segunda-feira, abril 02, 2018

NOS BRAÇOS DE SUZHANA

Um maio dos anos noventa, eu participei de uma oficina de criação literária com um renomado escritor. Em um dos exercícios, tínhamos que apresentar um fruto exótico ou uma cidade e construir uma história a partir desses elementos. Antunes apresentou o cabaço: “O fruto da cabaceira chama a atenção pelo exotismo de seus frutos gigantes grudados ao tronco em tamanho e forma variados. Depois de colhidos e secos, tornam-se pratos, colheres, cuias, chocalhos, corpos de violas e peças de berimbau. Suas sementes podem ser consumidas cozidas ou torradas. E a polpa, em geral, é usada no preparo de xaropes, e tem largo uso na medicina popular como antidiarreico e analgésico. Na língua popular o termo cabaço refere-se ao hímen, à virgindade feminina e à inexperiência masculina em diversos afazeres.” Julio Prestes, ao apresentar Silvânia, localizada no Estado de Goiás, fez questão de lembrar que “nossas origens patriarcais legaram poucos nomes femininos às nossas cidades”. Eu apresentei o baru, uma castanha com sabor similar ao do amendoim, que pode ser consumido in natura, como torrado, em paçoca, rapadura, pé-de-moleque, farinhas. Sua polpa costuma ser usada em óleos, manteigas e tortas. Destas informações e outras mais que foram surgindo nasceu o relato que segue.


Termino o café, pego água, chocolate, balas. Consulto o relógio, dirijo-me ao caixa. Pago a comanda, dirijo-me à plataforma de embarque, procuro um lugar onde aguardar o embarque. Sento-me próximo a dois caburés. Um, com jeito de pé rachado, folheia o jornal, o outro, caneado, confere as informações no bilhete de viagem. Abro o livro e o folheio. “O senhor também vai para Silvânia?”, pergunta o do bilhete ao do jornal. “Não!”, responde o do jornal, com acentuado sotaque goiano, sem tirar os olhos do impresso: “vou ao paraíso”. “Paraíso! Sim! Uma bela cidade!”, redarguiu o caneado, “mas o embarque para o interior não é daquela parte?”, completou. O senhor do jornal, abandonando o jornal, observou: “Não, eu não vou para Paraíso, eu vou ao paraíso.” “Mas, como eu dizia” retomou o do bilhete de viagem, “para Paraíso, se parte da outra parte, aqui se embarca para outros estados”. O senhor do jornal, sorriso maroto, dirigiu-se ao caburé do bilhete, paciensioso: “O senhor não está me entendendo, eu estou indo, de fato, para Silvânia. Mas digo que vou para o paraíso, porque lá me aguarda Elza, minha cafuza, que tenho consumido apenas em sonhos, nestas noites frias de São Paulo. Não vejo a hora de deitar-me ao lado de seu ébano corpo nu, ao luar, embaixo de baruzeiro, reclamando-me. Já me vejo, como timorato cabaço, acariciando-a, despejando-lhe beijos furtivos aos lábios, no cangote, no colo, lambiscando suas morrarias, dois cabeços de onde brotam túmidos mamilos, delicadas amoras. Já me vejo escorrendo a língua, desejoso, à descoberta de formoso botão, abrindo-se em formosa rosa abaixo de tênue penugem. É ao paraíso que vou meu senhor, aos suspiros de perdição e ao brilho dos olhos de minha cabocla. Ao gozo de Elza me destino.” Todo avermelhado, o estrupício do bilhete, abandona o pé rachado do jornal e dirigiu-se a mim: “E a senhorita, também viaja à Silvânia?” “Eu”, sem pestanejar, respondi-lhe: “vou recolher flor de cabaço nos braços de Suzhana, ‘linda morena, fruta de vez temporana’, que hei de desfrutar.” O ônibus chegou, embarcamos todos para Silvânia, cada um carregando um destino.

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