sexta-feira, dezembro 06, 2024

UM CORPO NEGRO

 



Em Aqui Próximo, cidade deveras estupefaciente, a secretaria de segurança, para melhorar a eficiência da corporação militar, incluiu na formação dos cadetes a disciplina de artes, que ficou sob responsabilidade de um renomado coronel: Benedito di Forlì.

Em aula inaugural à seleta platéia, Forlì exaltou o papel das artes na formação humana, ressaltando que a arte capacita o homem para melhor compreender a realidade e nela intervir. “De tal modo”, argüiu o competente mestre, “a arte pode, sem sombras de dúvida, muito contribuir na formação militar.”

Forlì, então, teorizou: “um militar com maior sensibilidade artística, saberá como melhor agir no seu cotidiano conflituoso.” Então Forlì explanou: “a cor é tonal segundo a incidência de luz. A luz não apenas ilumina os olhos, ela tranqüiliza, dá segurança, conforta. A ausência de luz conturba, desestabiliza, ameaça. Assim, tons claros são tons cheios de luz e irradiam harmonia, beleza, benevolência, gratidão. A ausência de luz carrega a cor de algo sombrio, agressivo, pervertido... Estas nuances da arte nos ajudam a compreender a ação militar. Como o artistas precisa saber, compondo sua obra, manipular as cores e seus tons, o militar precisa saber atuar nas diversas nuances de tons e cores no seu dia-a-dia. Forlì apresentou, então, à seleta classe duas obras de arte, produzidas por militares. “Temos aqui, senhores, duas obras que muito contribuem em nossa reflexão. A primeira intitula-se ‘Passeio pelo Jardins’. Percebam senhores, como o artista trabalha com delicadeza, o arranjo de cores em tons claros, suaves, iluminados, despertam segurança. É uma obra que suscita uma certa reverência. Contemplando este ponto, onde o branco é de uma luminosidade impar, nos vem de curvar-se e pedir perdão. Esta outra obra, pelo contrário, veja como ela agride os olhos, seus tons carregados, sombrios, agridem e desestabilizam. Diante desta tela, principalmente onde o preto é retinto, a sensação de ameaça é tal, que nos vem de sacar a arma e descarregá-la, em legítima defesa.” O silêncio estarrecedor foi rompido com a pergunta de um cadete selecionado para participar do prestigiado evento: “Senhor, esta segunda obra, qual o titulo dela?” “Um corpo negro!”, respondeu o comandante, sob efusivos aplausos.

Presente à apresentação, O governador agradeceu Forlì pela magistral lição e pronunciou: “Senhores, se a arte está presente em toda e qualquer atividade humana, se ela é uma prática que acompanha o sujeito e o modela, ela já está presente na formação de nossos militares e os subordinam às características dos locais onde atuam. Sendo assim, agradeço ao coronel Forlì e o dispenso da tarefa a ele atribuída, pois revogo a inclusão de sua disciplina na formação militar, por considerá-la desnecessária a nossos policiais. Um ou outro, é certo, erra o tom, conturbando os passeios nos Jardins. Mas o erro, como a arte é presente em toda atividade humana. ‘Um Corpo Negro”, estes onze furos na tela, é uma obra de arte!”.

UM CORPO NEGRO

 



Em Aqui Próximo, cidade deveras estupefaciente, a secretaria de segurança, para melhorar a eficiência da corporação militar, incluiu na formação dos cadetes a disciplina de artes, que ficou sob responsabilidade de um renomado coronel: Benedito di Forlì.

Em aula inaugural à seleta platéia, Forlì exaltou o papel das artes na formação humana, ressaltando que a arte capacita o homem para melhor compreender a realidade e nela intervir. “De tal modo”, argüiu o competente mestre, “a arte pode, sem sombras de dúvida, muito contribuir na formação militar.”

Forlì, então, teorizou: “um militar com maior sensibilidade artística, saberá como melhor agir no seu cotidiano conflituoso.” Então Forlì explanou: “a cor é tonal segundo a incidência de luz. A luz não apenas ilumina os olhos, ela tranqüiliza, dá segurança, conforta. A ausência de luz conturba, desestabiliza, ameaça. Assim, tons claros são tons cheios de luz e irradiam harmonia, beleza, benevolência, gratidão. A ausência de luz carrega a cor de algo sombrio, agressivo, pervertido... Estas nuances da arte nos ajudam a compreender a ação militar. Como o artistas precisa saber, compondo sua obra, manipular as cores e seus tons, o militar precisa saber atuar nas diversas nuances de tons e cores no seu dia-a-dia. Forlì apresentou, então, à seleta classe duas obras de arte, produzidas por militares. “Temos aqui, senhores, duas obras que muito contribuem em nossa reflexão. A primeira intitula-se ‘Passeio pelo Jardins’. Percebam senhores, como o artista trabalha com delicadeza, o arranjo de cores em tons claros, suaves, iluminados, despertam segurança. É uma obra que suscita uma certa reverência. Contemplando este ponto, onde o branco é de uma luminosidade impar, nos vem de curvar-se e pedir perdão. Esta outra obra, pelo contrário, veja como ela agride os olhos, seus tons carregados, sombrios, agridem e desestabilizam. Diante desta tela, principalmente onde o preto é retinto, a sensação de ameaça é tal, que nos vem de sacar a arma e descarregá-la, em legítima defesa.” O silêncio estarrecedor foi rompido com a pergunta de um cadete selecionado para participar do prestigiado evento: “Senhor, esta segunda obra, qual o titulo dela?” “Um corpo negro!”, respondeu o comandante, sob efusivos aplausos.

Presente à apresentação, O governador agradeceu Forlì pela magistral lição e pronunciou: “Senhores, se a arte está presente em toda e qualquer atividade humana, se ela é uma prática que acompanha o sujeito e o modela, ela já está presente na formação de nossos militares e os subordinam às características dos locais onde atuam. Sendo assim, agradeço ao coronel Forlì e o dispenso da tarefa a ele atribuída, pois revogo a inclusão de sua disciplina na formação militar, por considerá-la desnecessária a nossos policiais. Um ou outro, é certo, erra o tom, conturbando os passeios nos Jardins. Mas o erro, como a arte é presente em toda atividade humana. ‘Um Corpo Negro”, estes onze furos na tela, é uma obra de arte!”.

segunda-feira, junho 10, 2024

DE QUANTOS INSTANTES SE COMPÕE UMA HISTÓRIA?

 


Para Padre Carmine Mosca em ocasião de seus cinqüenta anos de sacerdócio.

 

As horas se compõem de minutos, os minutos de segundos. O instante não, instante não se mede com o tempo. A categoria que mede os instantes é o afeto.

E a História não se compõe de horas, dias, meses, anos ou séculos. Não, a história se compõe de instantes. E cinqüenta anos é um instante de instantes. Instantes de afetos que ficam como cicatrizes e nos torna quem somos. São os afetos marcados em nós que nos personaliza. Assim são muitos os instantes que nos compõe: a mão calejada de nosso pai cariciando a barriga de nossa mãe em que ainda estamos por vir-a-ser; o olhar materno da mãe, marejado de alegrias e expectativas, a nos dar de si em seus seios; as festas pelos primeiros passos, pelas primeiras palavras, pela queda do primeiro dente. O primeiro dia de escola, o encantamento pela professora, os primeiros amiguinhos, o primeiro sorriso de um amor não confessado. O batismo, a primeira comunhão, o crisma, a decisão vocacional. As amizades que vão se consolidando, os desafios que vamos superando, as perdas, as conquistas, os encontros memoráveis, as despedidas. Cada instante rememorado é uma composição de afetos, que entre tantos instantes fugazes, nos coloriu nossa existência. Uns se formaram ao longo de anos, outros no passar de horas, mas todos se entrelaçam e formam o nó impossível de se desfazer e nos torna o que somos. Nossa história não se conta em anos, se conta em instantes, em afetos. A memória não recorda acontecimentos, a memória é composta de sentimentos, de afetos.  

Ao celebrar seus cinqüenta anos de sacerdócio, Padre Carmine Mosca deu-nos esta lição: “Somos um instante de instantes em que nos assombramos com o bem que podemos fazer e nos horrorizamos com os tantos males que produzimos”. Eu não sei dizer de males que Padre Carmine possa ter produzido, desde o instante que o conheci, sua presença é um bem cicatrizado em mim.

segunda-feira, abril 29, 2024

MARCO SENNA

 

Que é, pois o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pede, não sei. Agostinho de Hipona


O que diz Agostinho de Hipona acerca do tempo, se pode dizer da amizade. Se ninguém me pergunta, sou capaz de produzir um tratado. Se me questionam, no entanto, faltam-me palavras. Então, recorro a Cícero que dizia preferir um amigo a todos os bens da terra, ou a Aristóteles que ensinava: “a verdadeira amizade se dá onde não há outro interesse que o bem do amigo.” E o bom amigo, segundo Aristóteles, é uma pessoa ética, justa, cortês e coerente em suas condutas. Estas qualidades não faltam ao meu amigo. E, aquilo que na tradição cristã chamamos anjo protetor, é, em nosso dia a dia, a presença de um amigo. Mas com palavras que não preenchem todo o sentido de uma amizade: ter um amigo é ter um dom imerecido. E eu recebi esta graça. Meu amigo é de uma humanidade que poucos atingem. Ele é como um bom vinho: fica melhor com o passar do tempo.


sábado, abril 27, 2024

CAPITÃES DO MATO

 



Em Bananópolis não se fala de outra coisa: Tio Paulo e o Playboy do Porsche. E na lanchonete próxima ao Centro de Estudos Sociais o assunto está na mesa.  Ataíde Leonel, aluno do 3º semestre do curso de Ciências do Comportamento Social, entre um pedido e outro, acompanha as conjecturas do grupo de professores da mesa 10.   Um lembra Machado de Assis que dizia de dois brasis: “um oficial, outro real”. Um outro corrobora a ideia, citando Euclides da Cunha. Um terceiro especula: “Tio Paulo e Playboy do Porsche ilustram estes brasis”, e emenda: “De um lado, um Brasil explorado por uma casta econômica, resquício do escravismo, concentradora de nossas riquezas, que submete a política a seus interesses. Uma elite inculta, mas esnobe. Do outro, brasileiros pobres, que vivem em condições precárias, sendo explorados e tratados como gentalha.” No ir e vir de uma mesa a outra, Ataíde Leonel, vai pescando o possível daquilo que os doutores comentam. “Garçom!”, alguém grita: “Traz mais uma e coloca na conta do Tio Paulo!” Risos tomam conta do ambiente. “Já Joaquim Nabuco dizia”, toma a palavra uma professora, “que a escravidão permaneceria por muito tempo uma característica do Brasil, pois nos é transmitida no leite materno.” Ataíde pensou pedir a palavra, mas engoliu o que tinha a dizer: “quem era ele, diante dos ilustres acadêmicos?” Depois, alguém o exigia na mesa 6. “No Brasil toda riqueza é fruto de roubo e quanto mais sangue um tem nas mãos, mais nobre pretende ser”, ensaia um dos acadêmicos.  A noite avança, e o debate na mesa 10, regado a cervejas e porções de fritas e torresmos, desfila teses e teóricos de nossas “estruturas escravagistas”.  Servindo uma mesa aqui, outra ali, Ataíde pesca o que pode das etílicas elucubrações acadêmicas e formula para si mesmo as suas, anotando o que consegue no verso de uma comanda. “Chegando em casa as sistematizo”, pensava consigo. Um chiste de uma professora principia uma confusão entre os acadêmicos da mesa 10 e dois clientes da mesa 8. O rapaz da oito exige que a professora se desculpe, sua “galhofa” o ofende. É que a erudita, dizia que nossas forças militares são patrimonialistas, “não foram constituídas para proteger a coletividade, mas para proteger as elites econômicas e seus bens”. Ilustrando o arrazoado, ela, ébria e irônica, elucubra: “Nas áreas nobres, são cachorrinhos de madame, cheios de comissuras (aqui ela faz uns gracejos de corpo), nas periferias, como pitbulls vorazes (novamente, gestos que ampliam a fala), sente-se no direito de julgar, condenar, humilhar e executar  corpos pobres”. O rapaz era militar. Estava de folga. Não gostou da comparação, não gostou, principalmente, do gestual acompanhado a fala da professora. Depois: “Não era hora mais de vadia doutrinadora estar na rua”. “Pelo contrário, meu amigo”, reage a professora, “a hora, está hora, é a hora das vadias!” O acento ébrio-anasalado de suas palavras gera risos ante a tensão presente. O rapaz sente-se afrontado, saca a arma, dispara...  Ataíde tomou a frente da professora... O comando militar emitiu nota lamentando profundamente a perda de uma vida e manifestou sentimentos de consternação à família enlutada. Informou, ainda, que um Inquérito Policial Militar foi instaurado para melhor apurar os fatos, a fim de que não sejam feitas conclusões precipitadas e sejam observados todos os direitos e garantias constitucionais do militar, que já se encontra em atividades administrativas. Por fim, reforçou o “compromisso da Brigada com o respeito aos direitos humanos e à dignidade das pessoas em todas as nossas atividades, e reitera que não tolera qualquer tipo de violência ou abuso em suas tropas." Um jornal local publicou matéria sobre Ataíde Leonel, 37 anos, estudante universitário, que, para manter os estudos, prestava serviços de garçom. Deixa esposa e um filho por nascer. Encerrando a matéria, o jornal publicou as anotações de Ataíde: “as minorias não são reconhecidas como sujeito, a cidadania a elas garantida é apenas formal. Os pobres e periféricos, na concepção das elites, são descartáveis, constituem uma ameaça aos seus interesses” (Professor Miguel). “É sempre um fato isolado a cotidiana violência policial contra pobres, trabalhadores, desempregados, sem-terras, moradores de rua, os que não contam por seu CEP e ou cor de pele” (Professora Stella). Das anotações de Ataíde: “Capitães do mato vestem farda”, dá título à matéria. Uma associação de vigilantes noturnos (cabe notar que dita associação está sob investigação, por fazer uso de policiais em folga para oferecer proteção ao comércio local) está com uma ação contra o jornal. O termo “capitães do mato”, defende, “fere a dignidade de nossos associados.” Conhecendo Bananópolis, um amigo me confidencia: “Em breve, haveremos de assistir moção de aplausos na tribuna ao jovem policial.” Em Bananópolis, nada de novo acontece.

domingo, abril 07, 2024

A Land Rover e o caramelo

        Era um maio, um sol pálido, encoberto de nuvens, anunciava uma jornada friorenta, chuvosa. Na esquina, uma matilha disputava sacos de lixo. Um caramelo, passou a seguir-me.  Quando entrei na padaria, ele  retornou aos sacos de lixo. Se comentava a partida da noite passada. “O juiz foi comprado”, disse um. “Deixa disso, rapaz! Serginho estava impedido, o juiz anulou corretamente”. “E o pênalti,  o que você diz do pênalti, que ele não marcou?” “É, o pênalti, convenhamos, só não marcou porque não quis!”. Eu ordenei um pingado, um pão na chapa. “Você assistiu?” fui indagado. “Entre um cochilo e outro, acompanhei alguma coisa!”, respondi sem interesse em participar da conversa. “O pênalti, foi ou não foi?” “Não contra o Timão, sem muita disposição de continuar o debate!”, respondi. Fui servido, deixei a conversa de lado, busquei uma mesa afastada, para folhear o jornal. Consultei o relógio, faltavam 20 min: “dava tempo!”, pensei. Quando deixei a padaria o caramelo voltou a me seguir. Caminhava em direção ao Mercado Central. A orla vazia, o mar agitado. Um ou outro banhista arriscava um mergulho. Um pouco antes do Mexilhão, topei com Geraldinha em uma canga florida. “Corajosa, você!”, comentei. Ela sorriu-me, peguntou por minha mãe, meu pai, quis saber se o caramelo era meu. “Não! Resolveu seguir-me!”, respondi.  “Foi bom te ver. Ia procurar-te mais tarde. Preciso trocar umas fechaduras, você faria isso pra mim?”, perguntou-me. Eu estava indo a uma consulta, nada grave, rotina. Combinei de passar por sua casa, retornando. “Prepara aquele linguado ao molho, que chego para o almoço”, brinquei. Saí da consulta, passei no Mercado, comprei legumes e verduras para mãe, uma cachaça. O caramelo já não me seguia, o avistei, com uns outros dois, rosnando a um Pinscher conduzido por um casal de banhista.  Já em casa, deixei as compras de mãe, peguei a caixa de ferramentas e segui para Geraldinha. “Vou ali, fazer um “bico”, devo demorar... almoço por lá!” Avisei mãe. “E esta cachaça?”, perguntou mãe. “Dizem que ajuda a amolecer dobradiças”, respondi irônico. “Juízo, rapaz! Juízo!” “Benção! Vou indo”. “Deus te abençoe!”... Atravessava a Oceânica fantasiando as vésperas com Geraldinha. Mergulhado em seu sorriso prazeroso, corria seu corpo à ponta de língua, brincava em suas “dobradiças”... O soído de buzina, o rumor brusco de freada, o coração saltando à boca, o suor frio tomando o corpo... Veio-me de perder os sentidos, tamanho o susto. “Por pouco, a Land Rover não atropela o pobre do caramelo!”, dizia à Geraldinha.  “Por Deus, você não é cardíaco!”, disse-me, cafuneando-me em seu colo. Uma chuvinha fria umedecia a vidraça

sexta-feira, abril 05, 2024

Geografia de ti

 


 

Amo tua voz e tua cor

E teu jeito de fazer amor

Revirando os olhos e o tapete,

Suspirando em falsete

Coisas que eu nem sei contar.

Kleiton & Kledir

 

 

No palco evolui uma banda de amigos. O garçom nos serve frutos do mar e vinho. Animado, você me fala de seus estudos e do texto que está desenvolvendo para o grupo de teatro.

Tuas palavras misturam-se à música e chegam-me com o cheiro de vinho em teus lábios buscando os meus, a caricia de tuas mãos sob meus joelhos, teu perfume adocicado.

        Teus olhos cintilam e devoram-me … Eu me exponho e me velo, suando as mãos, as pernas tremulas, sorrindo um riso frouxo, mas decoroso.

            Um casal de amigos nos cumprimenta, ficamos de ir visitá-lo antes de retornarmos à Capital.

            “Não és sequer a razão do meu viver,/ Pois que tu és já toda a minha vida!”

Dizes-me de Florbela Espanca e da canção que nos chega na interpretação de nossos amigos. Tuas palavras me excitam, tua voz penetra-me os sentidos já inebriados, o corpo ardendo… Silencio-te, penetrando-me em teus lábios, misturando nossas línguas, derretendo-me por entre as pernas... 

O mar calmo, envolvido pela brisa, descansa suas águas a nossos pés.  A noite avança descompromissada. Enlaço-me a ti, beijo-te como beijo primeiro.

         Tua respiração, teu hálito quente, tua saliva misturada à minha, encharcando-me de teu sabor. Tuas mãos quentes, ágeis, macias, puxa-me para teu corpo, apalpa-me vorazes. Eu me sufocando.

- Vamos subir!

[…]

Deixo que me dispas e com teus lábios percorra meu corpo, os seios, o umbigo, ...  Tua língua brinca em mim e eu me derreto...

- Vem! Me fode! Me fode todinha!

[…]

Contemplo teu corpo nu adormecido, “decorando tua geografia”. Na boca o gosto de ti, de tua seiva em meus lábios.

No espelho do banheiro escrevo: “A vida deveria ser assim: uma grande paixão, um amor delirante, um perene sonho avançando noites descompromissadas. Teus lábios brincando em mim!”

Adormeço em teus braços.

quarta-feira, março 27, 2024

QUIXOTESCA NOTURNA

 


“Eu sou a voz que grita no deserto” Jo, 1, 23

 

Somente gente obtusa, e parece ser o caso de gestores e legisladores de Poá, desconsideram a importância da CULTURA para o pleno desenvolvimento econômico, político, social, humano de uma cidade. Há recursos do Governo Federal, via Lei Paulo Gustavo e Política Nacional Aldir Blanc, que ultrapassam 4 milhões de reais, para serem investidos no setor Cultural nos próximos 5 anos. São mais de 4 milhões de reais, que por obtusidade, ineficiência, incompetência ou pura má vontade política, a gestão Marcia Bin, com o silêncio de nossos edis, vão se perdendo.  Diante do descalabro, um punhado de gente quixotesca, que se conta nos dedos, promoveu um manifesto por desérticas ruas da cidade, gritando para ouvidos surdos suas reinvindicações. São sempre os mesmos rostos, as mesmas vozes, um punhado de quixotes contra a obtusidade, a ineficiência a incompetência calculada de gestores e edis que contam com a condescendência daqueles que deveriam estar se somando à luta, mas sempre tem um outro compromisso para não se comprometer com a causa, ou aparecer na foto: querem o recurso, mas não querem se indispor. Às poucas vozes que desfilam por noturnas e vazias ruas de Poá, meu profundo respeito. Aos que contam com os recursos da Cultura, mas preferem fazer-se de mortos: despertem! “Quanto mais se beija a mão do senhor, menos se come”, ensinava minha avó.

domingo, março 17, 2024

Dia desses passes por aqui

 

Para saber de ti

Andei a perguntar por aí.

Por onde andas

O que fazes

Se falas de mim

Aos amigos

E, também, inimigos

Inquiri

Mas saber de ti

por ti mesmo

é que me faz feliz

Numa tarde qualquer destas

Passes por aqui

segunda-feira, fevereiro 12, 2024

Da sétima Hilda do Alencastro

 

Para Cris Dom e Elvis Almeida

 

Sabe o Alencastro do financeiro, boa praça, prestativo, na dele. Então, ontem dei-me com um casal de amigos, muito próximo do Alencastro. Parece-me que ele é padrinho de casamento do casal. Não ficou claro. Mas o que interessa é o Alencastro. Pois, pasmem: O homem está para a sétima esposa.  O curioso, no entanto, não é isto. Curioso foi saber que a atual esposa, como a seis anteriores, se chama Hilda.  O cara tem  dom, tem que ser, de encontrar Hildas para se apaixonar, enlaçar-se e, depois de algum tempo, desfazer o casamento. Meus confidentes confiaram-me que o cara, além das esposas, chegou a manter, no terceiro e no quinto casamento, amantes com nome de Hilda. Não tive dúvida, “deixa eu adivinhar: a mãe se chama Hilda?”, opinei. Nada, nem mãe, nem irmã, nem prima, avó ou tia. Os términos dos relacionamentos, se dão por banalidades, coisas sem a  menor gravidade. Com uma ele terminou porque ela não sabia o que era um verbo defectível, com outra, porque não memorizou o Poeminha do contra, do Quintana. Não saber conjugar concernir ou decorar quatro versos lhe era assaz intolerável. Uma crítica à sopa de legumes da tia, resultou numa outra separação. O casal de amigos narrava  as peripécias amorosas do Alencastro sempre ressaltando seu zelo pelas esposas. Dava-lhes presentes, era-lhes atencioso, carinhoso, romântico.  Mas, do nada, sem motivo algum,    de gravidade sustentável, rompia tudo, separava-se. Passava, então, meses, abatido, calado, desleixado, prometendo-se não mais se apaixonar, enlaçar-se novamente. Mas, não demorava muito, eis uma nova Hilda. Ainda me atraía a curiosa atração do Alencastro por Hildas. E especulei um pouco mais. Veio à tona que, o pai era admirador inconfesso de Hilda Hilst, e a mãe morria de ciúmes da escritora, e descontava seu ódio à escritora no pobre Alencastro. A mãe rabiscava os livros do pai, arrancava-lhe as páginas e dizia ser travessura do garoto. O pai enfurecia, colocava-o de castigo, dava-lhe coro. Certa volta lhe fraturou as costelas. Um dia, o pai flagrou a mãe adulterando A obscena senhora D, da considerada rival. O pai olhou-a com olhar pesaroso, olhou-o com sentimento de culpa, saiu para comprar cigarros. Dos livros do pai, a mãe fez fogueira e não queria saber dele envolvido com livros. Alencastro, para não descontentar a mãe, lia escondido. E o homem lê de tudo: Filosofia, teatro, literatura, bula de remédio, porta de banheiro, nada lhe escapa. Da Hilst, no entanto, ele não se aproxima. Mas é ouvir o nome Hilda, que o homem perde a razão e se entrega. Com a atual ele se deu num espetáculo performativo. Hilda entrou em cena toda vestida para um baile de gala. À medida que a música assumia o ambiente e envolvia os espectadores em seu ritmo Hilda ia se desmontando, ora a movimentos suaves, ora com movimentos bruscos, performando personalidades antagônicas. A certa altura, já toda nua, com um silêncio ensurdecedor tomando o ambiente, Hilda com voz firme, exclamativa, rompeu a perturbação que tomava conta dos espectadores: “Eu sou mulher, porra! Eu sou mulher! Me Chamo Hilda! HILLLLDA! E eu tenho buceta! Buuuuceeetaaa! Hilda batia decidida a mão sobre sua transgenitalização. Alencastro, diz o casal de amigos, anunciou para breve a cerimônia de seu sétimo casamento. Pena eu não ter proximidade com o Alencastro, desejaria muito participar de seu novo enlace. Seja ele feliz!

segunda-feira, janeiro 01, 2024

Eu quero a estrela da manhã

 


Vi uma estrela tão alta,

Vi uma estrela tão fria!

Vi uma estrela luzindo

Na minha vida vazia.

(Manuel Bandeira)

 

Todas as manhãs o aeroporto me dá lições de partida. (Manuel Bandeira)

 

Há uma estrela inatingível (tão alta), luzindo indiferente (fria) a existência do poeta à cata de algo que o preencha de sua vida vazia: “É que ando dentro da vida/ sem vida dentro de mim” (Toada). Vida que “é uma agitação feroz e sem finalidade [e] traição” (Momento num café). “Vida cada vez mais cara”, a menor besteira, “nos custa os olhos da cara” e “todo mundo traz na boca a cinza amarga da frustração” (Saudade do Rio Antigo). Vida que “é amarga” (Imagem) e “não vale a pena e a dor de ser vivida” (Antologia). Daí, então, Pasárgada, onde “a existência é uma aventura”, fundada no desejo de viver “a vida que podia ter sido e que não foi” (Pneumotórax).

Em Pasárgada, o poeta que diz fazer “versos de angústia rouca” e “como quem morre” (Desencanto), poderá “ser como  rio que deflui, silencioso dentro da noite” e “descansar humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei” (Antologia). Em Pasárgada poderá o poeta amar à vontade a mulher que há de escolher, poderá fazer ginástica, andar de bicicleta, montar burro bravo, subir pau-de-sebo. Em suma, ter a vida “que podia ter sido e que não foi” (idem).

O poeta não ignora a distância entre a Pasárgada idílica e as manhãs em que a “respiração se faz como um gemido” e tudo ao olhar “toma um doloroso aspecto:/ E erro assim repelido e estrangeiro no mundo” (Desesperança). Por isso, ainda haverá noites “triste de não ter jeito” e de “versos de angústia rouca” em que a vontade de se matar se anunciará: “E enquanto a mansa tarde agoniza,/ Por entre a névoa fria do mar/ toda a minh’alma foge na brisa: Tenho vontade de me matar” (Felicidade).

“- Ah, como dói viver quando falta a esperança!” (Desesperança),  diz o poeta a tecer “versos como quem morre” (Desencanto).

“Há muito”, diz o poeta, “o meu coração está seco” e “a tristeza do abandono,/ A desolação das coisas práticas/ entrou em mim, me diminuindo” (... Augusto Frederico Schmidt), e “ouço a morte chamar-me e esse apelo me aterra...” (Desesperança).

Embora tenha vontade, o poeta apazigua os amigos, “não me matarei, meus amigos./ Não o farei possivelmente” (Canção suicida), porque a vida, mesmo que não valha “a pena e a dor de ser vivida” (Antologia) não é toda fel, ela nos afeiçoa de uma “esperança prometedora” que “segreda coisas irreais” (A vida assim nos afeiçoa). Se é desalento e amargura, se é traição e ilusão, a vida é também milagre: “A vida é um milagre./ Cada flor,/ Com sua forma, sua cor, seu aroma,/ cada flor é um milagre/ Cada pássaro,/ com sua plumagem, seu voo, seu canto,/ Cada pássaro é um milagre...” (Preparação para a morte).

O que salva o poeta é a arte. E ela “é uma fada que transmuta/ e transfigura o mau destino” (À Sombra das Araucárias). Então, ao tênue fio de esperança o poeta se propõe a uma nova poética: “em cuja poesia há a marca suja da vida” (Nova poética), mas, também, “pedaços vivos do nosso próprio ser, laços quase impossíveis de romper” (A vida assim nos afeiçoa). Ele defende que a poesia deve “fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero”, pois “a vida é amarga./ O amor, um pobre gozo...” (Imagem).  E, se “o mundo é sem piedade e até riria/ Da tua inconsolável amargura” (Renúncia), na criação poética habita “o menino que não quer morrer” (Versos de Natal). Então o poeta orienta: “cria, e terás com que exaltar-te/ No mais nobre e maior prazer” (À Sombra das Araucárias). 

Assim, contra o tédio e a vontade de morrer, o poeta “Prova. Olha. Toca. Cheira. Escuta. [Cria].”  E na poesia o poeta espera restabelecer o equilíbrio perdido, pois é ela sua única solução: “Única solução para o peso dos meus desenganos,/ Depois de todas as soluções:/ O amor, os seguros, a água, a borracha./ A poesia voltará de novo, consoladora e boa/ .../ A poesia cairá em mim como um raio” (... Augusto Frederico Schmidt). E de sua amarga secura, o poeta proclama: “A poesia voltará de novo ao meu coração/ Como a chuva caindo na terra queimada” (Idem.).   

Então, mesmo às voltas com a “Indesejada das gentes”: “Aqui eu não sou feliz./ Quero esquecer tudo:/  – A dor de ser homem...”, o poeta retoma o desejo por Pasárgada e “anseio infinito e vão de possuir o que me possui ” (Antologia).

Em Pasárgada, “tomarei banhos de mar”, diz o poeta e “nas ondas da praia/ Nas ondas do mar/ Quero ser feliz/ Quero me afogar” (Cantiga). Idílica e marítima, Pasárgada, onde se pode “esquecer tudo”, “descansar”, “ser feliz”, “sem ambições de amor ou poder” (Vontade de morrer) é a saída poética que o poeta encontra para sua vontade de morrer, adiando, em sua inatingibilidade, um ato, por parte do poeta, de vingança “contra a condição Humana ... de ser dotado de razão” (Canção de suicida).

Ao poeta não falta, pois, sentido, inteligência, instinto, coração, para  o milagre de um pássaro em voo,  e, em uma rosa solitária, pendendo de um galho, intuir “a graça essencial .../ Da vida e do mundo” (Eu vi uma rosa). Mas o poeta anela o além-mundo. Em Pasárgada, seu refúgio poético, ele vai adiando a vontade de morrer.

Pois bem, Manuel Bandeira viveu 82 anos. Eu, sem sua estatura poética, meus amigos, prometo, não chegarei a tanto.

 


                                                              Claudio Domingos FERNANDES

 

Manhãs precipício





 

Há estas manhãs cinzas e frias,

De gosto insípido

O café tomado a goles rápidos

Elucubrando desejos últimos

 

Há estas manhãs de tua presença distante

Eu, pela casa, errante

Dando ouvidos à faca  e suas ilações

O abismo abrindo me os braços

Expectando o salto

 

Há estas manhãs sem canto de pássaros

Sem flores se abrindo

Sem infantes alaridos

Sem compromissos com os amigos

 

 

Há estas manhãs que o tênue fio

de um motivo contigo,

retém meu espírito de seu desejo abismal

 

Há estas manhãs precipício