sábado, novembro 26, 2016

BAGUÁ





Da vila, vô era um dos poucos que não tinha pássaro preso, e quando os homens se gabavam de ter o melhor canoro e disputavam qual a melhor alimentação e disciplina para manter o canto do pássaro, vô saia de lado. “Pássaro é voo e canto”, insistia com pai que tinha em gaiola coleirinhas tui tui, canários, um azulão... “Pássaro preso é baguá”, debatia vô com os tios... Eu não sabia o que era baguá. “É homem tornado bicho, tal boi, tal cavalo”, dizia vô, esmiuçando fumo, rolando cigarro, pitando.
Tia nos contava, então, a história de um certo Rufino condenado à morte porque não era “baguá” e deitou-se com a escravinha do senhor. Foi, no entanto, Afrânio, a quem chamavam professor, porque andava sempre com livro ou revista embaixo do braço e parecia uma enciclopédia ambulante, quem me explicou: “baguá era um termo usado para negros reprodutores. Eram, geralmente, escravos obedientes e serviçais, que por serem muito fieis aos senhores, chegando a denunciar os companheiros que tramassem rebelar-se, gozavam de certas regalias”.
“Para ser baguá”, lembrava Afrânio, “além de obediente e bajulador, o escravo precisava ser forte, robusto, habilidoso. Os senhores de engenho controlavam com que negrinhas ele deitava; observavam o ato sexual, para certificar-se que o escravo havia de fato “enxertado” a escrava; negociavam a futura cria ainda na barriga da escrava”. 
Para vô, baguá era escravo preso ao gozo do senhor que: “prazerava-se com o apego ao sofrimento de outro para não dar-se com da própria dor”.  Na sua função, o baguá e a escrava não eram gente, eram gozo do senhor. Em gaiolas, “pássaros deixam de ser pássaros e nos assemelhamos ao senhor que só encontra gozo na dor”.
Também Afrânio condenava o cultivo de pássaros em gaiolas: “O canto de pássaro preso é canto de injustiça, e quem comete o crime se apraz com a voz que reivindica o que lhe é de direito: a liberdade”. Afrânio, diferente de vô, não se furtava ao debate e se entusiasmava: “O canto preso é o lamento do voo perdido... como a dor do negro, de carne rasgada no açoite, gritando: Liberdade! Liberdade! Liberdade! E quem prende o voo, para gozar o canto, é como capitão do mato, descendo a chibata”. Para vô e para Afrânio: “era preciso não ter memória de nossos ancestrais para carregar gaiolas”.
Eu, como vô, aprecio pássaro solto, saltitando de uma árvore a outra, ciscando o terreiro, soltando seu canto quando lhe apraz cantar, sendo um com o céu. E vô insistia: “homens que prendem pássaros não têm memória da dor de seus ancestrais”. São desses dizia Afrânio que “acreditam em democracia sem chão para plantar, sem escola para seus filhos, sem direito de celebrar seus Orixás, sem liberdade para andar, ir e vir como se quer”.
Quando os homens, então, se gabavam do canto de seus pássaros, vô de seus debates não participava. Sentava no quintal, picava fumo, pitava: “Eu sou de quilombo, guerreiro de Zumbi! Gosto de canto e liberdade!” E vô repetia com Afrânio: “Canto sem voo é coisa de capitão do mato!”
Com ele se juntava Afrânio e tia que nos contava de um certo negro Sebastião: “... mão do senhor na senzala,  não perdoava, descia chibata, descia chibata, descia chibata, aprazendo-se das feridas abrindo o corpo escravo, como arado sulcando a terra... Sebastião, mão de seu senhor, se alimentava de dor  de sangue de lágrimas banhando o terreno; de negro se contorcendo, esvaecendo....” E tia dava razão a vô: “baguá não era homem pleno, era apenas uma função, um instrumento”. Para ela, canto de pássaro era bonito de se ouvir em copa de árvore: “Canto livre é cantiga com cores de saudade, histórias de amores, das lutas do povo, coisas de Afrânio, que não desiste”. E tia era emblemática: “Canto livre é canto da lembrança de um tempo que será amanhã”.
Os homens disputavam qual canoro melhor cantava. Mas aprendi com vô, tia, Afrânio que “pássaro é voo e canto”; que canto livre carrega esperança; que é por medo que se prende pássaros. O amanhã que se canta, no canto que o ontem relata é liberdade.
Tenho por demais vô, tia, Afrânio na cabeça: “Quem oprime teme liberdade. Seu gozo é desumanidade!” Eu escrevo e gostaria, como diz o poeta, que minha escrita fosse “canto e asas”, narrando as lutas de nossos ancestrais: lutas que será amanhã.

quarta-feira, novembro 23, 2016

TEU CANTO




Para Patrícia Nascimento

Teu canto é memória de uma história que nos querem negar. É a lembrança dos  milhões de homens e mulheres de Nigéria, Cabo Verde, Congo Moçambique, Daomei, Angola, Zaire, Quiloa, Zimbáue, extraviados de suas terras de seus pais, filhos, esposas maridos e traficados como mercadoria barata em porões de tormento e aflição. Teu canto é a memória da tenebrosa travessia atlântica em que muitos deles ficaram dispersos mar adentro por não resistirem a sua desumanização.

Teu canto é memória do ferro em brasa marcando a carne, tornando esses milhares de homens e mulheres iorubas, gegês, fanti-ashantis, fula, mandinga, haussas, tapas, bantus... propriedades de impiedosos senhores; da água da cristandade banhando seu rosto, negando, em nome da trindade, sua religiosidade, seus orixás: Nanã, Iansã, Oxala, Xangô, Oxossi, Oxun;  da chibata expropriando seu corpo, seu trabalho, tornando-o mercadoria, moeda, objeto de sádicos desejos.

Canta que teu canto é história dos que enfrentaram a opressão, organizaram os irmãos, fundaram quilombos e resistiram à escravidão. Teu canto é a luta de bravos guerreiros e guerreiras, tombados na luta por liberdade.

Canta para não nos deixar esquecer, pra ferida não cicatrizar, pra não nos dizerem que a harmonia se deu. Canta porque nosso irmão ainda agoniza devido a cor de sua pele, por cultuar seus ancestrais, por querer educação, moradia, trabalho, saúde, a segurança de caminhar e sorrir e não estar sendo filmado por olhares desconfiados... Canta teu lamento, tua dor, porque teus filhos ainda morrem executados, vitimas do tráfico, da polícia-milicia, da elite imperialista, da burguesia patriarcal, da intolerância de pastores-Senhores de um Deus que não se encontra em seus livros. Canta porque fazem da periferia senzala e nos transportam como gado, nos tratam como escória. Canta porque, em lautos jantares, dão curso ao golpe, restringem o direito dos pobres...


Canta que teu canto não é lamento (que chamem vitimismo); é  luta, é resistência. Canta porque em teu canto está a dignidade que haveremos de conquistar.  Canta porque teu canto é a dor de nossos avós, a ESPERANÇA de nossas crianças: Queremos o que é de todos: Não podemos parar de Cantar! A harmonia não se deu, não somos, ainda, uma democracia... 

sábado, novembro 19, 2016

ENCANTO




Foi Christine Ramos quem me ensinou tudo sobre flores enquanto podava suas rosas e adubava canteiros de jasmim. “Na China", diz-me Christine, “mistura-se flores de jasmim a folhas de chá e a combinação de sabor e aroma resultante é muito apreciado”. Passando a cuidar da orquídeas, foi Christine que contou-me a história de dois monges diante de uma flor. Os dois monges caminhavam em direção à capela do mosteiro para celebrar as vésperas, quando, contornando o jardim, vislumbraram uma rosa de especial encanto. Um dos monges logo se apressou a colhe-la: “vou ornar o altar do Senhor”, disse ao companheiro. O segundo monge interviu: “Irmão, o Senhor já a colocou no lugar em que ela o exprime. Não furte ao olhar do mundo o que o Senhor a todos doa.” O monge seguiu ao lado do companheiro entristecido, queria ter levado a flor consigo. O outro monge levou consigo a flor que contemplou, deixando-a no jardim onde a encontrou. Eu tentava dizer a Christine Ramos de meu ceticismo ateu: “meu caro, dizia-me Christine, sois ateu, mas não sois cego e se sois capaz de encantar-se com um sorriso belo, um olhar penetrante, uma lágrima sincera, se sois capaz de ver beleza numa flor que se abre aos raios do sol, há em ti religiosidade, e se sabes acolher o que te encantas sem o tolher, impedindo-o de ser, és humano, o sagrado no homem!” Depois disso, Christine falou-me Begônias. Escrevo isto porque hoje encantei-me com uma beleza sem igual. A colhi deixando-a ser, apenas ser. Graças à tecnologia e a era digital, pude registrar seu sorriso descomunal.

quarta-feira, novembro 09, 2016

Estamos na volta do pêndulo!/ O retorno nunca é/ ao que era antes/ Isto permite o dessossego/ O eterno retorno,/ nunca é retorno ao mesmo/ é compressão em mola,/ que arremessa ao ponto oposto/ Estamos na volta do pêndulo/ a história não acaba/ Dará um salto!/ O resultado desconheço/ Eis meus receios,/ ou pior,/ medos!  

sábado, novembro 05, 2016

OS OLIVAS


Tinha lá Perseu, dado a fazer versos para enamorar Judithe. E Perseu se saiu com essa: “Minha amada, não te esmaeças/ É tempo que os olivas nos amargam a vida/ e seus espinhos/ ferem-nos a carne,/ Tira-nos os filhos/ Fruto novo a flor já anuncia/ Recolha o temor,/ altiva Rainha. O sombrio que nos encalça/é nuvem e já passa: Temer não é de nossa raça.”
Tinha lá uns gramáticos e riram-se: “os olivas, kkkkk! Vejam só!: não combina o artigo ao substantivo e quer versejar.  Kkkkkk!
Athilio socorreu o poeta: “homem do povo, não dê ouvido aos doutos, quando presos às regras, o sentido não enxergam, ou, como lhes convém, desprezam”.
Tinha lá um que se ofendeu com a defesa de Athilio: “Oh matuto! Quem tu pensas ser, para advogar contra nosso parecer?”
Athilio bicou uma cachaça, fiou seu fumo de corda, tomou a voz: “Sou matuto, homem de pouca fala, mas não sou estulto. E bem sabeis que o homem do povo não fala de azeitonas, mas dos homens de fardas e do regime que nos oprime e “amargam a vida”; fala que estes tratam-nos como escravos, tramam contra nós em lautos jantares, tira-nos o sono, a tranquilidade, enche-nos de incertezas, “ferem-nos a carne”, quando nos manifestamos e exigimos nosso naco de pão; “tira-nos os filhos”, exterminam nossos jovens e somem com seus corpos; “não esmaeças”, não percas o sentido de teu ser, de tua cor, de tua origem; “é nuvem e já passa”, todo governo que não tem no povo sua força, assombra, mas não vinga. Dura séculos, mas não vinga, é fruto temporão. Mas o fruto novo, o que sustenta a luta, o que mantém a resistência, a “flor o anuncia”: É o reinado do povo. E  “Temer não é de nossa raça”, diz que havemos de resistir, mas diz, sobretudo, que quem nos governa nós não o reconhecemos. Seu governo é desfaçatez e dissimulação, é engodo, preparação para o “sombrio que nos encalça”. Athilio bicou cachaça, pitou fumo e conjecturou consigo: “Judithe não é mulher; é um povo prenhe de seu reinado”...

Os gramáticos voltaram às redações de seus jornais e editaram “Fumo de corda e cachaça matam matuto”. Noutra pagina se pode ler: “poeta é preso: capitão achou de mau gosto ele não obedecer a gramática.”   

quinta-feira, novembro 03, 2016

SOBRE O DISCURSO DE ÓDIO

Pobre com inveja do rico (o comunismo segundo os liberais tupiniquins) é até certo ponto compreensível. Rico gosta de ostentar sua condição de "bem estar" e satisfação. O esnobismo do rico, embora seja uma afronta, tanto mais quando a riqueza é fruto de engodo,  é compreensível. Agora o ódio de determinados grupos, e pessoas que embarcam em sua ideologia, ao pobre (e tem muito pobre com ódio de pobre) é um caso preocupante. Contra a inveja se sugestiona o trabalho e a resignação; contra o esnobismo, a humildade e a caridade. Contra o ódio não há argumento. Ele tem suas origens no apego infantil pelo que resulta do processo digestivo. Pessoas que odeiam por odiar, geralmente tinham dificuldade para defecar, esta dificuldade subiu ao cérebro e ao coração. Pessoas que odeiam pobre são pessoas embotadas. Não há argumento que as demova. Experimente conversar com uma criança birrenta, é o caso dos grupos e pessoas que pregam e apoiam discursos de ódio...       

terça-feira, novembro 01, 2016

ANÁSTHACIO


Quando pai abria a vendinha, Anásthacio, cedo, manhãzinha, já seu rabo de galo pedia. “Era para ligar-se ao mundo”, dizia. Depois tomava rumo da estação, e já finzinho de tarde, junto com os operários da velha fábrica de tecidos, Anásthacio, encostava a jogar dominó e contar casos. “A quem couber o chapéu, faça uso!, era um seu bordão.” Todos davam o “galego”, assim o chamavam, por homem instruído, lia jornal, trazia consigo sempre uma revista, um livro. Não era de se embriagar, tomava seu rabo de galo, “pra se ligar ao mundo”, e outro “para o mundo abandonar”, quando pai, já noitinha, dispensava todos e a vendinha fechava.

Dos fregueses de pai, de Anásthacio, eu gostava. Gostava de ouvi-lo, e ele dizia que “ mal de pobre é revelar seus sonhos de riqueza perto de padre, político e banqueiro.” E completava: “riqueza de pobre não é grande coisa não, casinha cômoda, escola pros filhos, médico no posto, carteira assinada. Fora isso, pobre sonha com a loteria, mas pra coisa supérfluas: Casa na praia, carro bonito, sossego na rede. Mas vida de patrão não se ganha na loteria, se ganha extorquindo pobre.”  As pessoas riam de seus gestos com as mãos simulando destroncar galinha pro almoço, como vó fazia. Extorquir ganhava sentido.

Numa peleja com Zózimo, soldado do batalhão da polícia, que dava a ultima voz em tudo, até nas contas de pai, dado a chamar trabalhador de preguiçoso e pobre de sossegado e vadio, “tem é que matar”, dizia, invocando a proteção de Nosso Senhor Jesus Cristo, Anásthacio, sem perder a linha emendou: “desconfie (querendo dizer: não confie de maneira alguma) de quem não tendo nada, pensa primeiro no que pode perder. Geralmente, são pessoas que abraçam quem lhes pede o sacrifício por um algo impreciso: “vida melhor”, neste mundo, no futuro, porém, quando o bolo crescer, ou numa beata eternidade que não é certa, pois, depois de tanta penitência corre-se o risco de não a merecer. Tem quem humilha o empobrecido (sim, as pessoas são tornadas pobres) porque acredita ter vencido na vida, porque consegue pagar a crédito o naco a mais de carne no prato. Desconfie dessa gente, é capitão do mato, é capataz, porque come da mesa do senhor e não se acha servo... É comum a quem se desdobra para ser admitido como membro de uma classe que o desdenha a boa formação, o bom estudo, os títulos na parede – viseiras – escarnecer de quem já é humilhado e extorquido.”

“Comunista, fdp. Ateu do caralho...”, esbravejava Zózimo.

“Desconfie, meus amigos, desconfie, de gente que no meio de empobrecidos operários, se faz acima de tenente, mas sequer tem patente. Não digo quem é, mas se o chapéu couber, faça uso” .      

Pai, para evitar maior confusão, ia dispensando uns e outros e baixando a porta da vendinha.   Na manhã seguinte Anásthacio não apareceu para o tradicional rabo de galo. Zózimo sim, trazendo uma ordem judicial que proibia as reuniões e manifestação de teor político, autorizando a autoridade presente (no caso Zózimo, que mesmo sem patente achava-se mais que tenente), dar voz de prisão a quem imitisse opinião...



Tenho saudades de Anásthacio quando lei que mais uma global, não me interessei pelo nome, andou desdenhando nortistas e nordestinos e pedindo para deputados se calarem; que a policia de Santos andou prendendo artista; que houve manifestação pro Trump, na paulista; que o MBL está a combater adolescentes em porta de escola e o Malafalsa teve um gozo com o Crivella...

Eu sou esquerdopata, confesso. Isto significa que deveria, por questões dialéticas, ter os direitopatas. Mas, infelizmente não existe! E a direita brasileira, se existe, e quer ter algum respeito, tem que vir a público esclarecer que quem dá audiência a esses aloprados, não são nem arremedos do que poderia vir a ser os direitopatas. São apenas seres bizarros, que, por comer, a crédito, Mclanche Feliz, se acham príncipes de Mônaco.

Eu sigo a risca o que Anásthacio ensinou-me: desconfio de quem desdenha do empobrecido, seja do norte, do sul, da África,  dos EUA. Sim, as pessoas são extorquidas até de seus sonhos, por padres, pastores, políticos, juízes, banqueiros... Eu não dou a mínima a quem  sustenta a meritocracia da compra a prazo e, não passando de consumidor, se acha um com os que nos roubam: São seres sem patente com arroubos de presidente, deste embuste que nos governa.

Quando eu vejo cenas de policiais armados de cassetetes, bombas de gás, e a característica truculência e arrogância da força militar, tratando com adolescentes, não posso deixar de pensar no velho ANÁSTHACIO que costumava dizer: "Militar é de capitão acima! Abaixo é pobre fardado com ódio de pobreza". Quanto a um Deus de Brasilia, eu ainda estou com vó: "Juiz, meu fio", dizia, "é um terceiro que se locupleta das partes".