Em um maio de fins dos anos 90, um adolescente branco foi
preso por tráfico. Ele voltava da escola. Apareceu morto num campo de futebol.
Os policiais que o prenderam mirabolaram uma história de resgate, e se atribuiu
a sua morte a execução de facções criminosas. Poucas pessoas se manifestaram
contra o absurdo da história narrada pelos policiais. Josuelmo Santos, líder
comunitário, presidente da Associação de Resistência da População
Afrodescendente, foi um dos poucos a exigir esclarecimento a respeito das
condições inexplicáveis da morte de um jovem sob responsabilidade da policia.
Tanto fez que para desacreditarem-no, forjaram um denuncia de desvio de
recursos da associação. As pessoas mais próximas à Associação, descontente com
seu interesse em defender um jovem branco, aderiram aos que o acusavam e
passaram a exigir-lhe o cargo. Então,
numa certa tarde deste maio, um certo Themer, propondo assumir sua posição na
associação, assumiu o seguinte discurso: “de cada quatro pessoas mortas pela
polícia, três são negras. Nossa causa é o povo preto da periferia. São nossos
filhos que morrem todos os dias na guerra do tráfico, no fogo cruzado entre
milícias, polícias e políticos pelo controle da comunidade. Nossa associação é
pros manos é pras manas, pro povo preto. Deixa que os brancos clamem seus
mortos, seus direitos. Devemos cuidar dos nossos.” Josuelmo olhou para a
assembleia com serenidade: “Camaradas, eu tenho uma causa, mas minha causa não
me impede de enxergar que um ser humano foi morto de maneira covarde, não é um
irmão preto, uma irmã preta, mas é um que morreu como nossos filhos morrem
todos os dias. A proporção esta posta: são três negros a cada branco morto, mas
a conta é sempre quatro seres humanos, quatro vidas, que se tornam quarenta,
quatrocentas, quatro mil vidas ceifadas abrupta e brutalmente. Exigir a verdade
para o Henrique, assassinado de maneira
escusa, não me desvia de nossa luta. Ao contrário, ao garantir-lhe o direito à
verdade, estou defendendo o direito de todos nós. Na luta por garantia de
direitos não existe a minha causa, a sua causa, a causa do outro. A
particularidade de nossa causa não nos deve tornar particularistas. É preciso a
visão alargada, para além de nossa bandeira, uma visão que abranja a todos os
que se tornam vítimas do descaso e da malicia dos poderes constituídos. Em
nossa luta é preciso abarcar tantas outras causas: do direito à moradia à
educação e à saúde, do direito à manifestação religiosa à opção sexual à
igualdade dos gêneros nas relações de trabalho, do respeito à diversidade ao
direito de a mulher sentir-se segura, no lar, no bar, no ônibus, no seu posto
de trabalho, etc... Sem sermos capazes de sairmos de nosso gueto, não avançamos
em nossas agendas. Se cada movimento se fechar em si, tornamos viável o
totalitarismo, favorecemos o que deveríamos combater.” Josuelmo deixou a
assembleia da Associação que ajudara a criar, arranjos políticos levaram Themer
à presidência. De cada quatro pessoas mortas pela polícia,
uma é branca. “Mas se a polícia matou é porque é bandido”, vamos repetindo, na
administração Themer...
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