domingo, julho 28, 2019



Para Ione Viana de Souza.

Em Lá fica nosso refúgio. Mais teu que meu. Tem a casinha ao pé da serra indo pro mar. Feito de pau a pique, chão batido, pé alto, portas largas, janelas amplas sempre abertas. Tem lá tua horta com tuas ervas de chá e unguentos, um jardim florindo o ano inteiro, um pomar modesto, pássaros de toda espécie, um cachorro matreiro. Em Lá contemplamos o sol nascer sem compromisso, assistimos a lua minguar e depois crescer e resplandecer em noites de sertão ao seu ritmo. Contamos as estrelas e damos-lhes nomes de amigos. De manhãzinha os pássaros cantam e salteiam de árvores ao chão, do chão à tua mão contando-te segredos trazidos pelo vento. No entardecer revoam em alegres alaridos. De quando em quando os amigos nos visitam pra horas sem fim de conversa à toa. Pra Lá escapamos nos fins de tarde, depois de exaustivo dia, alquebrados, já desanimando da rotina. Lá é nosso sonho, mais teu que meu, enquanto os gigantes montam os seus em peças lego ou em seus rabiscos. Em lá eu durmo em teus braços, enroscando-me em teus cabelos. Em Lá eu durmo em teu sorriso, com teus beijos. Em Lá eu durmo em teus sonhos, que são sonhos meus.

sábado, julho 27, 2019

BEM ALI



Bem Ali não fica perto nem distante. Bem Ali é aqui. Tem lá um tipo com mania de escutar conversa alheia e divulgar o que ouve segundo seus interesses. E o sujeito tem interesses grandes, sonha com posições na corte. E sem delongas expôs conversas particulares de um forte candidato a chefe da nação e a titular de cargo prejudicando-os. A candidata de cargo perdeu o cargo, o forte candidato foi tirado do páreo, os outros concorrentes eram tão minúsculos, que venceu as eleições um inepto, representante da boçalidade local.  E o tipo ganhou uma posição importante, com promessa de, com o tempo, sendo serviente, ganhar posto maior ainda. Fato é que o mundo dá voltas, e na volta que o mundo deu, o tipo foi pego em seu vicio. Colocaram à boca do povo suas ardilosas delongas, deixando à vista de todos, como no Retrato de Dorian Grey, a pequenez moral e as ações criminosas de nosso herói. Fato é que boa parte dos cidadãos de Bem Ali devota afeição ao nosso paladino por suas proezas. Como dissemos, com seus ardis se destituiu quem de direito governava, se prendeu quem de fato poderia governar e se elegeu um inepto que agrada em seus acintes e falas desconexas parcela considerável do povo. E não é gente simples e desinformada não, e gente graduada, bem informada, que lhe beija a mão. É um tipo de gente com certa deficiência cognitiva associada a sentimentos mesquinhos e um orgulho prepotente de uma nobreza social fantasiada. Nosso herói, em suas calças curtas, sem rubor algum, procurando bode expiatório, encontrou quatro estelionatários promovidos a hackers para sustentar sua posição. O morto já cheira, mas a pantomima segue. Em Bem Ali a escuridão se aprofunda.

sexta-feira, julho 26, 2019

ACOLÁ



 Nas fronteiras de Aqui e Lá situa-se Acolá. E Acolá, não é Aqui, nem Lá. Em Acolá reside Zé di Couves, renomado pé de chinelo, um tipinho dado a surrupiar idosas em ponto de ônibus e crianças em porta de escola. “Zé di Couves não vale um vintém”, dizia dona Izhaurinda, “eu sei o que digo: eu criei o traste”. “Esse Zé di Couves é um imprestável”, dizia um outro num boteco, “finge de morto pra comer o coveiro”.  Ocorreu, então, em Acolá um grande furto ao banco do lugarejo. É, certa manhã os funcionários deram conta que os cofres de particulares haviam sido roubados. O fato é que os larápios não levaram valores em dólares e euros, apenas documentos, neles preservados. A arquitetura do roubo foi tal que os funcionários só deram conta do roubo devido uma nota de jornal. No banco não havia sinal algum de arrombamento ou invasão. Grande alarido se fez em Acolá, entre os muitos clientes do banco, o prefeito, o presidente da câmara, o delegado e o juiz de comarca, e comerciantes e padres e pastores começaram a anunciar terem sido roubados. Diante da repercussão o juiz de comarca tomou frente nas diligências. À boca pequena se comentava que o roubo fora coisa de gênios, de estrangeiros da Rússia. Mas em poucos dias a polícia apresentava Zé di Couves como o ardiloso arquiteto do mais engenhoso roubo que Acolá já presenciara. E para apaziguar os correntistas do banco, o juiz de comarca informou que estava destruindo os documentos. Em Acolá é assim, só não acham o Queiroz.

sexta-feira, julho 19, 2019

A IMPORTÂNCIA E USO DA MÁSCARA NO TEATRO


Máscaras e teatro são inseparáveis e remontam às populações primitivas, quando o homem pré-histórico fazia as primeiras pinturas nas paredes das cavernas ou, ao redor de fogueiras; narrava aos companheiros sua jornada, fazendo uso de gestos, movimentos, sons, procurando representar um animal, seu rugir, seu aspecto ameaçador, o correr das águas, o canto dos pássaros, as forças da natureza, a destreza de um companheiro. E “o teatro existe desde que o homem passou a sentir a necessidade de sair de si, de despersonalizar, de disfarçar, de escapar do dia-a-dia para expressar outras maneiras de ser. Seja em rituais ou no teatro, experiências desse tipo sempre existiram, desde os primórdios” (Ana Maria Amaral [1]).

A máscara evoluiu a partir das pinturas como um objeto "mágico", representando forças, conceitos, valores, significados, funções, arquetipicos. Endossando a máscara, a pessoa que a usa se despersonalisa e “transforma-se em deus, em animal, em força cósmica” (idem), entra em um mundo outro, divino, místico, sobrenatural.
O mundo grego fazia uso frequente de máscaras em ritos religiosos, como nas festas a Dionísio, e está na origem do teatro grego. Assim, “o traço peculiar da civilização grega é o uso da máscara teatral que, a partir da segunda metade do século VI, caracteriza o evento cultural destinado a marcar a história do Ocidente: o nascimento da tragédia” (Catarina Barone [2])

Explica Catarina Barone que no teatro grego, na coexistência da dimensão sagrada e profana, “a máscara assume duas funções: uma ritual e uma prática. A ligação com o culto de Dionísio a conecta, de fato, à esfera religiosa, colocando-a dentro de um ritual. Mas, por outro lado, a rígida convenção que limita o número de atores a três, forçada a interpretar mais personagens, até mesmo uma dúzia, torna indispensável o uso em performances teatrais trágicas e cômicas.” No entanto, alerta Barone, 

Há uma diferença substancial entre as máscaras da tragédia e as da comédia. O primeiro não retratava traços atribuíveis a um personagem definido, e a identidade era conotada pelo vestido, pelos acessórios e, é claro, pela ação. [...] Quanto às máscaras da Comédia Antiga (Archaia) do século V e IV aC C., em vez disso, é hipotetizado que em alguns casos eles poderiam ser modelados nas faces de personagens bem conhecidos do público, de modo que a paródia se mostrasse mais icástica e eficaz [...], eliminando perigosamente, pelo menos em parte, o efeito de estranhamento e "distanciamento. (Catarina Barone, Op. cit.)

Lembra, ainda, a Barone que nos tempos clássicos a máscara, feita de vários tipos de material (linho, cortiça, madeira, couro) e equipada com uma peruca, cobria toda a cabeça, deixando apenas os olhos do ator e o movimento dos lábios pela boca ligeiramente aparentes. E para designar o poder ou papel representado se utilizava objetos específicos associados às máscaras: tiaras para reis e rainhas; coroas para mensageiros, ligaduras para sacerdotes, sacerdotisas e adivinhos. Depois, as máscaras eram completadas pelos figurinos. 

Entrar no universo de uma máscara e tomar parte da experiência de sua criação é uma experiência que necessita, além da habilidade manual, atenção, tempo, paciência e uma atento estudo da psicologia do personagem a que se quer dar vida. Como afirmam Federica Mori e Francesca Sartorio [3]: “Uma boa máscara é acima de tudo uma máscara com um forte poder comunicativo, que cumpre seu significado primário de tornar o corpo que a anima “diferente de si”” . E carregada de simbolismo e história, a criação de uma máscara exige: “uma ideia precisa e um estudo do que ela é e representa.
Para Duccio Barlucchi : 

Quando um endossa uma máscara deixa de ser ele próprio para ser o que a máscara lhe impõem. Uma vez endossada, é a máscara que lidera o jogo e leva o ator a descobrir gradualmente atitudes físicas, expressivas e vocais mais adequadas; é ela quem guia e traz uma presença de gestos, movimentos, vozes, ao seu portador, que revelam muitos aspectos não da pessoa, mas da máscara. Ao mesmo tempo, a mesma máscara usada por pessoas diferentes dará origem a diferentes transformações, permitindo também trabalhar as características pessoais. (Duccio Barlucchi, [4])

Assim, 

A máscara para cumprir sua função, precisa contar com a postura e presença física de quem a usa. Sua expressão, sem o olhar humano que a anime, e sem um corpo presente para dar a fisicalidade adequada, permanece vazia, e a máscara um mero objeto. (Idem)

Quem pretende confeccionar uma máscara, deve modela-la, antes, na própria mente, invocando as características psíquicas, morais ou energéticas que pretende colocar em relevo, evidenciando o que a máscara é.

Feita para despertar o sentido de ser, para revelar o sagrado na natureza e no humano, “a máscara deve ser bem feita, a fim de ser feita para viver”.  De tal modo, a máscara deve ser uma boa escultura, capaz de vitalidade cênica, de comunicação emocional, de integração com o corpo e a aparência do usuário  trazendo para fora o outro de si mesmo” (BARLUCHI, Op. cit) 


Imagens e Máscaras resultantes de Oficinas no Espaço Cultural Opereta, orientadas por Claudio Domingos Fernandes









Notas

[1] AMARAL, Ana Maria. O Ator e seus duplos, máscaras, bonecos, objetos. São Paulo: SENAC/SP. 2002, p. 41 

[2] BARONE, C. 'La maschera antica sulla scena contemporanea: tragedia e commedia', Percevejo Online, vol. 5, n. 02 (2014), 35-54. Disponível em: www.seer.unirio.br/index.php/ opercevejoonline/article/.../3261

[3] MORI, Federica e SARTORIO, Francesca. L’importanza della maschera teatrale e il mestiere del mascheraio. Disponível em https://aula41.wordpress.com/2015/07/05/limportanza-della-maschera-teatrale-e-il-mestiere-del-mascheraio-federica-mori-e-francesca-sartorio/

[4] Teatro d’Impresa. Le Maschere Teatrali come strumento formativo efficace. Intervista a Duccio Barlucchi. Disponivel in: www.teatroimpresa.it/ admin/dati/336_Intervista%20Duccio%20Barlucchi%20-%20Mas chere.pdf



terça-feira, julho 16, 2019

COMBATENDO CUPINS

Era um antigo casarão colonial, havia algumas modificações internas, mas, com suas janelas e portas centenárias, a fachada frontal se mantinha preservada. Certo dia Amandha percebeu sinais de cupim em uma das janelas. Chamado um especialista, o sujeito se comprometeu a dar um jeito em poucos dias. Amandha e família foram para o sitio em Atibaia. Passados quinze dias, o marido de Amandha resolveu visitar a casa para saber como andava a descupinização, encontrou a casa em ruínas: portas, janelas, assoalhos, vigamento, tudo ardia em fogo. Voltando ao sítio, o marido relatava entusiasmado o que vira: “aquela mesa enorme de madeira entalhada, a penteadeira, a cristaleira, o baú, o oratório, não sobrou nada, nada...” Amandha desesperava-se. O marido a consolava sem perder o entusiasmo: “pelo menos já não tem mais cupim: Taokey e Filhos são mesmo especialista!...”

domingo, julho 14, 2019

EMBAIXO DO UMBUZEIRO



Estes versos eram pra ser um xote
Sanfona zabumba triangulo pandeiro
Noitinha caindo quermesse
Leilão de garrote
Bandeirolas luar que se promete
Gravando os nomes no umbuzeiro
Estes versos eram pra ser um xote  
Blusinha estampada e decote
Flor adornando o cabelo
Saia rodada chinela de dedo
Cintura quebrando
Matuto se enchendo de coragem
Apegando-se ao padroeiro
Estes versos eram pra ser um xote
fogos espocando, algazarra de criança,
Juras de amor embaixo do umbuzeiro
Este versos que xote seria
É um sambinha atravessado
Por um coração choroso
Batendo descompassado
Em noite cinza e fria
Distante do amor sertanejo
Aguardando seu retorno
Embaixo do umbuzeiro...

sexta-feira, julho 12, 2019

O JUIZECO ME FEZ UMA


Devo confessar, o juizeco da republiqueta de Curitiba me foi útil. Seu pouco trato com a língua me fez rever meus textos: É! eu também maltrato, e muito, a norma culta. Descontado o arraigado habito de trocar l por r na escrita, e não pronunciar palavras com “lh” ou terminadas em “ia” corretamente, que me torna um sujeito silente, eu percebo que preciso estar mais atento ao uso da vírgula, para não separar o sujeito da ação, à concordância verbal, ao uso correto do tempo verbal, à ortografia, à sintaxe. Não chego a ser grotesco, mas a norma culta sofre muito comigo. E para quem tem a pretensão de se tornar escritor, respeito à gramática é o mínimo que se espera, como se espera de um juiz parcialidade e respeito ao regramento processual. Tirado o favor que o juizeco me prestou, fazendo-me perceber que castigo meus leitores com meus descuidos gramaticais, espero que o juizeco e os promotores a ele associados respondam por seus crimes contra a democracia brasileira, oportunizando a chegada de uma família de milicianos ao governo.

terça-feira, julho 09, 2019

DESPEDIDA DESAFINADA A JOÃO GILBERTO


Perdoe-me o sambinha desafinado
sambinha em uma nota só
"Hô-bá-lá-lá"...,
"Hô-bá-lá-lá"...,
Mas esse sambinha,
cantado triste assim
"Hô-bá-lá-lá"
Numa nota só
"Hô-bá-lá-lá"
É de um peito triste,
Descompassado de saudade
Desafinando em uma nota só,
O adeus,
"hô-bá-lá-lá",
Em que te ausentas
Barquinho deslizando mar azul
Tardinha caindo
"Hô-bá-lá-lá"...,
"Hô-bá-lá-lá"...,
Em que te ausentas...
Em que te ausentas...
Deixando um coração desafinando
Desafinando de saudade...


quinta-feira, julho 04, 2019

O MARIDÃO

- Menina, não te conto! Recebi uma carta anônima, com umas fotos do Serginho saindo de um motel acompanhado de um sujeito.
- Não, não diga! E você menina?
- Eu, bem, eu confio plenamente no Serginho! Mesmo assim, apresentei a ele as fotos.
- E ele, amiga?
- Ele disse não reconhecer o sujeito, que talvez fosse um cliente da empresa, que era normal aquele tipo de encontro com clientes. E embora não reconhecendo o sujeito e não lembrar se havia se encontrado ou não com ele naquele motel, pediu desculpas.
- E você amiga, e você?
- Bem, eu exigi que ele descubra quem me enviou as fotos. Serginho se comprometeu e já pediu para investigar o carteiro. Segundo ele, entregar cartas anônimas é crime.
- Menina, que maridão heinnn!!!
-Não é, menina!!! Meu conje é tudo de bom!!!

quarta-feira, julho 03, 2019

NO PAÍS DAS COISAS ABSURDAS



Altamiro assistindo ao noticiário não entendia o que estava acontecendo. Para ele: “estão fazendo tempestade em copo d’água!”.  Comadre Zumirha tentava ilustrá-lo com a seguinte história:
          “No país das coisas absurdas, houve uma festa e os convivas, após comer o bolo, que acharam divino, passaram mal. Foram dias de calças arriadas, correndo pra casinha. Passado o perrengue, convocaram o confeiteiro e o condecoraram pelo primor de bolo que fizera. O confeiteiro, todo pampa, informou que havia adaptado uma receita italiana, “usando ingredientes locais.” Soube-se, depois, que o confeiteiro havia adulterado a receita, acrescentando um produto laxativo de comercialização proibida. Chamado a se explicar, o confeiteiro se saiu assim: “eu não me lembro se usei tal produto, é possível que tenha usado, mas se usei, não vejo nada de mais, o importante é destacar que o bolo ficou excepcional”. Alguns convivas davam-lhe razão: “um laxativo de comercialização proibida, era um detalhe menor, no resultado final do bolo, que, diga-se de passagem, ficou extraordinário”, parlamentou um. Outros queriam apenas saber quem havia desmascarado o cozinheiro , porque: “isso não se fazia, era crime!”Houve convivas, que embora continuassem a correr à casinha, postulava novas condecorações ao confeiteiro”.
“Embora eu não veja relação com o noticiário corrente”, manifestou Altamiro, “desconfio que tais convivas cagaram o cérebro”. “Foi o que demonstraram domingo!”, redarguiu Zumirha.