quinta-feira, outubro 31, 2019

DO PERDÃO


O dano não tem reparo. A ofensa não se apaga. A ferida não se fecha sem deixar cicatriz. O arrependimento não restitui o dano, não repara a ofensa, não alivia a dor do ferimento. O perdão não apaga tudo, não esquece; não é um desmemorizador. O perdão é uma aposta incerta de que, apesar do dano, apesar da ofensa, apesar da ferida, a relação pode ser restituída, e um novo começo possa se instaurar. O perdão se dá: é doação. De modo que: só o amor, ou quem muito ama, tem o poder de perdoar.  Embora seja uma doação, o perdão não se oferece. Ele precisa ser requisitado. Aqui novamente entra a dimensão do amor. Só quem muito ama é capaz de se penitenciar e pedir perdão. O dano, a ofensa, a ferida que se abre, rompe o amor. E é o amor rompido que se restabelece no perdão. E o amor é oferecimento e procura. Por isso o perdão só pode ser oferecido a quem o procura. E, por isso o perdão exige contrição e sacrifício. À gratuidade no perdão espera-se o compromisso do perdoado, simplificado no ato de penitência. Entre aquele que perdoa e o que é perdoado não se opera uma amnésia, se opera um sacrifício, uma penitência, um ato de amor: um milagre. O perdoar humano tem a grandeza do ato divino da criação, o perdão inaugura um novo começo, uma nova aposta no amor que sustenta a razão de viver. Onde não há amor, não há perdão, não há vida: há apenas amargura, sofrimento, dissolução.  O amor não repara danos, o amor não alivia dor, o amor não desfaz ofensas. O amor produz vida. Mas, só quem ama perdoa; só quem ama pede perdão. Só o amor produz vida. Perdoar é abrir-se a incerteza de uma vida nova.

segunda-feira, outubro 28, 2019

DA AMIZADE



"Se queres ser rica, frequente ambientes onde os ricos circulam, entre franciscanos serás franciscana" Padre Leontino



Ontem, estive conversando com uma amiga de longa data. Dizia a ela que não entrei na vida por ato de vontade, mas, por ato de vontade, penso, hora dessas, dela me retirar... Mas a conversa descambou à amizade. Então disse à minha amiga que as pessoas com quem tenho me relacionado desde o fatídico dia de minha entrada na vida, nos mais variados graus de intimidade e cumplicidades, eu, como entrar na vida, não as escolhi: as encontrei. Nossos relacionamentos se dão devido a causalidade dos encontros a que estamos sujeitos. Estando na vida, estamos fadados a nos afeiçoar ou não às pessoas que circulam entre nós. E afeiçoar-se a alguém não é uma escolha, é um acontecimento. À medida do tempo, as escolhas que tenho feito é a dos ambientes que frequento. Escolhendo tais e tais ambientes, tenho, aproximativamente, tipos de personalidades que posso encontrar. As pessoas com quem nos relacionamos e pelas quais vamos ou não nos afeiçoando circulam, onde circulamos. Isto não é uma ciência, mas, refazendo um antigo adágio: “digas-me onde andas, direi a ti com quem andas”. Entrei na vida sem querer, entre pessoas que não escolhi. Há algumas me afeiçoei mais, a outras menos, a outras nem um pouco, mas foi preciso que eu e elas estivéssemos no mesmo espaço. Da vida, querendo, eu posso sair. Das amizades não consigo me desfazer, na verdade os amigos não me abandonam, é isto que atenua o meu desejo de não ser... Minha avó era uma mulher muito sacada, médicos nunca deram respostas a meus desatinos, foi ela que me orientou: "Fio, procure pessoas com gana de vida", eu não sabia o que era gana de vida. A encontro nos amigos que tenho feito... Estou vivo!!!!

JOÃO PESCADOR


Foi assim: João todos os dias ia ao mercado pedir peixes. Tinha sempre alguém que lhe dava uma ou outra sardinha. Um dia alguém reclamou: "que este malandro aprenda a pescar o próprio peixe!" João retrucou, "o senhor ensina-me a pescar?" "Não tenho tempo, não tenho condições, não posso", respondeu o reclamante. O fato é que João, ao invés de ir ao mercado pedir peixe, passou a pedir: "alguém me ensina a pescar?" Certo dia encontrou um velho pescador que se dispôs a ensiná-lo. Precisava, porém de um barco, das varas, do anzol e, principalmente permissão da empresa que administrava o pesqueiro. Foi uma luta, vai num vereador e nada, vai em outro e nada também, procura-se o sindicato e nada. Com sacrifício, João conseguiu o que precisava para pescar. Aprendeu logo, pois o quanto antes aprendesse, antes dependeria menos da solidariedade das pessoas, seria auto-suficiente. Uma vez que João aprendeu a pescar, aprendeu também que tinha que pagar para usar o lago, que não podia ficar com o peixe. Teria que compra-lo no mercado. Uma coisa João aprendeu: "abaixe o liberalismo!", anda gritando pelo mercado. João não pede mais peixe, João agora grita: "Abaixe a liberdade econômica que nos escraviza ao mercado e nos mata a todos de fome!"

sábado, outubro 26, 2019

DAS KAPITAL




“Marx escreveu, no “Das Kapital” se nós não destruirmos a família, nós não conseguiremos mudar a sociedade. Tem que quebrar as referências de família...Isso tá escrito, documentado”  Tiozinho do Guarda Chuva.


Se nós brasileiros fossemos sujeitos bem formados, com gosto pela boa leitura e pelo estudo, algo que não precisa ser sistemático, nem rigoroso como se espera dos especialistas, mas razoável, que esclarece-nos e torna-nos as coisas mais compreensíveis... Bom, se nós brasileiros fossemos ao menos razoáveis de entendimento, nós riríamos da gravidade de certas falas de certos boçais em casaca de ministro disto ou daquilo, principalmente da Educação. Então quando o sujeito, empolado em títulos que inventou para sentir-se alguém abrisse a boca para falar de Marx, marxismo, comunismo e coisas do gênero, riríamos e lhe daríamos as costas. Um pouco de conhecimento nos informa que Marx, marxismos, comunismos e coisas e tais mudaram de lugar e pulsam no coração das antiguidades clássicas, aquelas coisas que visitamos por erudição. Tornaram-se saberes desencantado no reino do consumo de mercadorias e espetáculos. (Estamos esperando o próximo mega show para ouvirmos gritos de “Ei, Bolsonaro! Vai tomar no cú!”). Marx, marxismo, comunismo, fica bem num churrasco ou enquanto se espera o lanche no Mc Donald. Durante o passeio à feira dominical, em que comemos pastel, ou numa fila para assistir o último lançamento da Marvel num cinema no Shopping. Uma pessoa com um conhecimento que não seja apenas para compreender informações de como ir e vir e receber comandos diretos, saberia que Marx e temas correlatos se trata sem muita gravidade. Com um pouco de estudo deixaríamos o tiozinho falando sozinho... O fato, porém de Marx, o marxismo, o comunismo e coisas tais estarem englobadas pelo mercado não anula a sensibilidade e a percepção de nossa realidade: as divisões sociais se acentuaram, a renda concentra-se cada vez mais com cada vez menos pessoas, bolsões de miséria voltam a nos rondar e estamos no ponto de esgarçar o tecido social. A única coisa que não podemos intuir, numa caminhada pela Nove de Julho, é o que virá com o rompimento, se este vier: não será o comunismo ou o socialismo. Um pouco de inteligência nos informa isto.     Ademais, há tiozinhos que nasceram para o ridículo, mesmo em casaca de ministro.

quinta-feira, outubro 24, 2019

DE CASULOS SAEM COLIBRIS


“De casulo sai Jacaré. E de ovo de Jacaré, pode sair girafa?”

A epigrafe é uma rememoração de um evento longínquo, que sempre esteve entre minhas vontades de resposta.

I
As relações pedagógicas não se dão entre sujeitos simples, as relações pedagógicas se dão entre sujeitos plurais-complexos. O professor é um sujeito complexo, enredado numa teia de relações e situações com as quais se envolve e se embate. Uma delas, o seu ser professor numa sociedade de consumo e do espetáculo. O aluno é um sujeito complexo enredado num universo de valores familiares, comunitários com os quais vai construindo sua identidade...

II
Envolvendo-se com as ciências nos vamos dando conta que há três expectativas para a educação. Duas delas deterministas e pessimistas. A outra, desafiadora e incerta. As pessimistas se dividem entre aquelas que culpam ou o professor, ou o aluno, ou a escola, pelo fracasso educacional. “com este professor, com este aluno, com esta escola, não há redenção, estamos condenados ao fracasso.” Na mesma perspectiva, algumas linhas pedagógicas falam da família, da sociedade, do Estado... A terceira coloca professores, escola (enquanto coletivo, e não unidade), alunos nas interdependências da Educação mesma.
Nesta perspectiva, o centro da Educação não é o aluno, não é o professor, não é a escola. O centro da Educação e a Educação mesma. Professores, alunos, escolas, estão relacionados e circunstanciados, mas não determinados (para lembrar Paulo Freire).
Não são as relações, nem as circunstâncias que mudam, ou determinam seus destinos. São os sujeitos (professores e alunos) que trazem em si as potencialidades, as capacidades de se autodeterminarem. Professores e alunos são seres abertos que se encontram na mesma realidade: a Educação.

III
A abertura que caracteriza os sujeitos na Educação é o inacabamento, o ser-sendo, a natalidade: capacidade de começar algo que rompe com o fatídico, o determinado (Hannah Arendt).
Uma Educação centrada na Educação é promessa-incerta, é esperança que pode espantar (no sentido de nos surpreender), é milagre: o inesperado no vaticinado.

IV
Eu confesso, tive muitos alunos que julguei pelo casulo: não chegariam a borboleta, ficariam no meio do caminho. Hoje, os vejo trilhando os céus como colibris, em busca da flor mais desafiadora: o saber.
A educação centrada na Educação acredita nos sujeitos e conduz os sujeitos a acreditarem em si mesmos. Assim, de um casulo pode sair um mundo e não apenas borboletas. O milagre produz girafas em ovos de jacaré. Nesta perspectiva, a Educação não garante operários, médicos, advogados, sacerdotes, políticos; garante sujeitos autônomos, livres, autodeterminando-se.   A Educação é um processo que aguarda o inesperado, o inédito-viável, o novo que se dá no ato e na palavra. Palavra que se diz ao dizer o mundo.

V
Eu nunca estive à altura de professorar numa Educação centrada na Educação.

quarta-feira, outubro 23, 2019

DO DIREITO DE CRITICAR – DO DEVER DE NÃO MENTIR, AO CRITICAR


Paulo Freire*


O direito de criticar e o dever, ao criticar, de não faltar à verdade para apoiar nossa crítica é um imperativo ético da mais alta importância no processo de aprendizagem de nossa democracia.

É preciso aceitar a crítica séria, fundada, que recebemos, de um lado, como essencial ao avanço da prática e da reflexão teórica, de outro, ao crescimento necessário do sujeito criticado. Daí que, ao sermos criticados, por mais que não nos agrade, se a crítica é correta, fundamentada, feita eticamente, não temos como deixar de aceitá-la, retificando assim nossa posição anterior. Assumir a crítica implica, portanto, reconhecer que ela nos convenceu, parcial ou totalmente, de que estávamos incorrendo em equívoco ou erro que merecia ser corrigido ou superado. Isto significa termos de aceitar algo óbvio: que nossas análises dos fatos, das coisas, que nossas reflexões, que nossas propostas, que nossa compreensão do mundo, que nossa maneira de pensar, de fazer política, de sentir a boniteza ou a feiúra, as injustiças, que nada disso é unanimemente aceito ou recusado. Isto significa, fundamentalmente, reconhecer que é impossível estar no mundo, fazendo coisas, influenciando, intervindo, sem ser criticado.

Mas, apesar da obviedade do que acabo de dizer, isto é, de que é impossível agradar a gregos e troianos, quem faz algo tem de exercitar a humildade antes mesmo de começar a aparecer em função do que começou a fazer. Vivida autenticamente, a humildade acalma, pacifica os possíveis ímpetos de intolerância de nossa vaidade em face da crítica, mesmo justa, que recebemos.
Não é possível, por outro lado, exercermos o direito de criticar, em termos construtivos, pretendendo ter no criticar um testemunho educativo, sem encarnar uma posição rigorosamente ética. Assim, o direito à prática de criticar exige de quem o assume o cumprimento à risca de certos deveres que, se não observados, retiram a validade e a eficácia da crítica. Deveres com relação ao autor que criticamos e deveres com relação aos leitores de nosso texto crítico. Deveres, no fundo, com relação a nós mesmos também.

O primeiro deles é não mentir. Não mentir em torno do criticado, não mentir aos leitores nem a nós próprios. Podemos nos equivocar, podemos errar. Mentir, nunca.
Um outro dever é procurarmos, com rigor, conhecer o objeto de nossa crítica. Não é ético nem rigoroso criticar o que não conhecemos. Não posso fundar minha crítica ao pensamento de A ou de B no que ouvi dizer de A e de B, nem sequer no que apenas li sobre A e B, mas no que eu mesmo li, no que pesquisei em torno de seu pensamento. É claro que, para criticar positiva ou negativamente o pensamento de A ou de B, me é importante também saber o que deles dizem outros autores. Isto porém não basta.

A exigência de conhecer o pensamento a ser criticado independe do bem-querer ou do malquerer que tenhamos à pessoa cujo pensamento analisamos. 

Como criticar um texto que nem sequer li, baseado apenas na raiva que tenho do autor ou da autora ou porque José e Maria me disseram que o autor do texto é espontaneísta? Que temos o direito de ter raiva de gentes não há dúvida. É óbvio também. O direito que tenho de ter raiva de Maria ou de José não pode se alongar, porém, ao de mentir em torno dele ou dela. Não posso dizer, por exemplo, sem provar, que José e Maria disseram que pode haver prática educativa sem conteúdos. Em primeiro lugar, esta afirmação é uma inverdade histórica. Nunca houve nem há educação sem conteúdos. Segundo, se digo isto de José e de Maria, sublinhando portanto seu erro, sem provar que eles, na verdade, fizeram tal afirmação, minto com relação a José e Maria, minto com relação a mim mesmo e continuo trabalhando contra a democracia, que não se constrói no falseamento da verdade.
Se minha indisposição por A ou por B provoca em mim um mal-estar que vai mais além dos limites, o que inviabiliza ou, no mínimo, dificulta que os leia, me devo obrigar uma posição de silêncio em face do que escrevem. E devo ainda criticar-me por não ser capaz de superar meus mal-estares pessoais. O que não posso é engrossar a fila dos que falam por falar, por ouvir dizer, e às vezes até sem nenhuma recusa afetiva a quem critica. Pelo contrário, dos que inclusive se dizem amigos do intelectual criticado mas que gravaram, como clichê imutável frases feitas que se repetem com ares de enorme sabedoria. Insisto em que a falha destes não está no fato de criticarem um amigo. Não há pecado nenhum em criticar um amigo desde que o façamos eticamente.

Certa vez li, em um texto crítico de meu trabalho, que sou pouco rigoroso no trato dos temas. Em certo momento, por uma razão de que já não me recordo, o crítico citou um trecho da Pedagogia do oprimido com um erro lamentável que vinha se repetindo em diferentes reimpressões. “A invasão da práxis” em lugar de “A inversão da práxis”. Me impressionou que um intelectual, que surpreende falta de rigor noutro, não perceba quão pouco rigoroso é ao citar semelhante não senso: “a invasão da práxis.” E não como prova de minha falta de rigor.

Faltoso de rigor, esse intelectual sublinha o pouco rigor do outro.

O direito à crítica exige também do crítico um saber que deve ir além do saber em torno do objeto direto da crítica. Saber indispensável à rigorosidade do crítico. Outro dever ético de quem critica é deixar claro a seus leitores que sua crítica abarca um texto apenas do criticado ou sua obra toda, seu pensamento.

Se o autor criticado escreveu vários trabalhos, ao criticarmos um deles, não podemos dizer que a crítica é a seu pensamento como totalidade, a não ser que, conhecendo a totalidade, nos convençamos disto. Reitero: o que não é possível é ler um entre dez textos e estender aos nove restantes a crítica feita a um, antes de analisar rigorosamente os demais.

A eticidade do trabalho intelectual não me permite a irresponsabilidade de ser leviano na apreciação da produção dos outros. Como disse antes, posso errar, posso me equivocar ou me confundir na minha análise mas não posso distorcer o pensamento que estudo e critico. Não posso dizer que o autor que critico disse Y se ele disse M e eu estou certo de que ele disse M. Não posso criticar por pura inveja ou por pura raiva ou para simplesmente aparecer.

É inadmissível que, entre intelectuais de bom nível, escutemos afirmações como esta:
– Você já leu um trabalho recente desse autor que você critica tão duramente?
– Não. E tenho raiva de quem leu.

Este discurso nega totalmente o intelectual que o faz. Pior ainda: este discurso em nada contribui para a formação ético-científica dos alunos ou alunas de tal intelectual.

Recentemente escutei de educanda em tom sofrido, o quanto a decepcionara ter ouvido de professor em quem confiava referências críticas a certo intelectual fundadas quase no “me disseram” ou no “é isso o que se diz”. Os professores não ensinamos apenas os conteúdos. Através do ensino deles, ensinamos também a pensar criticamente, se somos progressistas e ensinar para nós, por isso mesmo, não é depositar pacotes na consciência vazia dos educandos.

O nosso testemunho de seriedade nas citações ou nas referências que fazemos a autores de quem discordamos ou com quem concordamos ou, pelo contrário, a nossa irresponsabilidade no trato dos temas e dos autores, tudo isso pode interferir de maneira negativa ou positiva na formação permanente dos educandos.

De estudante brasileiro fazendo seu doutoramento em Paris ouvi, anos atrás, o seguinte: “Aprendi recentemente a significação profunda das citações. Estava discutindo um pequeno texto com meu orientador em que fazia uma citação de Merleau-Ponty. O professor fez um gesto de pausa e me colocou duas perguntas:
– Você leu, pelo menos, o capítulo inteiro de que você retirou a citação?
– Você está mesmo certo de que precisa fazer esta citação?”

“Na verdade”, disse o amigo, “não havia lido Ponty e, desafiado pelas perguntas do orientador, fui ao texto de Merleau, revi o meu e percebi que a citação era desnecessária”.

Citar, realmente, não pode ser pura exibição intelectual ou remédio para insegurança. Ler um livro, por exemplo, na tradução brasileira, por não dominar suficientemente a língua materna do autor, mas fazer a citação naquela é procedimento pouco ético e nada respeitável. Citar não pode ser, ainda, artifício, através do qual alongamos o nosso texto com retalhos de textos de outros.

Creio ser urgente, entre nós, superar este mau hábito que é, no fundo, um testemunho deformante, de criticar, de minimizar um autor, de imputar-lhe afirmações que jamais fez ou distorcer as que realmente fez. E de fazê-lo com ares de seriedade e de certeza tais que poderiam deixar em dúvida até o autor injustamente criticado. Em certo momento do processo os críticos se apóiam apenas no que ouvem e não no que lêem ou pesquisam.

A crítica fácil, ligeira, se alastra irresponsável e, não raro, se perde no tempo. De repente, se ouve ainda de alguns desses críticos perdidos no tempo, como presenças mal-assombradas, que Freire é idealista. Que a conscientização na sua obra é a melhor prova de sua ilusão subjetivista. Não leram um texto de 1970 em que discuto detidamente este problema, um outro de 1974, ambos publicados pela Editora Paz e Terra em 1975, em Ação cultural para a liberdade e outros escritos.
Não leram uma série de ensaios, de entrevistas, de livros dialógicos aparecidos nos anos 80 e, mais recentemente, a Pedagogia da esperança, um reencontro com a Pedagogia do oprimido, que a Paz e Terra acaba de publicar. Não leram igualmente A educação na cidade publicação da Cortez, de dezembro de 1991.

Não que me pense devendo ser lido por toda gente. Não! Mas por quem, criticando-me, não pode furtar-se à leitura do que critica.

O direito incontestável de criticar exige de quem o exerce o dever de não mentir. 

* In FREIRE, Paulo. Política e Educação. São Paulo: Cortez. 1995

terça-feira, outubro 15, 2019

A CARNE DE MENOS VALOR NO MERCADO

Hoje é dia de celebrar o profissional de menor prestígio no mercado (a tecnologia o pode substituir), na sociedade (ele não sabe, é mal formado), nas esferas de poder (seu ensino é ideológico, coloca em risco nossas crianças), mas, ainda, tão necessário: “Sem professor a EDUCAÇÃO não avança”, e sem EDUCAÇÃO vamos ficando a mercê de déspotas e ineptos. Vamos celebrar, mas não vamos esquecer que vereadores, deputados, senadores, ministros de estado que não relacionam sujeito-verbo-objeto, que mentem em seus currículos, que plagiam trabalhos acadêmicos, assumem tribunas das câmaras e parlamentos para atacar-nos, para ditar-nos como devemos cumprir nosso ensino, e nos acusam pelas mazelas da educação, da violência escolar, incentiva alunos a nos cercear. Em todas as esferas há projetos de leis que visam combater “privilégios” e cortar gastos.  Em todos eles nós somos apontados como gastos. Daí se propõe redução de disciplinas, introdução de EAD no curso regular, congelamentos de salários... Hoje vão estar todos batendo palminhas em nossas costas, falando de nossa importância, amanhã podemos acordar sem saber se ano próximo teremos onde lecionar. O É dia do Professor: A CARNE DE MENOS VALOR NO MERCADO.

Estar bem é estar morto

A estética escode a desolação. A poética explicita-a e permite ao pensamento significa-la (Eurípides dos Santos). Sem significações a desolação nos arremete no não mundo, na não existência. (Rodner Lúcio). Se nossas memórias afetivas não dizem respeito às pessoas com quem nos relacionamos, mesmo que nos desestabilize, elas devem ficar em seu lugar: no passado. (Christine Ramos)

Só na morte reside o estar bem, a morte nos livra de nossos tormentos e angústias, de tolices que nos torturam. Estar bem é estar morto. (CDF)

sexta-feira, outubro 04, 2019

O MUNDO SEM DEUS É ABSURDO






Memes deveriam apenas nos divertir, mas me levam a pensar e a formular conjecturas. O livre arbítrio é a possibilidade de escolha entre, ao menos, duas possibilidades de igual medida, em que a necessidade não impera. A sede me impõe beber e não comer. A fome me impõe comer e não beber. Numa situação em que não há fome ou sede, eu me sinto livre para comer e beber, ou só comer, ou só beber. Só há liberdade (livre-arbítrio) onde a necessidade não me impõe. Redundando, onde há imposição, não há livre arbítrio. Depois, onde não há opções, não há livre arbítrio. À "salvação" se opõe a "danação", e nem “salvação” (céu), nem “danação” (inferno) são necessidades: são possibilidades, são propostas. Deus não te impõe a salvação, te a propõe. Em toda escolha está implícito o que se deseja alcançar e o modo, ou meios, para se alcançar o que se deseja. Entre um arroz "soltinho" e bem temperado com um feijão de mãe e um prato de miojo, há exigências de preparo bem diversas. Quem espera em um prato de miojo o gosto de uma refeição materna, há de desapontar-se. Para se tornar campeão em uma competição o atleta sabe que precisa treinar e participar de uma série de disputas. Não se torna campeão apenas escolhendo ser campeão. É preciso seguir as regras da competição. Deus não impõe a salvação, propõe-na. O que está implícito na proposta divina, a salvação, são as condições para alcançá-la. A danação também tem suas regras, uma delas é a de não se arrepender de tê-la escolhido. Como esta possibilidade sempre existe. Sim, escolhas são riscos, e são sempre permeadas de incertezas. Ao longo de um processo, podemos sempre nos arrepender de tê-lo começado. Então, há sempre a possibilidade de nos arrependermos de nossas escolhas. Em tais casos, Deus ai se encontra disposto a nos oferecer sua graça! À pergunta: "se eu fizer algo que você não gosta eu vou pro inferno, que liberdade é essa?", Deus não responderia: "você é livre pra fazer o que eu quiser!". Não, a resposta divina seria outra. Seria: "você sabia que eu não gosto, e sabia das consequências. O sentido da liberdade é este: saber das consequências antes da escolha. Isso eu nunca te escondi!" Esta arenga toda só tem sentido se acreditássemos em Deus, não é o caso. O livre arbítrio só faz sentido se acreditamos em Deus. Sem Deus, o livre arbítrio não faz sentido (redundar, para reforçar). Nossa época é a época do não sentido. Nós estamos condenados a viver circunstancialmente, e as circunstâncias nos impõem infinitas possibilidades. Irremediavelmente sem Deus, estamos escravizados à ilusão de que estamos fazendo escolhas, quando estamos apenas respondendo às necessidades do momento. O mundo nos impõe sermos livre, mas onde há imposição não há liberdade. Pulamos do livre arbítrio ao absurdo.