quinta-feira, março 29, 2018

MAGDHA


Era maio de 85. Proibindo-me de mostrar à mamãe ou às irmãs, padrinho deu-me de presente uma Playboy. Na capa Magda Cotrofe. Não havia advertência alguma de a levar para escola. Partilhei o inusitado presente com os amigos no fundo da sala. Ficávamos comparando nossas companheiras de sala à monumental Cotrofe e suas formas. Mas quem melhor se assemelhava a ela era dona Valdenara, professora de artes, que já era o motivo de nossos sonhos mais audaciosos. E entre os olhos na revista e nos tributo de dona Valdenara, o paspalho do Adhemar resolveu tirar o “brinquedo” pra fora. Não prestou. “Professora”, gritou Maria Regina, “olha o Adhemar com safadeza”. Fomos todos pra diretoria. Na época não tinha delação premiada, Adhemar assumiu ser o dono da revista e todas as consequências seguintes. Pegou cinco dias de gancho, com direito a umas sovas da mãe. O meu prejuízo foi ficar sem a revista. Para nossa alegria, logo surgiu uma Penthouse que o pai do Edgar importava dos Estados Unidos. Estas lembranças vieram-me à mente enquanto aguardava na fila do caixa e avistei uma moça, um pouco mais de 20 anos, nas gôndolas de frutas. O fato é que a moçoila pareceu-me familiar. Lembrei-me da professora Valdenara, dos idos tempos escolares, da patota do fundão, “as maiores diabruras e as melhores notas”, costuma lembrar Adhemar, meu parceiro de dominó e cunhado mala.  Não resisti, abandonei a fila e segui a beldade que se dirigia aos frios. Aproximei-me: “Desculpe incomodá-la, você, por acaso, é parente da professora Valdenara”. A moça, surpresa, abriu-me um gentil sorriso: “Sou sim! Sou sua neta!”. “Eu fui seu aluno, em meados dos anos 80”, expliquei-me, emendando: “como ela está?”.   A moçoila deu-me informações positivas de dona Valdenara que curte a aposentadoria entre Itaparica e Lisboa. Pra fim da conversa ousei perguntar-lhe o nome. “Magdha”, respondeu-me com o mesmo sorriso de dona Valdenara quando lhe arguíamos. Fazia tempo eu não tinha sonhos tão ousados em que o passado mistura-se a um futuro improvável.     

CAFÉ E BROA



Divirge mais eu se conhece é di piquininho. Nóis morava na fazenda de seu Rivaldo e ia junto pra escola. Estudávamos na mesma sala com a mesma fessora dona Martilde.  Nois cresceu junto então.  Já mocinho e Divirge mocinha eu me anamorei de ela. Eu ficava espiando Divirge ir no riachinho lavá os panos, busca água pro banho. Foi então que meio em testa espiá Divirge se banhando. Não tinha ma intenção não, era só que surgiu essa vontade. E eu disse a ela: “sabe Divirge, eu queria, se ocê me permite, vê ocê como se banha”. “Ozorio”, disse-me Divirge, “que história é essa? Ocê, tem tino não? Isso é coisa que se pede uma moça? Ocê cria juízo, viu home!” E Divirge me deixou desacorçoado, seguindo pro riachinho com cesto de roupa. Os dias passaram e eu não tirava da cabeça a vontade de espiá Divirge, eu subia pelas paredes, bolava jeito e mais jeito, de fazê-lo de espreita, mas temia perder a amizade de Divirge e amuava qualquer projeto. Certa tarde eu to pescando uns lambarizim, com as ideias em Divirge, quando ela se achegou ao riachinho: “Calorão, não Ozorio?” “É!” arespondi, desanimado. “Se pesca com calorão deste?” perguntou Divirge enchendo o balde de água. “Refresca as ideias!” arespodi sem muita vontade. “É bom de tomá banho! Acha não?” falou-me com malicia na fala.  “Mãe foi prosear com dona Catarina, eu proveito pra me refrescar, depois faço um café fresquinho, tem broa, quer não?” Encheu o balde: “Caso aprecie lanchar comigo, deixo a porta aberta”, saiu balouçando as ancas. Demorei um instante para dar tino à coversa de Divirge. Cheguei esbaforido à casa de Divirge, fui entrando respirando com dificuldade e cheio de uma coisa no peito que me desorientava. Divirge se banhava num quartinho no fundo do corredor. A porta era entre aberta, pensei abri-la, mas não fiz, fiquei espiando pela fresta. Divirge se banhava de caneca nuinha como veio ao mundo, sorrindo pra fresta, brincava com as mãos sobre o corpo... “Fiz broa e café, tomo um banho...” Há 30 anos fazemos esse jogo.    

quinta-feira, março 15, 2018

ESTAMOS EM TEMPOS SOMBRIOS


Estamos em tempos sombrios
Tempo da desmedida
Dos arrogantes
Dos intolerantes
Da suspeita contra todos
Tempo de exceção  
Em que quem denuncia
O desmando
Dos que não tem
Legitimidade de governo
É silenciado
Por milícias?
Por polícias?
A serviço de que poderes?

Estamos em tempos sombrios
Em que o grito
Dos silenciados
Ecoa e clama
nossa resistência,
nossa persistência
que podemos ser humanos
mas como haveremos de resistir
como acreditar no humano em cada homem
O tempo presente nós o
parimos
 e o alimentamos
com saudades de um tempo
que apenas existiu
em nosso esquecimento

Estamos em tempo sombrio
Uma flor nos foi brutalmente
Arrancada
Não a conhecia
Não sabia de sua luta
Mas guardo o luto
Que seu tombamento
Por um amanhã em que os homens
Sejam humanos
Não passe despercebido,
Mais um, na conta dos que
desgovernam
Celebremos seu passamento
Retomando a luta.
Estamos em tempo sombrio
Mas o humano em cada homem
É possível
Grita quem nos deixa silenciada
Por qual milícia?
Por quais policias?
A serviço de quais poderes?


quarta-feira, março 07, 2018

REDENÇÃO




Na semana em que padrinho foi morto, ele esteve em casa. Trouxe uma sacola de jambo, uma penca de bananas, um embrulhinho para mãe. Mãe me deu dinheiro e me deus uma trouxa de roupas: “Leva em sinhá Quitéria, ela vai te dar o dinheiro, passa na venda de seu Anastácio compra ovos e farinha. A casa de dona Quitéria era de uma lonjura só. Quando tornei padrinho já havia partido. Mãe se desfez das bananas e do jambo. Fui esperar pai na porteira com Filé, nosso cão, um “amarelado imprestável”, como dizia pai. Não foi por querência, juro, soltei que padrinho tinha vindo em casa. Não falei das bananas nem do jambo. Pai entrou em casa já nervoso, arriou seu bornal e saiu de volta. Os olhos de mãe eram apenas apreensão. Pai tornou tarde, embriagado, surrou mãe, quebrou móveis, desapareceu pras bandas do paiol cambaleante, praguejando. Mãe, quando o sol amanheceu me surrou e chamou-me de tudo quanto é nome ruim. Naquele dia pai não voltou pra casa, nem no outro, nem no outro..., nunca mais o vi. Veio, então, a noticia de que padrinho fora encontrado morto: “dois balaço no peito”, próximo do ribeirãozinho. Mãe dizia que a morte de padrinho foi sua libertação da tirania de pai. Ela conservou toda a vida o embrulhozinho que padrinho lhe trouxera. Também, daí: Redenção, nome de minha irmã, que nasceu meses após todo esse ocorrido.     

sábado, março 03, 2018

NA COLÔNIA PENAL

O mundo não será destruído por aqueles que fazem o mal, mas por aqueles que assistem o mundo sendo destruídos e não fazem nada. (Atribuído a Albert Einstein)



Na Colônia Penal Juvenil da provinciana Tupinambá, sob regência de um certo “Santo”, houve uma fuga de adolescentes na noite de 18 de maio do ano que queiram, cada qual, atribuir. Ocorre que um dos apenados, teve o infortúnio de, no salto em tentativa da “liberdade”, fraturar o fêmur e ficar caído ao chão. No calor da circunstância, três sujeitos responsáveis por assegurar que não houvesse fugas, colocaram sua condição de homens de bem, pais de família, trabalhadores bem intencionados a perder. Ao darem-se com o indivíduo ao chão, antes de presta-lhe socorro, resolveram que deviam deixar-lhe claro que não aceitavam “tiração de ladrão” e fuga: é uma puta tiração!   O adolescente ao chão foi acolhido a chutes e pontapés. Essa foi a história que Leopoldo, um fantasma, herança de família, que diz ter sido mordomo no Império de D. Pedro II, me contou. Contou ainda que um certo Simplicio, assistindo a burlesca situação, soltou um grito de margens do Ipiranga: “Vocês estão ficando loucos!” Foi, então que os três homens de bem, os pais de família, os trabalhadores bem intencionados se deram conta que toda essa dignidade se esvaia no calor da situação. Foi desta data, então, que o dito Simplicio, filho único de uma mãe avançada nos oitenta e adoentada, não foi mais visto. Todos os condenam de ter errado por ter feito o certo. “aqui as coisas funcionam se ninguém vê nada, e se vê: diz que não viu!”, dizia um dos mais antigos da administração com toda ênfase. Simplicio, segundo Leopoldo, tinha outras convicções e sempre fora visto como um apalermado, ele resistia a aceitar que a verdade é a força das circunstâncias, e naquela circunstância negar o visto era a verdade a ser dita. Simplicio afirmou o visto. Os homens de bem, os pais de família, os trabalhadores pagadores de seus impostos o juraram de morte. E todos estavam a favor deles. Simplicio estava errado. Todos achavam que não fora os homens de bem, pais de família, trabalhadores bem intencionados que se arruinaram ao se colocarem a cima de suas atribuições. Fora Simplicio, que ao não aceitar a verdade das circunstâncias, e ao afirmar o que vira que os arruinou. Tivesse Simplicio negado, teriam a consciência tranquila. Mas Simplício tem da verdade sua ingenuidade.  O fato é que Simplicio não foi mais visto. “Não tivesse feito a besteira que fez...” se dizia a boca miúda e entre risos, fazendo memória de feitos que o desabonasse. Eu não sei o que Leopoldo quis me ensinar com isso, mas tenho pensado muito sobre...