quinta-feira, junho 11, 2020

DA COLÔNIA PENAL ÀS NOSSAS PERIFERIAS

“Sobra sempre pro morador, é sempre o morador que é atingido” (de uma moradora da Vila Baiana, bairro do Guarujá em que se deu a Operação Escudo, promovida pela polícia militar).

 

            Diz Gicovate (1973) que Franz Kafka foi “um homem que permaneceu durante toda a sua vida à margem da família, da língua, da religião”. E alheio à realidade, e à própria obra, devemos a seu amigo e testamenteiro Max Brod podermos ler O processo, o Castelo, o desaparecido ou América, entre outras páginas de sua “paradoxal, profunda, analítica, atemorizante, prenhes de angústias e pavor”, produção literária (Gicovate).

Assim, contra sua vontade, a preservação e divulgação de sua obra o tornou um dos autores mais lidos e estudado do século XX. E o termo “kafkiano” tornou-se um termo para indicar “tudo aquilo que parece estranho, inusual, impenetrável e absurdo” (Modesto Carone, 2009, p. 100). Mas sua obra não desperta interesse apenas literário. Seus textos são objetos de estudos teológicos, psicanalíticos, jurídicos, sociológicos filosóficos.

             A nosso juízo, o  que melhor caracteriza os escritos de Kafka é o estranhamento que nos provoca as situações embaraçosas de seus personagens. Estranhamento que se torna prefiguração de situações de nossa vida atual.  Num clássico como O processo (1925), por exemplo, acompanhamos com desconforto a aventura de Josef K, submetido a um processo  em que não se formaliza uma acusação, mas se chega um veredicto e sua execução: “uma faca profundamente cravada em seu coração.” O incomodo que nos provoca acompanhar Josef K em busca de motivo de seu processo e não encontrar respostas, e, sem uma causa especifica, ser julgado, condenado e executado, prefiguram o processo de impeachment que se deu contra Dilma Rousseff e as ações da “República de Curitiba” que abriram as portas ao bolsonalismo e à pregação golpista que culminou no 8 de janeiro.

Em O processo, diante do absurdo de um processo em que não está claro os motivos que levam o réu a julgamento, o tio de Josef K lhe adverte: “contra este tribunal não é possível se defender, é preciso fazer uma confissão”. Maior desconforto provoca a orientação do advogado: “a única coisa acertada é se conformar com as condições existentes.” Este convite à resignação nos é feito todos os dias, diante das tragédias anunciadas que nos atingem. Assim, um pai de família morre numa operação policial cravejado oitenta vezes, outro morre sufocado por gás de pimenta num camburão, balas perdidas, sempre oriundas de armamento policial, encontram corpos negros como destino. “É a vida!” “É a violência!” “Só podemos lamentar e rezar a Deus!”... O que em Kafka acreditamos absurdo, vivemos absurdamente em nosso cotidiano. Cotidianamente, nossos pais, nossas mães, nossos filhos, nossas filhas, nossos amigos e amigas, sem justificativa, a não ser o tom da pele e ou o endereço e ou a orientação sexual, são condenados e ou executados sem sequer serem processados. Talvez seja o quadro de ausência de um motivo concreto, a não ser o preconceito, para a truculência policial em nossas comunidades, um dos motivos pelos quais os enredos de Kafka nos pareçam tão reais.

A impressão de que Kafka escreva sobre a hora presente é ainda mais patente na novela: Na colônia penal, publicada em 1918. Ela trata de um peculiar sistema de execução numa colônia penal em algum lugar dos trópicos. Um explorador está em visita à colônia penal e acompanha a preparação, por um oficial, de uma peculiar máquina de execução penal. É com entusiasmo que o oficial apresenta ao explorador o extraordinário maquinário utilizado no sentenciamento de condenados. A máquina, conforme explica o oficial ao visitante, ao executar a pena a um condenado, escreve-lhe à pele a causa de sua condenação, causa essa não esclarecida ao condenado a não ser durante a execução da pena: “Seria inútil comunicar ao réu a causa de sua condenação. Depois, ele aprenderá a conhecê-la em seu corpo.”, explica o oficial, que detalha ao visitante a estrutura e a operação da máquina. E percebendo que o visitante não expressa nenhum entusiasmo pela engenhoca, apela para que ele não emita nenhuma opinião sobre a mesma com o comandante, que pretende desativá-la. Ao desfecho da narrativa, o oficial, entusiasta do mecanismo, surpreendentemente, dispensa o condenado à espera da execução, recalibra as engrenagens e assume a posição do condenado. No entanto, a máquina não lhe escreve sentença alguma nas suas costas, limita-se apenas a dilacerar seu corpo.

Ficcional, o texto de Kafka não deixa de aproximar-se de nossos sistemas prisionais que comportam um número incontável de aprisionados sem qualquer julgamento prévio, mas que carregam na cor da pele a causa de seu aprisionamento. A descrição e defesa entusiasmadas que faz o oficial da engenhoca de tortura na Colônia Penal encontraria em certos setores de nossa sociedade o mesmo entusiasmo e defesa. Basta ler como normalizam em suas colunas jornalísticas a truculência policial em comunidades pobres. Em nossas periferias morremos “como cães”. “Morro como um cão”, foi a expressão de Josef K, cravado no coração.

Em nosso dia a dia, a maquinaria complexa da colônia penal de Kafka é simplesmente substituída por “balas perdidas”. Na rotina de nossas periferias, uma grande colônia penal, a intervenção policial caracteriza-se pelo descaso com a vida, e com o direito. Defensores da brutalidade, da ação repressiva, de métodos de tortura, “lubrificam” os agentes do Estado de um desejo de justiçamento, que não deixa ao condenado o direito de saber o motivo de sua execução e o direito de se defender em um julgamento isento.

O absurdo que transparece das narrativas de Kafka nos é tão rotineiro que não nos aterrorizamos. Não obstante a arbitrariedade com que somos julgados, condenados e executados em nossas periferias, seguimos caminhando como Gregor Samsa, para quem acordar metamorfoseado inseto “pareceu algo tão comum quanto pegar um resfriado.”

Tal qual os personagens de Kafka, submetidos a estruturas sociais que os desumanizam, em que “um homem apanhado na máquina burocrática já está condenado” e é executado “como cão”, nossos pais, nossas mães, nossos filhos, nossas filhas, em nossas colônias penais, nossas periferias, sob o olhar admirado dos adoradores da truculência e do arbítrio, sucumbem à ação policial, maquinaria eficiente em justiçar.

 

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