domingo, abril 28, 2019

CONCEIÇÃO

Era um dia em que o sol, como jagunço em emboscada, espreitava entre nuvens e um vento moleque bulia as copas das árvores. Pássaros cantavam e saltavam de um galho ao chão do chão a outro galho, escondendo-se entre as folhagens. Sem pressa alguma, as águas do riacho escorriam como uma serpente entre as pedras. Pousastes os pés às águas do riacho, leve arrepio informou-te o frescor das águas. Aos poucos tolheu o vestido, posando-o à relva, junto dele o sutiã e a calcinha. O corpo nu, vivaz, sedutor, misturou-te às águas do riacho. Era mútuo o deleite: teu nas águas brincando; das águas, que suspenderam sua marcha preguiçosa, brincando em ti. Após um bom período de banho, desagradando às águas, deixaste-as estendendo teu corpo à chapada rochosa. O sol, que titubeava, nem indo nem vindo, no vir, notou tuas formas. Súbito, dispensou as nuvens, aqueceu-se e como amante terno pousou sobre ti seus raios, beliscando-te a pele, beijando teu corpo dengando-se sob seus raios. Também o vento, abandonando o jogo entre as copas das árvores, contemplando-te, vinha secar-te os cabelos e doar-te delicado frescor. Os pássaros já não salteavam de um canto a outro tal crianças, mas em coro, feitos Don Juan, cantavam a ti e atraiam-te a atenção... Não foi assim que me narraste teu passeio à Diamantina. Sou eu que me permito, enquanto se deleitas em mim e eu em ti, matando em nós a saudade, criar tal epifania que se realizada neste agora de nossas vidas...

OBS.: Apenas lembrando: Nossas mulheres não são mercadoria à disposição do turismo sexual. São nossas mães, nossas irmãs, esposas e filhas...

domingo, abril 21, 2019

RESSURGIU: ALELUIA!!!


Ao elenco, À Produção e Aos apoiadores do PASSOS DA PAIXÃO 2019.
“Eu tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, estava nu e me vestistes, estava preso e fostes me visitar...” (Jesus Cristo, segundo Mateus)

Ao pé da cruz, à primeira vista, o projeto do Nazareno apresenta-se como um fracasso. Do grupo que formara, um o traiu, outro o negou, outro exigia provas concretas, muitos dispersaram na noite de sua prisão. Apenas a mãe, sustentada por algumas mulheres e um dos discípulos (João) acompanham seu calvário e assistem sua morte entre bandidos. Enterrado em um túmulo de terceiro, estava fadado, como indigente ao esquecimento. Mas passada a tensão do momento, os seus rememoraram seus ensinamentos, sua prática, a promessa de que não os abandonaria e compreenderam que a Ressurreição é a continuidade do anuncio do mestre, fazendo de seu ensinamento prática. Aos poucos o grupo se organizou, um foi fortalecendo o outro, e praticando o amor que aprendera. Acolhendo os humildes, socorrendo os doentes, agregando os destituídos, davam testemunho do Reino, dividindo tudo em comum. A ressurreição não é uma expectativa utópica: É uma prática diária. Em toda luta por justiça, liberdade, igualdade, pluralidade e diversidade, em toda resistência para se garantir direitos, para se denunciar o desmando, a exploração, a expropriação, nos que se organizam e organizam os famintos, os sedentos, os despidos de sua dignidade, e os alivia, os alimenta e os encoraja a insistir, nestes o Cristo se faz presente e anuncia: “a morte não vos vence!” A Ressurreição é a certeza de que em nossa realidade ferida, em nosso mundo sempre prestes a ruir, a justiça, a solidariedade, o amor ao próximo não são quimeras, são possibilidades tangentes que podemos tocar, abraçar, acolher, integral, incluir, dividindo, partilhando. “Toda vez que fazeis isto aos pequeninos, aos sofridos, é a mim que fazeis. A ressurreição se reconhece no rosto ferido dos expropriados do mundo, que a um gesto nosso de acolhida nos abre um sorriso. Na lágrima de uma criança que recebe um pedaço de pão após dias de caminhada fugindo da guerra; de um ancião que alcança o direito de uma aposentadoria digna, de um moribundo que recebe o digno atendimento médico, de um jovem que alcança o direito de sonhar, porque alcançou a possibilidade de entrar na universidade, de uma mãe que pode ir trabalhar tranquila porque os filhos estarão seguros, na mulher que não precisa temer uma agressão verbal ou física, nas pessoas que sentem-se confortáveis para declararem suas convicções, suas opções religiosas, sexuais, políticas. Na lágrima de todos os que buscam vida plena, quando acolhida, por quem acredita ou não, o Cristo ressuscita: A Ressurreição é solidariedade e respeito à diversidade, que renovamos cotidianamente em nossos gestos e atitudes!

quarta-feira, abril 17, 2019

O POVO BRASILEIRO: ROSTO DO CRISTO

“o povo é um gigante atado por mesquinhos anões” (Rodner Lúcio)
(...) não tinha graça nem beleza para atrair nossos olhares, e seu aspecto não podia seduzir-nos. Era desprezado, era a escória da humanidade, homem das dores, experimentado nos sofrimentos; como aqueles, diante dos quais se cobre o rosto, era amaldiçoado e não fazíamos caso dele. (Isaías 53: 2,3)

Segundo Frei Beto, Carlos Drummond de Andrade dizia que “Mineiro sai de Minas, mas Minas não sai do mineiro” (Frei Beto: Batismo de Sangue). O mesmo se pode dizer do Cristo que não abandona quem do cristianismo se afasta. A elucubração que segue é uma elucubração de quem se afastou das instituições religiosas, porque já não encontra nestas o compromisso com o Bom Samaritano e não reconhece no povo caído pela estrada o rosto do Cristo agonizante na cruz. É conjecturas que nascem do acompanhamento dos trabalhos da Associação Cultural Opereta em preparação do espetáculo “Passos da Paixão 2019: O povo Brasileiro”.
Povo é um termo ambíguo. Confunde-se com o termo nação, referindo-se ao conjunto dos indivíduos de um mesmo Estado, que se sentem unidos pela origem comum, com uma língua, hábitos, costumes e interesses comuns, unidas por um ordenamento jurídico. Mas povo refere-se também ao conjunto das pessoas pertencentes às classes menos favorecidas, consideradas incultas e valendo-se de reduzidos meios de subsistência... O mesmo vale para a expressão “Povo Brasileiro”. Ela tanto se refere ao conjunto da nação, quanto ao conjunto dos menos favorecidos, dos que estão à margem dos bens de consumo material, da produção científico-intelectual, da cultura especializada. Assim quando dizemos, por exemplo: “o brasileiro é preguiçoso”, falamos de fora, como se não fossemos brasileiros. Neste exemplo podemos trocar brasileiro por povo: “o povo não sabe votar”... Assim, povo e brasileiro referem-se não à nação toda, mas às camadas populares, desassistidas em suas necessidades de moradia, educação, saúde, segurança, trabalho, dignidade. E um amigo meu dizia que o povo, nessa acepção de uma parcela da sociedade, ignora duas coisas: “que é povo, e, por isso, ignora a força que tem. O povo se pensa individuo e não um coletivo”. O rosto desse povo, o nosso rosto, é o rosto do Cristo agonizante na cruz.
Para nós, a vinculação da saga do Cristo ao ‘povo brasileiro’ remete às escolhas do próprio Cristo, que encarnando-se em nossa história, fez-se povo associando-se a aqueles quem estão às margens: os destituídos, os expropriados, os explorados, os perseguidos, os que sustentam com o suor de seus corpos e as lágrimas de suas dores e sofrimentos os usurpadores, os senhores da terra, que concentram em suas mãos os bens materiais e culturais, as riquezas e o poder e classificam os sacrificados de indolentes, preguiçosos ignorantes...
O brasileiro que se retrata tem o rosto de homens e mulheres, crianças, jovens, idosos que recordam a parábola do samaritano. Homens e mulheres caídos pela estrada, abatidos pelo trabalho exaustivo no campo, na cidade, na informalidade, vivendo vida precária em cortiços, palafitas, palhoças, barracos que se desfazem em incêndios criminosos e carregados entre lamas em períodos chuvosos. Este homem caído ao longo da estrada criminalizado e executado por balas perdidas, sem que façamos caso, é assaltado de seus direitos e culpabilizados pela violência que sofrem. Esta mulher caída ao longo da estrada, violentada, morta e a quem se imputa a culpa de sua tragédia... Este ancião vendendo balas, porque a aposentadoria não lhe garantiu a dignidade devida, aquela criança fora da escola, fazendo malabarismo no farol, aquela jovem fazendo ponto na esquina, aquele jovem no corre, as centenas de pessoas numa fila que dobra a esquina por um posto numa firma... realidades que configuram o rosto do brasileiro que o Cristo, o Samaritano da parábola (sim, o samaritano da parábola é o próprio Cristo) acolhe, cura e nos confia: “vá e faça o mesmo.”
Encerrados numa fé intimista, concepção capitalista do Cristo, de um Cristo que premia o esforço pessoal, que não visa uma salvação distante, incerta, abstrata, mas conquistar na terra os bens prometidos para a vida celeste, passamos por nossos irmãos e irmãs caídos pela expropriação, pela exploração, pela brutal acumulação de renda nas mãos de poucos, fazendo coro a esses poucos: “O mérito salva!” Enquanto vamos ao culto e à missa em busca do sucesso pessoal, da casa, do carro, da vida confortável, o Cristo de sua cruz grita: “eu estou com fome, eu estou com sede, sou estrangeiro; estou nu; enfermo; na prisão...” (Mateus 25: 35-36). Enquanto em nome de um Cristo vingativo nos comprazemos com a morte de desafetos, condenamos escolhas que dizem respeito apenas aos indivíduos, apedrejamos que não é de nossa igreja, defendemos ideais fascistas, o Cristo de sua cruz grita: “amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos maltratam e perseguem” (Mateus 5: 44).
O rosto do Cristo é um rosto brasileiro, deste brasileiro que chamamos de preguiçoso, de inculto, de ignorante, a quem atribuímos a responsabilidade por nossas mazelas, pela violência que nos campeia, à brutal distância entre os poucos que esbanjam riqueza e poder e os milhares de Lázaros (Lucas 16: 19ss) a viverem de migalhas. Em nome de um Cristo pronto a nos dar casa, carro, luxo, poderes políticos, isentamos os poderosos, os que controlam a política, a economia, as igrejas, os meios de comunicação, tornando-os ídolos (mito) e não algozes dos escolhidos do Cristo: os humildes, os de coração dolorido, os cativos e prisioneiros...
O Cristo que não me abandona, não me promete bens materiais, não me promete carro, casa, vida confortável que são coisas que se conquistam com trabalho numa relação econômica justa e salários dignos. O Cristo que não me abandona é o samaritano, aquele que passa pelo homem caído pelo caminho, e não lhe é indiferente; o acolhe, o cura e o admoesta: “levanta e anda!”. O povo, esta parcela da população que marginalizamos e criminalizamos e executamos com incêndios, sucateamento dos serviços básicos, ausência de políticas públicas, indiferenças às suas precárias condições de subsistência, balas perdidas é o rosto deste Cristo, o Servo Sofredor, agonizando na Cruz... Quem o rouba o homem caído pela estrada, também executa o Cristo na Cruz. São os que fazem da religião e da política instrumentos de enriquecimento e de exploração, que justificam a mesa farta e o esbanjamento fastuoso dos soberbos tornando o nome de Deus uma escusa para ladrões, falsos profetas, sepulcros caiados se locupletarem criminosamente: “Fizestes da minha casa (do nome de Deus) um covil de ladrões” (Mateus 21: 13), dirá o Cristo, contra esses. E são eles que condenam e sacrificam o Cristo, não como Filho de Deus, mas como uma ameaça a seus ganhos materiais e políticos. Sob a escusa de estarem defendendo a moral, a pátria, a família, Deus. A associação de religiosos e políticos condenam e matam o Cristo para manter o povo adormecido, ignorando ser um coletivo... É em nome de Deus que os algozes de Cristo o matam. E é em nome de Cristo que continuamos a sacrificá-lo, quando lavamos nossas mãos diante de um sistema que com os ricos e opulentos se faz condescendente e contra os pobres avança suas garras a fim de tirar-lhe direitos.
O povo brasileiro, o que tem fome e sede, o desempregado, o trabalhador informal, o assalariado, a doméstica, o doente, o aposentado, o injustiçado, o preso político, o perseguido por sua religião, sua opção sexual, sua posição política, a vitima de agressão culpabilizada pela agressão sofrida, está caído. O Cristo, por acolhê-lo, por incentiva-lo: “Levanta! Anda!”, por caminhar com ele, pendido na cruz. Seus algozes, em nome de Deus, celebram a vitoria do sistema, fazendo gesto de armas com a mão. E nós onde nos colocamos: na cruz junto com o Cristo ou ao lado dos que dele escarnecem: “não és o filho de Deus, desça da cruz!”, fazendo o gesto de dar tiros ao alto com o dedo pra cima?
Ao contrario do que dizemos do brasileiro, destes homens e mulheres que não se sabem um coletivo, que vão pelejando como podem, em busca da própria sorte, este povo é, “antes de tudo, um forte”. E basta “um incidente exigindo-lhe o desencadear da energias adormecidas (...) transfigura-se. (...) e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias” (Euclides da Cunha: Os Sertões). Sabendo-se coletivo, superando as tentativas individuais de subsistência e resistência, o povo é um titã que cria e recria formas de resistência e de persistência de suas lutas por direito à vida e “vida em abundância” (João 10: 10), como promete o Cristo em sua ressurreição.
A ressurreição é o povo desperto, enquanto um coletivo, unindo-se, organizando-se, solidarizando-se em suas dores e sofrimentos, compartilhando experiências, articulando resistências, lutando por seus direitos... A vitória do Cristo sobre a morte há de ser a vitória do povo sobre os que insistem em mantê-lo cativo e à margem de uma vida digna e abundante...
No dia da redenção “vai ser bonito se ouvir a canção, sentindo no olhar do irmão a certeza de que o reinado é do povo” (Pe. Zezinho), deste povo que ora padece, mas que é já Senhor de seu destino.

CIDADÃO DE BEM


Dizem por aí que Nelson Rodrigues avisou que os idiotas dominariam o mundo. O guru do presidente em exercício aproveitou a deixa e escreveu um manual sugestivo: “o mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”. Mirinho voltando da caminhada matinal, passando pela banca de jornal para comprar o jornalão de domingo, achou sugestivo o título. Pouco afeito a leitura – era homem dinâmico, ativo, voltado aos cuidados do corpo – , folheou o calhamaço exposto ao lado das revistas de horóscopo e futilidades dos astros televisivos. “Olha”, foi logo observando um tipo que adquiria o semanário dos Civita, “este é um livro iluminado, deveria ser leitura obrigatória nas escolas, para combater a canalhice que se ensina a nossas crianças.” Uma que acompanhava o distinto, observou: “onde vamos parar, os professores não sabem mais ensinar!” Convencido pelo entusiasmo do tipo que lhe indicava outras obras do autor daquela que Mirinho folheava, e considerando a observação da companheira do mesmo, Mirinho levou o manual junto com o jornalão e a Caras. Mirinho é agora um sujeito esclarecido, vê o mundo com os próprios olhos e está piamente convencido que a terra é plana, Einstein era um charlatão, Cristo leu Marx e que o exército não matou ninguém... Mirinho deixou de ser idiota, é agora cidadão de bem... Tenho pra mim que Nelson Rodrigues era profeta.

Cacareco


Dia desses eu conversava com tia e Leopoldo, um fantasma de família que foi, segundo o mesmo, mordomo na corte de Pedro II. Falávamos de coisas amenas como do cultivo de rosas e gerânios. Tia contou-nos histórias, Leopoldo anedotas do império e só ele ria. Não sei por qual motivo o atual ocupante de nosso executivo entrou na conversa. Uma pergunta surgiu: como foi possível sua eleição. E Leopoldo propôs uma explicação, lembrando-nos Cacareco. “Cacareco”, disse-nos Leopoldo, era um rinoceronte fêmea do Zoológico do Rio de Janeiro. Esta rinoceronte foi emprestada ao Zoológico de São Paulo e ganhou certa popularidade. Nas eleições municipais de 1959, como voto de protesto, ela recebeu cerca de 100 mil votos, tornando-se a candidata mais votada das eleições... Outro fenômeno de votação de protesto é o palhaço Tiririca. Tiririca em 2010 obteve mais de um milhão de votos para deputado federal, chamando seus eleitores de “abestados”. Associando os dois eventos, formulou-se a hipótese de que era possível eleger qualquer acéfalo a presidente do Brasil. Diziam: “criando um clima de insatisfação política geral, inflamando as pessoas em torno de medos hipotéticos ou até mesmo bizarros, desqualificando o processo eleitoral e a política mesma, poderíamos propor qualquer personagem com amplas possibilidades de vitória num pleito eleitoral”. O clima de insatisfação política e com a política ficou por conta da Lava-jato. Bastou resgatar o antigo fantasma do comunismo e a ele associar um medo bizarro: a mamadeira de piroca. A tudo isso, acrescentou-se as fakenews e o isolamento do único candidato capaz de medrar tal projeto. O resultado está aí”, concluiu Leopoldo. “O Bozó nem precisou fazer campanha”, observou tia. “A democracia traz à tona a força numérica dos idiotas, dizia Nelson Rodrigues”, observou Augusto, que chegou durante a explicação de Leopoldo.

LIBERTOS E NÃO MAIS QUE ISTO


Durante três séculos fomos escravos, morríamos na chibata. Então, nos deram a liberdade e nada mais a não ser a advertência: terás sempre uma bala perdida em teu caminho. Fica esperto! Domingo uma família foi alvejada por 80 tiros. Evaldo Rosa dos Santos entrou no caminho das balas ["a culpa caí sobre quem já não pode se defender", dizia minha avó], que perdidas, sempre acham um liberto, sinônimo de bandido, para quem atira. Há 133 anos fomos libertos, mas só isso. Ainda não conquistamos cidadania. E, se não ficamos espertos, podemos ser o próximo nas estatísticas...