Diz Gicovate (1973) que Franz
Kafka foi “um homem que permaneceu durante toda a sua vida à margem da família,
da língua, da religião”. E alheio à realidade, e à própria obra, devemos a seu
amigo e testamenteiro Max Brod podermos ler O
processo, o Castelo, o desaparecido ou América, entre outras páginas de sua
“paradoxal, profunda, analítica, atemorizante, prenhes de angústias e pavor”,
produção literária (Gicovate).
Assim, contra sua vontade, a preservação e
divulgação de sua obra o tornou um dos autores mais lidos e estudado do século
XX. E o termo “kafkiano” tornou-se um termo para indicar “tudo aquilo que
parece estranho, inusual, impenetrável e absurdo” (Modesto Carone, 2009, p.
100). Mas sua obra não desperta interesse apenas literário. Seus textos são
objetos de estudos teológicos, psicanalíticos, jurídicos, sociológicos
filosóficos.
A nosso juízo, o que melhor caracteriza os escritos de Kafka é o
estranhamento que nos provoca as situações embaraçosas de seus personagens. Estranhamento
que se torna prefiguração de situações de nossa vida atual. Num clássico como O processo (1925), por exemplo, acompanhamos com desconforto a
aventura de Josef K, submetido a um processo
em que não se formaliza uma acusação, mas se chega um veredicto e sua
execução: “uma faca profundamente cravada em seu coração.” O incomodo que nos provoca
acompanhar Josef K em busca de motivo de seu processo e não encontrar
respostas, e, sem uma causa especifica, ser julgado, condenado e executado,
prefiguram o processo de impeachment que se deu contra Dilma Rousseff
e
as ações da “República de Curitiba” que abriram as portas ao bolsonalismo e à
pregação golpista que culminou no 8 de janeiro.
Em O processo, diante do absurdo de um
processo em que não está claro os motivos que levam o réu a julgamento, o tio
de Josef K lhe adverte: “contra este tribunal não é possível se defender, é
preciso fazer uma confissão”. Maior desconforto provoca a orientação do
advogado: “a única coisa acertada é se conformar com as condições existentes.” Este
convite à resignação nos é feito todos os dias, diante das tragédias anunciadas
que nos atingem. Assim, um pai de família morre numa operação policial
cravejado oitenta vezes, outro morre sufocado por gás de pimenta num camburão,
balas perdidas, sempre oriundas de armamento policial, encontram corpos negros
como destino. “É a vida!” “É a violência!” “Só podemos lamentar e rezar a Deus!”...
O que em Kafka acreditamos absurdo, vivemos absurdamente em nosso cotidiano. Cotidianamente,
nossos pais, nossas mães, nossos filhos, nossas filhas, nossos amigos e amigas,
sem justificativa, a não ser o tom da pele e ou o endereço e ou a orientação
sexual, são condenados e ou executados sem sequer serem processados. Talvez
seja o quadro de ausência de um motivo concreto, a não ser o preconceito, para
a truculência policial em nossas comunidades, um dos motivos pelos quais os
enredos de Kafka nos pareçam tão reais.
A impressão de que Kafka escreva sobre a hora
presente é ainda mais patente na novela: Na
colônia penal, publicada em 1918. Ela trata de um peculiar sistema de
execução numa colônia penal em algum lugar dos trópicos. Um explorador está em
visita à colônia penal e acompanha a preparação, por um oficial, de uma peculiar
máquina de execução penal. É com entusiasmo que o oficial apresenta ao
explorador o extraordinário maquinário utilizado no sentenciamento de
condenados. A máquina, conforme explica o oficial ao visitante, ao executar a
pena a um condenado, escreve-lhe à pele a causa de sua condenação, causa essa não
esclarecida ao condenado a não ser durante a execução da pena: “Seria inútil comunicar
ao réu a causa de sua condenação. Depois, ele aprenderá a conhecê-la em seu
corpo.”, explica o oficial, que detalha
ao visitante a estrutura e a operação da máquina. E percebendo que o visitante
não expressa nenhum entusiasmo pela engenhoca, apela para que ele não emita
nenhuma opinião sobre a mesma com o comandante, que pretende desativá-la. Ao
desfecho da narrativa, o oficial, entusiasta do mecanismo, surpreendentemente,
dispensa o condenado à espera da execução, recalibra as engrenagens e assume a
posição do condenado. No entanto, a máquina não lhe escreve sentença alguma nas
suas costas, limita-se apenas a dilacerar seu corpo.
Ficcional, o texto de Kafka não deixa de aproximar-se
de nossos sistemas prisionais que comportam um número incontável de aprisionados
sem qualquer julgamento prévio, mas que carregam na cor da pele a causa de seu
aprisionamento. A descrição e defesa entusiasmadas que faz o oficial da
engenhoca de tortura na Colônia Penal encontraria em certos setores de nossa
sociedade o mesmo entusiasmo e defesa. Basta ler como normalizam em suas
colunas jornalísticas a truculência policial em comunidades pobres. Em nossas
periferias morremos “como cães”. “Morro como um cão”, foi a expressão de Josef
K, cravado no coração.
Em nosso dia a dia, a maquinaria complexa da
colônia penal de Kafka é simplesmente substituída por “balas perdidas”. Na
rotina de nossas periferias, uma grande colônia penal, a intervenção policial
caracteriza-se pelo descaso com a vida, e com o direito. Defensores da
brutalidade, da ação repressiva, de métodos de tortura, “lubrificam” os agentes
do Estado de um desejo de justiçamento, que não deixa ao condenado o direito de
saber o motivo de sua execução e o direito de se defender em um julgamento
isento.
O absurdo que transparece das narrativas de
Kafka nos é tão rotineiro que não nos aterrorizamos. Não obstante a
arbitrariedade com que somos julgados, condenados e executados em nossas
periferias, seguimos caminhando como Gregor Samsa, para quem acordar
metamorfoseado inseto “pareceu algo tão comum quanto pegar um resfriado.”
Tal qual os personagens de Kafka, submetidos a
estruturas sociais que os desumanizam, em que “um homem apanhado na máquina
burocrática já está condenado” e é executado “como cão”, nossos pais, nossas mães,
nossos filhos, nossas filhas, em nossas colônias penais, nossas periferias, sob
o olhar admirado dos adoradores da truculência e do arbítrio, sucumbem à ação
policial, maquinaria eficiente em justiçar.
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