posição que a pequena Greta ocupa. Crianças não têm que mudar o mundo, elas têm que recebê-lo de nós adultos como espaço que lhes possibilite a emergência do novo. Que mundo estamos legando a nossas crianças? As novas gerações terão um mundo a receber? A Greta e outras crianças até podem dar uma resposta a tais perguntas. Mas é a nós, adultos, que cabe a responsabilidade de garantir a continuidade do mundo.

Para quem quer se inteirar das reflexões de Hannah Arendt sobre Little Rock, seu texto se encontra em sua obra Responsabilidade e julgamento, publicado pela Companhia das Letras.

segunda-feira, setembro 23, 2019

BALA PERDIDA



Toda bala perdida parte da arma de um policial. E toda bala perdida encontra sempre um inocente. Nessa guerra em que só inocentes morrem, quem puxa o gatilho dorme tranquilo? Como alguém que tira a vida de uma criança, mesmo que por “erro” ou “engano”, olha para si e se explica? Basta responder-se: “estava apenas cumprindo meu dever, foi uma fatalidade, uma casualidade”? A bala é perdida, mas quem puxa o gatilho, o que é? Como ele se responde? “Cumpri a ordem de meu comandante!” o faz dormir em paz ou lhe tira o sono? No corpo caído há sempre um inocente. Mas que tipo de homem se encontra atrás de uma bala perdida?  Toda bala perdida parte de um assassino, que se esconde atrás de um comando. Na bala perdida não há erro ou engano, o que ela cumpre é o desejo de quem puxa o gatilho. O desejo de quem atira, antes ou depois, pouco importa, é matar. Tirar a vida de outro é sua sede. Toda bala perdida parte de um assassino, de alguém que sonha em tirar vidas! Toda bala perdida é uma realização para quem atira!

sexta-feira, setembro 20, 2019

Sobre o Ato de Ler

“O livro perde sua razão se fechado”


Nós vivemos rodeados de leitores analfabetos como aponta Leonardo Boff na seguinte passagem: “O pior analfabeto é aquele que sabe ler, mas não tem paciência para ler. Falta-lhe tempo”. Seguindo Boff ressalta: “A leitura nos dá um tempo que nunca teremos. O tempo de ouvir o que de fato pensamos ser e somos ... A leitura não pode ser dinâmica. Deve ser lenta ... Lenta e intensa como uma noite de amor. Lenta e inesquecível como a contemplação de uma cachoeira gigante. Lenta e estimulante como uma oração na catedral da alma... A liberdade de pensar não é um meio com o qual atingimos uma liberdade maior. A liberdade de pensar é um objetivo com o qual atingimos a própria liberdade de existir...” (Leonardo Boff, O despertar da Águia, 209).
Adriano, personagem de Youcernar lembra-nos que: “Um homem que lê,  pensa ou calcula, pertence a espécie e não ao sexo; nos seus melhores momentos ele escapa, inclusive, ao humano” (Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano, 70).
Para circunstâncias como a nacional, em O Leitor Criativo, Gabriel Perisse ensina: “... Uma sociedade que deseja recompor-se precisa construir uma linguagem nova em folha, própria dos que redescobrem a pureza do sexo, a ousadia da gratidão, a aventura da gratidão, as exigências do trabalho, a verdadeira função do lucro, o papel da universidade etc... Uma pessoa que deseja expressar-se com mais criatividade e bom senso deve seguir o conselho de Clarice Lispector que, escritora e dona de casa, segredou certa vez: “Todos os dias, quando acordo, vou correndo tirar poeira da palavra amor”. (Gabriel Perisse, O Leitor Criativo, Ômega Editora, São Paulo, 2001, 10, 15-16).
A leitura exige um esforço de conquista, pois “todo livro é como uma fortaleza que não pode ser conquistada por fora. Do contrário, acharíamos ser suficiente a leitura que nos obrigam na escola.” (Boris Gunjevic, Todo Livro é como uma fortaleza: a carne foi feita verbo. In ZIZEK, Slavoj; GUNJEVIC, Boris. O sofrimento de Deus, Invenções do Apocalipse, p 109.) Assim: “Não se pode obter nada de uma leitura feita sob pressão. Se todo livro é uma fortaleza, eles precisam ser conquistados por dentro: é preciso haver o desejo de dominar o texto com uma intenção subjetiva. Somente esse tipo de leitura se torna uma luta de classes, e dizemos isso com uma pitada de anacronismo irônico. Daí a leitura ser primordialmente uma forma múltipla de comunicações e um locus de lutas ideológicas, como sempre foi dito por Roland Barthes... Ler numa época dominada pela “imagem” não é algo que se faz nas horas vagas, ou como privilégio de uma minoria dominante, mas antes como prática diária de resistência aos sistemas interligados de poder e controle. É por esse motivo que estratégias de leitura se tornaram categoria fundamental das estratégias políticas...” 
Neste sentido, Paulo Freire lembra que “a compreensão de um texto não é algo que se recebe de presente. Exige trabalho paciente de quem por ele se sente problematizado” (Paulo Freire, Considerações em torno do ato de estudar, em Ação Cultural para a liberdade e outros escritos, p. 14). 
Rodner Lúcio explica que “o sentido de um texto não está no texto, não está no autor do texto, está no leitor do texto, munido de seus filtros existenciais.” De tal modo, “é preciso considerar os modos como as pessoas leem o mundo, dão significado às suas práticas e relações, como se explicam e se situam nas teias de relações em que se inserem.” Nesta dinâmica, muitas vezes, “uma coisa é o que o autor escreve, outra coisa é o que o leitor apreende.” Daí que, “nem sempre a leitura “liberta”. A leitura também cega, reforça obscurantismos.” (Euripedes dos Santos).
Uma revolução não se faz sem livros: “Sem leitura promovemos muitas passeatas, mas nenhuma revolução” Rodner Lúcio. Mas uma leitura desencarnada, que não considere “a leitura de mundo do leitor”, apenas domestica. 




quinta-feira, setembro 12, 2019

REFLEXÕES SETEMBRINAS




I

Eu tenho posições muito pouco claras e muito pouco serenas sobre o suicídio. Há, a meu ver, suicídios que são resultados de doenças psíquicas reunidas e resumidas na depressão. Há as pressões sociais, políticas, econômicas que influenciam a prática. Ao fim, é só uma forma de morrer. E como uma forma de morrer, é a que povoa meus pensamentos. As circunstâncias políticas e econômicas são propícias, as estruturas psíquicas também favorecem... No entanto, há, ainda, em mim, a vaga consciência de que nenhuma escolha pessoal produz efeitos apenas sobre quem escolhe: toda escolha pessoal atinge a comunidade afetiva de que um faz parte. E minha comunidade afetiva não está preparada para um gesto individual impactante como o suicídio. É esse frágil elo, essa, às vezes, quase apagada consideração de afeto e de responsabilidade aos afetos da comunidade afetiva que me vai firmando. Mas, há dias que o desejo é de renuncia... Há também o receio do fracasso, algo possível em qualquer empreendimento humano. Este é o fio mais resistente.

II

Quando adoecemos, adoecemos também as pessoas a nosso redor, as tornamos reféns de nosso adoecer. As doenças psíquicas, principalmente, aprisionam as pessoas a nós. Um doente é um incomodo... Não devíamos ser gaiolas para ninguém. Não temos o direito de tolher a existência, o desejo de voar das pessoas que nos cercam. Para elas deveríamos ser trampolins, ser apoio, sustento para que desenvolvam suas potencialidades.  Ao adoecer deveríamos nos afastar, e eu tenho estado com esta ideia na cabeça... Se você some, você cria um desespero nas pessoas, morrer as liberta.

III

A morte é uma transcendência da condição humana. Qualquer que seja a maneira, não se dá quando queremos, como queremos. Mesmo no suicídio morrer não é um ato de vontade; é um acontecer. A morte, seja de que modo for, é um acontecer. O acontecer é um kairós, um tempo oportuno, um tempo de graça. Morrer é doação no tempo. A morte tem o seu momento; o ato de vontade as circunstâncias, o gatilho que o dispara... Às vezes, o ato de vontade e o acontecer se encontram, mas nem sempre. A incerteza nos faz hesitar... Eu projeto-me me passar, o acontecer espreita, mas não se aproxima, aguarda as circunstâncias... Eu a certeza de sucesso...

   

quarta-feira, setembro 11, 2019

SOBRE O BEIJO


O mal não é uma entidade ou um personagem. O mal é fruto das ações humanas. Apresenta-se nos efeitos indesejados de uma escolha ou nos resultados de uma escolha. O mal verdadeiro é o resultado de uma escolha: quando, de antemão, sabemos que ao fim de uma ação alguém sairá prejudicado e este é o nosso intento. Este tipo de mal se alimenta da inveja, do ciúme, da vontade egoística de possuir tudo pra si, do ódio. Ele provoca divisões, desentendimentos, separações, inimizades, sofrimento, doenças. Ele descaracteriza as pessoas, as mutilam, as humilham, tira-lhes a dignidade humana. E, em sua realização mais radical: a morte, apresenta-se soberbo.  As histórias infantis narram sempre as peripécias de um personagem perseguido por um vilão, geralmente ambicioso, invejoso, orgulhoso, reclamando uma posição que não é sua. O herói, enredado nas tramas e tramoias e trapaças do vilão, perde a confiança dos amigos, perde o direito à pátria, o direito a caminhar livremente, a viver plenamente: sem enfeitiçados, envenenados, mortos. Ao fim das narrativas, os vilões sempre vencem. Não, a história não termina com a vitória do vilão que reduz o herói a um algo inerte, adormecido e, por vezes morto. Sempre aparece um príncipe – que tem sua raiz em principium, fundamento, o que sustenta o inicio ou o iniciar de uma ação – que sela o personagem com um beijo e resgata-lhe o direito de ser, de ocupar o seu lugar, de viver. O beijo é o ultimo recurso humano contra as ações maléficas de homens e mulheres investidos de excessos, cegados pela inveja, a cobiça o ódio. O beijo rompe a cadeia de eventos que aprisiona o herói no feitiço, no veneno, na morte. O beijo inaugura a possibilidade do novo, o milagre do inesperado, quando tudo parece ser desespero. Nas histórias infantis o beijo encerra a história, ele não é apresentado como uma conquista, ou o ato de uma sedução, mas como uma doação. O beijo vence as ações más, porque, também ação humana, o beijo, nas histórias infantis é princípio vital, é força restauradora, é milagre que nos convida a uma nova história. Vivemos sob o signo do ódio, e os que odeiam, odeiam a manifestação da vida, a potencialidade do encontro, a emergência do novo. Os que odeiam se apegam ao gasto, ao carcomido, ao esgotado, ao pútrido de nossa história. O que eles chamam tradicional é o embotado, o corrompido, o que nega o tempo novo. Por isso vetam o beijo homoafetivo. Beijar é vida, e os que odeiam, odeiam a vida, mesmo que digam seguir um Deus que beijou-nos com um hálito de vida...

terça-feira, setembro 03, 2019

MARINHO


Se serviu para alguma coisa, o Roda Viva expôs o baixo nível do jornalismo corporativo brasileiro (Kiko Nogueira, Diário do Centro do Mundo)

A bodega de pai era frequentada por um certo Marinho, revisor de redação. Marinho trabalhava num dos jornais mais importante da capital. Passava todo dia bem cedinho, quando pai estava abrindo as portas para receber o padeiro, tomava “uma quentinha” para “enfrentar o cargueiro humano até a Capital”. À noitinha, quando voltava da Capital, se instalava ao pé do balcão e só deixava a bodega com pai baixando as portas. Marinho era proseador que só, tinha sempre consigo um exemplar do jornal em que trabalhava, e comentava com outros frequentadores as manchetes, vez ou outra lia as noticias. Muitos não sabiam ler e tenho pra mim, hoje repensando esta figura, Marinho havia se dado a missão de nos informar sobre o mundo. Foi Marinho que me ensinou a desenhar rostos traçando figuras geométricas, ensinou-me também as poucas noções que tenho de fotografia. Mas me interessa, aqui, as observações de Marinho sobre os jornalistas daquele tempo. “Meus caros, vão por mim”, dizia entre uma golada e outra de cachaça, “não confiem em tudo o que vocês leem ou ouvem: os jornais trazem o ponto de vista do editor, aquilo que a ele interessa”. Outras vezes dizia, “o jornal é a voz da empresa jornalística, isto é de seus donos.” Certa feita, voltando de uma visita ao banco, pediu sua cachaça preferida. Sua voz era irritadiça e cansada. Depois de uma golada desabafou: “tem bancário que defende os interesses do banco mais que o banqueiro”. Para mim, molecote, banqueiro e bancário era a mesma coisa: “Não, não são meu caro: um é o dono da mansão, o outro o cãozinho que ladra garantindo sua porção de ração”. Marinho estava para poucas conversas naquele dia.  Noutra feita ele chegou ao ponto desta arenga toda. “Você sabe”, perguntou-me, enquanto eu o servia, “qual a diferença entre um jornaleiro e um jornalista?” Não, eu não sabia: “O jornaleiro vende jornal, o jornalista trabalha para o jornal”. Depois de petiscar uma fatia de salame, confidenciou: “e trabalhar para o jornal é subjugar-se ao subjugado!” Pra mim, Marinho falava grego. “Quem determina o que publicar ou não, onde e quando publicar, se na primeira pagina, se num caderno especifico, ou numa matéria especial, se no centro ou no canto de página, é o editor. O jornalista é só um trabalhador, subjulgado ao editor. E o editor, meu caro, o editor é o cachorrinho de luxo lambendo as botas do dono do jornal”. Marinho, fez uma pausa para cumprimentar um que chegava, ofereceu-lhe uma fatia de salame, uma cachaça. Depois emendou: “Meu caro, não confunda jornaleiro com dono de Jornal: o primeiro vende o jornal, o segundo pauta os rumos do Brasil”. Marinho estava possesso aquele dia, havia discutido com um na redação. “Eu odeio jornalista que entrega sua matéria sem luta, sem resistência, sem reticências. Pra mim, jornalista que abdica de sua capacidade reflexiva, que não toma posição, não é jornalista: é moleque de recado”. Era década de 70 e, um dia, Marinho sumiu.    

domingo, setembro 01, 2019

OLÁVIO E CARVAIO


Vô tinha um pangaré de nome Olávio. E vô e Olávio eram, como dizia vó: “corda e caçamba”. “se eu morrer, este peste não há de dar conta. Mas Olávio que morra, Olávio que morra...”, murmurava vó enciumada.  Distração de vô era conversar com Olávio à sombra do umbuzeiro. Tardezinha, vô tornava da roça, desaparelhava Olávio, soltava-o no pasto. E depois de se banhar e tomar café com broa de fubá, às vezes bolinho de chuva, principalmente quando vinham os primos da cidade, vô pegava palha, fumo de rolo, o canivete a banqueta e se ajeitava debaixo do umbuzeiro para pitar e prosear. Bastava um dois assovios e Olávio se juntava a vô. E vô falava da lida do dia, da terra arada, da semeadura, da expectativa por chuva, de colheita boa, farta; vô falava das coisas que tio ouvia e trazia da cidade: “Essa gente, Olávio, que estuda muito, como Zito, pra saber das coisas, acaba é por não saber nada. Aprendem de tudo, de tudo sabem, mas o necessário: ser justo, manter compromisso, responder pelo que faz. Isso, Olávio, isso, essa gente não aprende não, Olávio!” E Olávio parecia compreender vô, e vô parecia entender Olávio: “Ocê tem razão, Olávio! Ocê tem razão!”, dizia vô aos relinchos do pangaré. Era uma diversão contemplar vô e Olávio à sombra do umbuzeiro. Um dia vô me segredou: “Fio, é tudo encenação, minha e de Olávio, pras pessoas num achar que sou louco, que não funciono das cacholas. Num é com Olávio que converso não, são com minhas ideias, minhas inquietações, uns compadres e umas comadres que me falam aqui dentro desse couro velho.” Um dia veio de eu perguntar a vô o porquê o nome Olávio para o pangaré. “seu tio Zito”, respondeu.  Depois explicou: “Seu tio Zito tem umas ideias que ele trás da cidade que é de chocar até mesmo o Olávio. E quando eu comprei esse Olávio aí, seu tio tava com ideias que ele trazia da cidade de um tal de Olavo que explicava e sabia e tal. Num pensei duas vezes, batizei Olávio, Olávio”. E vô me dizia: “Sabe, fio, eu não sei muita coisa do mundo não, nunca saí deste nosso chão, sempre na lida, num tive tempo de aprender as letras, não. Sua tia até fez esforço pra me ensinar, mas fio, sou casco duro, só sei lidar com a terra e com os bichos.” Eu me divertia com vô e seu Olávio: “Olávio, cê num sabe da nova, Zito tá com ideia de que a terra é plana”... “Ocê tem razão, Ocê tem razão!” Uma vez eu peguei vó conversando sozinha na cozinha: “é cada uma que a gente fica sabendo, vou-te contar...” “Voinha, tá falando sozinha é?” “Não, fio, falo com a porta. Seu vô fala com o Olávio, eu falo com o Carvaio!” Vó tinha dado nome pra porta.   Quando a gente relembra estas coisas, tia, de tudo, acha graça. “A vida no sitio tinha sua graça. Lá no sitio, seu avô conversava com o Olávio, sua avó com o Carvaio, e a dureza daquela lida se aliviava. Mas na cidade, a coisa é trágica: as pessoas se encantam com uma mistura de burro e porta e leva a sério tudo o que ele fala”. E tia cai na risada: “hora desta, eu compro um burro pra chamar de Capitão...”.