Narra o evangelista Marcos que
“Jesus saiu com os seus discípulos para as aldeias de Cesaréia de Filipe, e
pelo caminho perguntou-lhes: "Quem dizem os homens que eu sou?"
Responderam-lhe os discípulos: "João Batista; outros, Elias; outros, um
dos profetas". Então, perguntou-lhes Jesus: "e vós, quem dizeis que
eu sou?". Respondeu Pedro: Tu és o Cristo" (Marcos 8, 27-29). Em
Mateus (16, 16) a resposta de Pedro é mais contundente: “Tu és o Cristo, o
Filho do Deus vivo”.
“Desde então, Jesus começou
a manifestar a seus discípulos que precisava ir a Jerusalém e sofrer muito da
parte dos anciões, dos príncipes dos sacerdotes e dos escribas; seria morto e
ressuscitaria ao terceiro dia.” (Mateus 16, 21). E “se me perseguiram, também
vos hão de perseguir.” (João, 15, 20).
"E vós, quem dizeis que
eu sou?".Vinculada à nossa realidade presente, de milhares de Josés
desempregados, e tantos Evaldos1 cravejados, a Estação Primeira de
Mangueira trará à Marques de Sapucaí o samba enredo: A verdade vos fará livre, desfila uma resposta ao questionamento do
Cristo. E em sua resposta desenha o rosto esquecido do Cristo: “rosto negro,
sangue índio, corpo de mulher”, o Cristo que aparece nos corpos oprimidos da
história. O Cristo da Mangueira é o Cristo que não exige conversão ou cobra
dizimo, em seu amor “não há fronteiras”. Filho de Maria das Dores Brasil, “enxuga
o suor de quem sob e desce a ladeira”.
Modestamente a Mangueira
anuncia seu samba como uma reza, mas não, não é uma reza; é a Boa Nova como a
muito não se anunciava: “Não há futuro sem partilha.”
E contra “os profetas da
intolerância”, arrecadadores de dizimo, cultuadores do Messias de arma na mão,
inventores de mil pecados que justificam a opressão e a exploração do povo,
valendo-se de seus privilégios, a Mangueira canta o Jesus da Gente, o Jesus que
anda pelos morros, pelos guetos, pelas periferias do Brasil e do mundo e se faz
reconhecer no que está com fome, no sedento, no privado de liberdade: “tive
fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber, era peregrino e me
acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e
viestes a mim...” (Mateus 25, 35-36).
No samba enredo da Mangueira
não há desrespeito ou agressão ao Cristo. O atentado contra Cristo não está em
representá-lo como mulher, como negro, como índio ou folião desfilando com os
seus. O atentado contra Cristo está na violência contra a mulher, na violência
contra os povos nativos, contra as comunidades quilombolas, na violência contra
aqueles que não congregam em nossas igrejas e templos... Cristo não frequenta
grandes templos, Cristo não frequenta palácios, “de peito aberto, de punhos
cerrados” está nas “fileiras contra a opressão”.
Os religiosos podem ficar
tranquilos, o Cristo da Mangueira não é o Cristo de suas teologias acumuladas
de rancor contra o pobre, o Cristo que a Mangueira trás para a Sapucaí é
justamente o pobre que nossas tradições religiosas e nossos podres poderes abandonaram.
O samba enredo da Mangueira não é uma reza: é revelação. Um Deus encarnado pobre,
para os rapinadores da fé é loucura. Eles não sabem que “a esperança brilha
mais na escuridão” e que o Cristo não ressurge nos altares de suas igrejas e
templos; ressurge “no cordão da liberdade”, pois quis identificar-se com quem
padece, com quem sofre os desafios da fome, da sede, da nudez, do
encarceramento, da humilhação, da negação à saúde, educação, moradia, vida em
plenitude.
Mangueira, tenha esperança,
haveremos de pegar a visão: “Não existe
futuro sem partilha, nem Messias de arma na mão”
1-
Em abril de 2019, uma ação do Exército matou
o músico Evaldo dos Santos Rosa em Guadalupe, na Zona Norte do Rio, na véspera.
O carro onde estava o artista e a família foi fuzilado com mais de 80 tiros.
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