sábado, junho 27, 2020

MUNDO-PÁSSARO


Por um instante, desvio o olhar da tela do computador
olho para a janela e meu olhar se dá
com o mundo-pássaro
e o que não podia, devido a urgências de um terceiro,
se deixar de ser feito,
pra rodar a ciranda do
dinheiro
perde a primazia
Agora todo o tempo é para a presença
do mundo-pássaro
desse diálogo de olhares sem interesses
e urgências...

CRÔNICA RURAL



O galinheiro por um longo tempo foi comandado por um galo sinistro, que passou o comando para uma galinha de poucas intimidades, sem traquejo a negociatas, que, golpeada, foi substituída por um pavão despenado com apoio de marrecos e patos. Então, correu-se o risco de o galo sinistro voltar, o impediram, mas ele tinha um pupilo. E para evitar o pupilo do galo sinistro, patos e marrecos juntaram-se apostaram num gavião, que não disfarçava querer acabar com metade do galinho e dividir a outra parte com a águia, a quem declarava amores... Agora tem galinha choca arrependida dizendo que não tinha alternativa, “não tinha coisa melhor”. Preferiu um gavião, que fazia elogios ao abutre e declarava inclinações hiênicas, a um franguinho que a essa altura, fosse o eleito, por menos, já estaria impeachmado. No lugar de remédio para sua desfaçatez, ao invés de recitarem mantras, as velhas galinhas tomariam cicuta? Não! Mas de suas instâncias forradas de bom feno e com seus cochos bem nutridos, pareceu-lhes sensato dar voto de confiança a um gavião com arroubos de hiena. As galinhas chocas arrependidas votaram pensando nas próprias penas, e seu arrependimento é só com o gavião que, mostrando-se preocupado em apenas proteger seu ninho, tem sido inepto em acabar, como prometera, com as galinhas de angola e as caipiras, com os galos índios e sertanejos que insistem em ter terreiro e poleiro para ciscar e cantar. Com a entrega do galinheiro para a companhia de caldos, as galinhas chocas, os patos e os marrecos continuam de acordo...  

segunda-feira, junho 15, 2020

RELATOS DE UM PLANTÃO EM DEPOIS DE LÁ



A verdade só pode ser dita nas malhas da ficção. Jacques Lacan

Na noite de 27 do corrente mês, por volta das 20h, fomos acionados para uma ocorrência na região da Tijuca com Higienópolis, na área das grandes habitações. Chegamos à rua Dos Tucanos, número 171, local da ocorrência. Deparamos com uma distinta senhora, que nos atendeu: “graças a Deus vocês chegaram, meu genro surtou: a bolsa caiu dois pontos, o dólar nas alturas... Ele agrediu minha filha...” Enquanto a distinta senhora nos relatava os fatos, o cidadão de bem, genro da distinta senhora, saiu à porta da residência e nos acolheu sustentando em uma das mãos uma pistola semi automática, enquanto puxava a esposa pelos cabelos com a outra. E com toda gentileza de sua classe nos chamou de seus vassalos, chupa saco, coisa e tal e nos questionou com as seguintes palavras: “o que vocês querem aqui, seus merdas?” E em seguida emendou: “vocês são valentes lá nos bairros baixos, aqui quem late e rosna é nóis; aqui vocês balançam o rabo e dão as patas, seus bostas”. Tomando pé da situação reconhecemos que o cidadão de bem não faltava com a razão. Em plena crise a esposa insistia em fazer compras em Miami. Qualquer sujeito perde mesmo a cabeça. Pedimos desculpas por perturbá-lo e Informamos à distinta senhora sua sogra que se ela continuasse a se queixar do genro a levaríamos presa... Reforçando nossos pedidos de desculpas e nos colocando a inteira disposição do cidadão de bem, retornamos à viatura. Pudemos ouvir, ainda, o gentil cidadão dizer-nos: “Isto, vão esculachar uns neguinhos por ai, seus botas, é pra isto que eu pago impostos”. Consideramos, novamente, razoável a fala do distinto cidadão, não entendemos de economia: dois pontos na bolsa, o dólar ao preço que está... Realmente, não há cidadão de bem que não surte.  
Já por volta das 22h10, passando pela padaria “Pavão Misterioso”, para uma tradicional coxinha. Ali, deparamo-nos com Pedro Mata Sem Vê, conhecido chefe de uma boca na redondeza que conversava com um seu associado nos seguintes termos: “tem uns perrengues ai atrapalhando os negócios, uns papos de cursinho universitário, de biblioteca comunitária, umas paradas assim de ocupar a molecada com arte educação..., estas paradas atrapalha os negócio...” Meu parceiro que acompanhava a conversa, terminando sua porção, pediu respeitosamente licença na conversa: “É nosso dever proteger quem movimenta a economia local; quem trás desenvolvimento para a comunidade” e ofereceu nossos serviços para proteger o promissor negócio de Pedro Mata Sem Vê. O distinto cidadão, agradeceu, informando-nos que tinha métodos próprios para lidar com a situação: “Nóis apaga um ou dois tipos e tudo se ajusta!”.   
Deixando a padoca e tomando a Ladeira do Lava Pés nos deparamos com dois tipos suspeitos, pelo modo de andar, as roupas, o estilo de cabelo, mochila nas costas, não pestanejamos, fizemos sinal para que eles parassem. Eles prontamente encostaram à parede e levaram as mãos à cabeça. Logo percebemos que eles estavam acostumados com o procedimento. Meu companheiro já desceu da viatura descendo a borracha e escrachando geral. Pra não ficar no prejuízo, também já desci da viatura descendo a bota. Jogamos os dois no camburão... Rodamos algumas horas com os dois. Desovamos os corpos lá no Almas Perdidas. Depois não vimos mais... Meu parceiro e eu, recitamos passagens da Sagrada Escritura, agradecendo o Bom Deus sua divina proteção e o justo discernimento no enfrentamento da criminalidade... Foi um rotineiro e maçante plantão, o cumprimos com dignidade.

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FAMILIARES PROCURAM JOVENS DESAPARECIDOS NO RETORNO DA ESCOLA... (Diário de Depois de Lá, 29 do mês corrente)



quinta-feira, junho 11, 2020

DA COLÔNIA PENAL ÀS NOSSAS PERIFERIAS

“Sobra sempre pro morador, é sempre o morador que é atingido” (de uma moradora da Vila Baiana, bairro do Guarujá em que se deu a Operação Escudo, promovida pela polícia militar).

 

            Diz Gicovate (1973) que Franz Kafka foi “um homem que permaneceu durante toda a sua vida à margem da família, da língua, da religião”. E alheio à realidade, e à própria obra, devemos a seu amigo e testamenteiro Max Brod podermos ler O processo, o Castelo, o desaparecido ou América, entre outras páginas de sua “paradoxal, profunda, analítica, atemorizante, prenhes de angústias e pavor”, produção literária (Gicovate).

Assim, contra sua vontade, a preservação e divulgação de sua obra o tornou um dos autores mais lidos e estudado do século XX. E o termo “kafkiano” tornou-se um termo para indicar “tudo aquilo que parece estranho, inusual, impenetrável e absurdo” (Modesto Carone, 2009, p. 100). Mas sua obra não desperta interesse apenas literário. Seus textos são objetos de estudos teológicos, psicanalíticos, jurídicos, sociológicos filosóficos.

             A nosso juízo, o  que melhor caracteriza os escritos de Kafka é o estranhamento que nos provoca as situações embaraçosas de seus personagens. Estranhamento que se torna prefiguração de situações de nossa vida atual.  Num clássico como O processo (1925), por exemplo, acompanhamos com desconforto a aventura de Josef K, submetido a um processo  em que não se formaliza uma acusação, mas se chega um veredicto e sua execução: “uma faca profundamente cravada em seu coração.” O incomodo que nos provoca acompanhar Josef K em busca de motivo de seu processo e não encontrar respostas, e, sem uma causa especifica, ser julgado, condenado e executado, prefiguram o processo de impeachment que se deu contra Dilma Rousseff e as ações da “República de Curitiba” que abriram as portas ao bolsonalismo e à pregação golpista que culminou no 8 de janeiro.

Em O processo, diante do absurdo de um processo em que não está claro os motivos que levam o réu a julgamento, o tio de Josef K lhe adverte: “contra este tribunal não é possível se defender, é preciso fazer uma confissão”. Maior desconforto provoca a orientação do advogado: “a única coisa acertada é se conformar com as condições existentes.” Este convite à resignação nos é feito todos os dias, diante das tragédias anunciadas que nos atingem. Assim, um pai de família morre numa operação policial cravejado oitenta vezes, outro morre sufocado por gás de pimenta num camburão, balas perdidas, sempre oriundas de armamento policial, encontram corpos negros como destino. “É a vida!” “É a violência!” “Só podemos lamentar e rezar a Deus!”... O que em Kafka acreditamos absurdo, vivemos absurdamente em nosso cotidiano. Cotidianamente, nossos pais, nossas mães, nossos filhos, nossas filhas, nossos amigos e amigas, sem justificativa, a não ser o tom da pele e ou o endereço e ou a orientação sexual, são condenados e ou executados sem sequer serem processados. Talvez seja o quadro de ausência de um motivo concreto, a não ser o preconceito, para a truculência policial em nossas comunidades, um dos motivos pelos quais os enredos de Kafka nos pareçam tão reais.

A impressão de que Kafka escreva sobre a hora presente é ainda mais patente na novela: Na colônia penal, publicada em 1918. Ela trata de um peculiar sistema de execução numa colônia penal em algum lugar dos trópicos. Um explorador está em visita à colônia penal e acompanha a preparação, por um oficial, de uma peculiar máquina de execução penal. É com entusiasmo que o oficial apresenta ao explorador o extraordinário maquinário utilizado no sentenciamento de condenados. A máquina, conforme explica o oficial ao visitante, ao executar a pena a um condenado, escreve-lhe à pele a causa de sua condenação, causa essa não esclarecida ao condenado a não ser durante a execução da pena: “Seria inútil comunicar ao réu a causa de sua condenação. Depois, ele aprenderá a conhecê-la em seu corpo.”, explica o oficial, que detalha ao visitante a estrutura e a operação da máquina. E percebendo que o visitante não expressa nenhum entusiasmo pela engenhoca, apela para que ele não emita nenhuma opinião sobre a mesma com o comandante, que pretende desativá-la. Ao desfecho da narrativa, o oficial, entusiasta do mecanismo, surpreendentemente, dispensa o condenado à espera da execução, recalibra as engrenagens e assume a posição do condenado. No entanto, a máquina não lhe escreve sentença alguma nas suas costas, limita-se apenas a dilacerar seu corpo.

Ficcional, o texto de Kafka não deixa de aproximar-se de nossos sistemas prisionais que comportam um número incontável de aprisionados sem qualquer julgamento prévio, mas que carregam na cor da pele a causa de seu aprisionamento. A descrição e defesa entusiasmadas que faz o oficial da engenhoca de tortura na Colônia Penal encontraria em certos setores de nossa sociedade o mesmo entusiasmo e defesa. Basta ler como normalizam em suas colunas jornalísticas a truculência policial em comunidades pobres. Em nossas periferias morremos “como cães”. “Morro como um cão”, foi a expressão de Josef K, cravado no coração.

Em nosso dia a dia, a maquinaria complexa da colônia penal de Kafka é simplesmente substituída por “balas perdidas”. Na rotina de nossas periferias, uma grande colônia penal, a intervenção policial caracteriza-se pelo descaso com a vida, e com o direito. Defensores da brutalidade, da ação repressiva, de métodos de tortura, “lubrificam” os agentes do Estado de um desejo de justiçamento, que não deixa ao condenado o direito de saber o motivo de sua execução e o direito de se defender em um julgamento isento.

O absurdo que transparece das narrativas de Kafka nos é tão rotineiro que não nos aterrorizamos. Não obstante a arbitrariedade com que somos julgados, condenados e executados em nossas periferias, seguimos caminhando como Gregor Samsa, para quem acordar metamorfoseado inseto “pareceu algo tão comum quanto pegar um resfriado.”

Tal qual os personagens de Kafka, submetidos a estruturas sociais que os desumanizam, em que “um homem apanhado na máquina burocrática já está condenado” e é executado “como cão”, nossos pais, nossas mães, nossos filhos, nossas filhas, em nossas colônias penais, nossas periferias, sob o olhar admirado dos adoradores da truculência e do arbítrio, sucumbem à ação policial, maquinaria eficiente em justiçar.

 

sábado, junho 06, 2020

AMANHÃ




Quando o dia da paz renascer
Quando o Sol da esperança brilhar
Eu vou cantar... (Utopia, Zé Vicente)


Eu sempre acreditara que seria breve, que havia nascido para poucos dias, poucos anos, que não passaria dos trintas. Ensaiei não chegar aos quarenta, ensaios erráticos, que apenas trouxeram preocupações a terceiros. Esses ensaios ensinou-me que um suicida não escolhe o dia de sua partida; contra a morte não há vontade, não basta querer é preciso que a morte queira, é ela quem escolhe o momento. Senão for de sua vontade, a corda arrebenta antes do sufocamento, a queda quebra os ossos, mas não dilacera os órgãos, não te conduz para além da dureza do chão.  Tenho aguardado, então, que ela se apresente, que ela me decida. Há, porém, esses dias difíceis, dias em que o noticiário faz-se me convite a novos ensaios... Entro, então, em batalhas perdidas, está sim minha sina. Faço aqui minhas as palavras de Darci Ribeiro, eu sempre estive do lado dos que perdem: dos que perdem a terra, perdem os filhos, perdem a dignidade, mas que conservam a utopia, a verdadeira insanidade.
Insano é querer viver um outro dia que já se anuncia em trevas... Amanhã o sol não vai brilhar, os botões não florescerão, cães fardados pisotearão as sementeiras e árvores serão podadas antes dos frutos. Os que sonham um outro mundo, um mundo em que não sejamos números – números de uma estatística perversa marcada de balas perdidas e quedas de edifícios – sentirão o peso da mesquinhez, da arrogância, da intolerância dos senhores. Amanhã, mais uma vez, a utopia sucumbirá à ideologia supremacista. Amanhã não há de ser “Tempo novo de eterna justiça/ Sem mais ódio sem sangue ou cobiça.” Não, amanhã não haverá canto ou poesia, amanhã é tirania...
Mesas cheias de pão, cercas e muros ao chão, o povo na rua a sorrir é só a insanidade que alimenta-me enquanto a morte não me decide. Amanhã, então, haverei de entrar em outra batalha perdida, que é minha sina: que o decreto que encerra a opressão triunfe ou que a morte sorria pra mim.