domingo, abril 29, 2018

PARAFUSO SOLTO


No escritório o chamavam Parafuso Solto, porque não se envolvia nas conversas, que giravam sempre entorno de uma ou outra pessoa. Parafuso Solto era alheio à vida alheia. Estava sempre acompanhado de um livro, e falava de coisas elevadas, para um ajudante de limpeza. Parafuso Solto conseguia associar textos do Borges à teologia de Giordano Bruno, associava nossa época a contos de Kafka. Mas as pessoas preocupadas com o carro novo da menina da copa, ou a nova amante de um certo gerente, o achavam incompreensivo, fora dos eixos. Na quebrada o chamavam Latinha, porque nos fins de semana, para aumentar a renda, vendia cerveja, água, refrigerante no farol.  Soubemos chamar Joziel Pereira Pinto na ocasião de seu passamento. E a anedota que contamos se deu de seu passamento. Diz que Parafuso Solto foi pro céu e entabulava conversas com Agostinho, Tomás de Aquino o próprio Giordano Bruno. Veio-lhe de pedir permissão a Pedro de comerciar cerveja entre os respeitados moradores da morada celestial. Permissão concedida, Parafuso Solto logo fez fortuna. Veio-lhe de pedir autorização ao bom Pedro, que tinha participação nos lucros, de expandir os negócios até o inferno. Permissão concedida, Parafuso Solto aventurou-se no inferno. Passado alguns meses, Pedro quis saber como andavam os negócios: “Vai mal, caro sócio! Vai de mal a pior!” “Mas o que acontece?”, indagou o sindico da celestial morada. “As vendas, meu caro sócio, as vendas no inferno são um fracasso! Lá não se vende uma só latinha de cerveja.” “E como é isso?” indagou o bom Pedro. “É que no inferno, santo homem, está cheio de crentes!”, respondeu desanimado Parafuso Solto.   

1968


O ano era 1968. O dia, um domingo de maio. A cunhada avisara que iria para o almoço. Preparou arroz, feijão com calabresa, costelinha de porco no forno e torresmo, batatas cozidas e douradas com alho e óleo, salada mista de alface, cebola tomates e palmito. A cunhada chegou ignorando a invernal jornada,  exuberava elegância e sensualidade em um tubinho de estampa com motivos geométricos acima dos joelhos uma echarpe atada à cintura, tailleur de mesma estampa do tubinho, botas brancas e cabelos soltos. Trouxe um porto e a sobremesa: queijadinhas. Durante o almoço mostrou-se apreensiva com o rumo dos acontecimentos no Brasil e no mundo: “desconfiamos de tudo e de todos, me sinto vigiada por todos os lados”. O marido manifestou a mesma preocupação e professou intenção de sair do país. Opôs-se à ideia, não se via sem a presença da cunhada. Depois, tinha a grata noticia que portava a cunhada: esperava um bebê. Depois do almoço, os maridos saíram para jogar dominó e acompanhar “o jogo do titulo” com os amigos.  Fechou-se no quarto com a cunhada. As crianças brincavam pela casa. De tanto em tanto se ouvia risadas, uma ou outra interjeição. Sentadas na cama folheavam revistas, confidenciavam preocupações, sentimentos, emoções, faziam planos para o futuro que se anunciava no ventre da cunhada... Acariciavam-se com pudor. Ficaram longamente abraçadas, deitadas na cama, numa inconsciente despedida. Tomaram café, fumaram cigarro, ouviram música na vitrola.... Os maridos voltavam festivos, com gols de Edu, Pele e Toninho, o Santos sagrara-se campeão. A noite apenas chegava, a cunhada partiu com um seu sobretudo. Quis dizer-lhe algo, mas a palavra não veio, travou na garganta. Apenas acenou um aceno apreensivo. Na quinta que se seguiu, o dia terminava, chegou a noticia de sua prisão e do marido. Não souberam dizer como, quando e por quê. Até hoje espera informações que a esclareçam e dê conta do paradeiro da cunhada, do irmão, do sobrinho. Guarda sufocado no peito um “eu te amo!”, impossibilitada de pronunciar. 

sábado, abril 21, 2018

NÃO CONFUNDAMOS ALQUIMISTA COM LADRÃO DE MERENDA


Fazia eu alusão ao altivo professor Alvarenga, sujeito meio alunado, no entanto, alumbrado. Altiloquente, era um exímio altercador. Altruísta, escorregava por ser alvinegro. Almo alfabetizador de adultos, Alvarenga, por puro alexandrismo, era diletante na arte da alquimia e no estudo de algas e insetos de nosso litoral. Eu tratava, então, de seus estudos em algologia e suas tateantes tentativas de construir uma alquitara, e produzir alquermes, quando um alóbrogo interrompeu-me: “seu aloprado, aliciador de álacres almas, vou denunciá-lo às altas autoridades: seu alfaqui de araque (na verdade não entendi, devido o alarido que se formou, se era araque ou Iraque). Formado o alvoroço, encolerizado, o alterado boçal saiu auditório a fora proferindo algozarias... Estamos, como diz um amigo meu, atravessando tempos difíceis.

sexta-feira, abril 06, 2018

ADMINISTRAÇÃO THEMER


Em um maio de fins dos anos 90, um adolescente branco foi preso por tráfico. Ele voltava da escola. Apareceu morto num campo de futebol. Os policiais que o prenderam mirabolaram uma história de resgate, e se atribuiu a sua morte a execução de facções criminosas. Poucas pessoas se manifestaram contra o absurdo da história narrada pelos policiais. Josuelmo Santos, líder comunitário, presidente da Associação de Resistência da População Afrodescendente, foi um dos poucos a exigir esclarecimento a respeito das condições inexplicáveis da morte de um jovem sob responsabilidade da policia. Tanto fez que para desacreditarem-no, forjaram um denuncia de desvio de recursos da associação. As pessoas mais próximas à Associação, descontente com seu interesse em defender um jovem branco, aderiram aos que o acusavam e passaram a exigir-lhe o cargo.  Então, numa certa tarde deste maio, um certo Themer, propondo assumir sua posição na associação, assumiu o seguinte discurso: “de cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras. Nossa causa é o povo preto da periferia. São nossos filhos que morrem todos os dias na guerra do tráfico, no fogo cruzado entre milícias, polícias e políticos pelo controle da comunidade. Nossa associação é pros manos é pras manas, pro povo preto. Deixa que os brancos clamem seus mortos, seus direitos. Devemos cuidar dos nossos.” Josuelmo olhou para a assembleia com serenidade: “Camaradas, eu tenho uma causa, mas minha causa não me impede de enxergar que um ser humano foi morto de maneira covarde, não é um irmão preto, uma irmã preta, mas é um que morreu como nossos filhos morrem todos os dias. A proporção esta posta: são três negros a cada branco morto, mas a conta é sempre quatro seres humanos, quatro vidas, que se tornam quarenta, quatrocentas, quatro mil vidas ceifadas abrupta e brutalmente. Exigir a verdade para o Henrique, assassinado  de maneira escusa, não me desvia de nossa luta. Ao contrário, ao garantir-lhe o direito à verdade, estou defendendo o direito de todos nós. Na luta por garantia de direitos não existe a minha causa, a sua causa, a causa do outro. A particularidade de nossa causa não nos deve tornar particularistas. É preciso a visão alargada, para além de nossa bandeira, uma visão que abranja a todos os que se tornam vítimas do descaso e da malicia dos poderes constituídos. Em nossa luta é preciso abarcar tantas outras causas: do direito à moradia à educação e à saúde, do direito à manifestação religiosa à opção sexual à igualdade dos gêneros nas relações de trabalho, do respeito à diversidade ao direito de a mulher sentir-se segura, no lar, no bar, no ônibus, no seu posto de trabalho, etc... Sem sermos capazes de sairmos de nosso gueto, não avançamos em nossas agendas. Se cada movimento se fechar em si, tornamos viável o totalitarismo, favorecemos o que deveríamos combater.” Josuelmo deixou a assembleia da Associação que ajudara a criar, arranjos políticos levaram Themer à presidência.   De cada quatro pessoas mortas pela polícia, uma é branca. “Mas se a polícia matou é porque é bandido”, vamos repetindo, na administração Themer...

quinta-feira, abril 05, 2018

O DIA PEDE RACIONAIS



“Tv é uma merda...
Vou escolher em qual mentira vou acreditar?...”
E não vai ser nesse enredo
Que fala em cidadão de bem
Minha bandeira é vermelho-sangue
Sangue derramado no campo, na cidade
Sangue que não se silencia com sua propaganda na Tv,
Nem com seus memes fakes  
Cidadão de bem o caralho
“Vou escolher em qual mentira vou acreditar”
E não será esta do horário nobre,
Quem defende privilégios
Em uma nação dirigida por canalhas
Democracia é a mentira que defendo
Contra o sonho facista do cidadão de bem
"... Aqui, periferia, miséria de sobra
Um salário por dia garante a mão-de-obra..."
A justiça é o interesse de quem edita o Jornal Nacional
Condescendente com quem tem helicóptero e fazenda
Implacável contra o mano da periferia, a mulher arrimo de família
Não me iludo, a cadela já pariu o monstro que a elite embala
... foda é assistir a propaganda e ver
aquele cara que se humilha no sinal
por menos de um real...
Foda é não reagir ao cidadão de bem gritar: sou Bolsonaro
“... Seu comercial de TV não me engana
Eu não preciso de status nem fama
Seu carro e sua grana já não me seduz
E nem a sua puta de olhos azuis...”
Eu já tenho a minha mentira e não me iludo:
Educação, Cultura, Saúde, Distribuição de Renda
artigo 3º da Constituição.
Democracia e Direitos Humanos sangrando
Caídos ao chão, agonizando
E os canalhas desmantelando o país
Pra delírio dos otários,
Miseráveis que acreditam que vender a nação é
Capitalismo...
“...Se diz que moleque de rua rouba
O governo, a polícia, no Brasil quem não rouba?
Ele só não tem diploma pra roubar
Ele não esconde atrás de uma farda suja...”
(O Milico de alta patente na Tv ameaça
Acovardados ministros da justiça)
“É tudo uma questão de reflexão irmão
É uma questão de pensar”
O dia exige Racionais



segunda-feira, abril 02, 2018

NOS BRAÇOS DE SUZHANA

Um maio dos anos noventa, eu participei de uma oficina de criação literária com um renomado escritor. Em um dos exercícios, tínhamos que apresentar um fruto exótico ou uma cidade e construir uma história a partir desses elementos. Antunes apresentou o cabaço: “O fruto da cabaceira chama a atenção pelo exotismo de seus frutos gigantes grudados ao tronco em tamanho e forma variados. Depois de colhidos e secos, tornam-se pratos, colheres, cuias, chocalhos, corpos de violas e peças de berimbau. Suas sementes podem ser consumidas cozidas ou torradas. E a polpa, em geral, é usada no preparo de xaropes, e tem largo uso na medicina popular como antidiarreico e analgésico. Na língua popular o termo cabaço refere-se ao hímen, à virgindade feminina e à inexperiência masculina em diversos afazeres.” Julio Prestes, ao apresentar Silvânia, localizada no Estado de Goiás, fez questão de lembrar que “nossas origens patriarcais legaram poucos nomes femininos às nossas cidades”. Eu apresentei o baru, uma castanha com sabor similar ao do amendoim, que pode ser consumido in natura, como torrado, em paçoca, rapadura, pé-de-moleque, farinhas. Sua polpa costuma ser usada em óleos, manteigas e tortas. Destas informações e outras mais que foram surgindo nasceu o relato que segue.


Termino o café, pego água, chocolate, balas. Consulto o relógio, dirijo-me ao caixa. Pago a comanda, dirijo-me à plataforma de embarque, procuro um lugar onde aguardar o embarque. Sento-me próximo a dois caburés. Um, com jeito de pé rachado, folheia o jornal, o outro, caneado, confere as informações no bilhete de viagem. Abro o livro e o folheio. “O senhor também vai para Silvânia?”, pergunta o do bilhete ao do jornal. “Não!”, responde o do jornal, com acentuado sotaque goiano, sem tirar os olhos do impresso: “vou ao paraíso”. “Paraíso! Sim! Uma bela cidade!”, redarguiu o caneado, “mas o embarque para o interior não é daquela parte?”, completou. O senhor do jornal, abandonando o jornal, observou: “Não, eu não vou para Paraíso, eu vou ao paraíso.” “Mas, como eu dizia” retomou o do bilhete de viagem, “para Paraíso, se parte da outra parte, aqui se embarca para outros estados”. O senhor do jornal, sorriso maroto, dirigiu-se ao caburé do bilhete, paciensioso: “O senhor não está me entendendo, eu estou indo, de fato, para Silvânia. Mas digo que vou para o paraíso, porque lá me aguarda Elza, minha cafuza, que tenho consumido apenas em sonhos, nestas noites frias de São Paulo. Não vejo a hora de deitar-me ao lado de seu ébano corpo nu, ao luar, embaixo de baruzeiro, reclamando-me. Já me vejo, como timorato cabaço, acariciando-a, despejando-lhe beijos furtivos aos lábios, no cangote, no colo, lambiscando suas morrarias, dois cabeços de onde brotam túmidos mamilos, delicadas amoras. Já me vejo escorrendo a língua, desejoso, à descoberta de formoso botão, abrindo-se em formosa rosa abaixo de tênue penugem. É ao paraíso que vou meu senhor, aos suspiros de perdição e ao brilho dos olhos de minha cabocla. Ao gozo de Elza me destino.” Todo avermelhado, o estrupício do bilhete, abandona o pé rachado do jornal e dirigiu-se a mim: “E a senhorita, também viaja à Silvânia?” “Eu”, sem pestanejar, respondi-lhe: “vou recolher flor de cabaço nos braços de Suzhana, ‘linda morena, fruta de vez temporana’, que hei de desfrutar.” O ônibus chegou, embarcamos todos para Silvânia, cada um carregando um destino.