domingo, janeiro 22, 2017

NOITE AVANÇADA


Já é tarde

As cadeiras começam a ser recolhidas

As portas começam a baixarem

o moço das flores conta o rendimento

da noite

pedimos a conta

perdemos a noção do tempo

pedimos a possibilidade de

uma última dança

mas o vocalista da banda

já se retirou,

também o baterista

já se mostra indisposto

não insistimos

pagamos

saímos

já é tarde

mas o tempo não nos faz sentido

só nossos olhos uns no outro

nossas mãos entrelaçados

nossos lábios encontrados

sob um céu cinza

de lua apática

só nossas línguas enroscadas

tem sentido

tudo o mais se apaga

na noite avançada.


AB-ERECTUS




Há alguns anos, em uma exploração arqueológica, encontrei um conjunto de textos em tabuas de argila que remontam a tempos imemoriais. Consultando, Leopoldo, um fantasma de família, ele informou-me ter relações com um antigo habitante das regiões de onde trouxe o rico material arqueológico. Mesmo não dando muito crédito a Leopoldo, que, de quando em quando, costuma pregar-me peças, resolvi apresentar aqui um interessante tradução de um dos fragmentos do conjunto de textos que encontrei.

Quando Ab-erectus desceu do monte Shadai, EL, o irreconhecível ordenou-lhe passar ao largo do Palácio de Adama. No entanto Ab-erectus sentiu fome e sede e invadiu os jardins do palácio de Adama e tomando de suas águas e comendo de seus frutos Ab-erectus adormeceu.  Adama que passeava pelo jardim surpreendeu Ab-erectus e o devorou. Quando Ab-erectus despertou no ventre de Adama quis sair e, não encontrando por onde, irrompeu de dentro de Adama, liberando apenas a cabeça e parte do tronco. Adama, aturdido procurava arrancar Ab-erectus, mas toda vez que lhe tocava, Ab-erectus cospia-lhe. Como Ab-erectus demorava a retornar, El, o irreconhecível desceu de Shadai à sua procura e encontrou Adama acabrunhado: “o que te afliges?” perguntou El, o irreconhecível. “Encontrei um bilontra em meu jardim e o devorei, e agora causa-me grande desconforto... Tento arrancá-lo de meu corpo, mas toda vez que o toco ele me cospe”. El, o irreconhecível, fez cair sobre Adama um grande sono, e enquanto este dormia, El, o irreconhecível, sugou de suas entranhas Ab-erectus, que cuspiu ao lado de Adama. Quando Adama acordou, ao seu lado encontrou Matera, nascida de El, o irreconhecível, para aplacar em Adama as centelhas de Ab-erectus, permanecidas em Adama. Toda vez que as centelhas de Ab-erectus atormenta Adama, Matera o cobre, até aplacar as centelhas de Ab-erectus, recolhendo-le o que elas cospem. É assim que Matera se torna mãe do filhos de Ab-erectus, que vive no seio de El, o irreconhecível...

Vale lembrar que a tradução é de Issac Ben Abbran, nascido por volta de 2000aC. Assim me garantiu Leopoldo.


domingo, janeiro 08, 2017

EDUCAÇÃO E METARMOFOSE




Educar é semear não importando a terra ser árida ou fértil. E embora o semeador não deva contar com boa colheita deve saber aquilo que semeia...

O educador embora não domine aquilo que fará de seu ensino, não deve descurar do conteúdo de seu saber. Rodner Lúcio

A educação sempre esteve presente na vida do homem. Tornou-se necessidade com o assentamento do homem e o nascimento das primeiras civilizações com a revolução agrícola. E a cada nova revolução tecnológica, o que consistia em transmitir quase que de maneira rudimentar e na lida direta com a atividade exercida  as técnicas de produção, conservação e transformação dos alimentos e dos produtos de manufatura, para manutenção de si, da família e da comunidade, a educação tornou-se, cada vez mais, uma exigência de formação do caráter moral, religioso e cívico do indivíduo. Sua ligação com o trabalho agrícola continua patente nas metáforas de semeaduras e semeadores tal o texto de Rodner Lúcio. O que segue é uma parábola que trata de educação como processo de uma metamorfose.

O diretor do Centro de Reforma Juvenil Novo Horizonte expõe aos membros do conselho a proposta de mudança da nomenclatura do Centro.

 “Os senhores hão de perceber que nosso Centro dispõe de um organograma de desenvolvimento que visa a transformar nosso pequeno delinquente em um sujeito totalmente preparado para o convívio social. O processo todo conta com quatro fases, estágios, momentos etc., ainda não decidimos. O importante é saber que da entrada à saída, o jovem delinquente deve comprometer-se a passar em cada fase ou estagio ou momento etc., por metas, desafios, estímulos, etc. também não decidimos ainda a nomenclatura. O primeiro momento, estágio, fase, etc. consiste da “acolhida”, este termo tem causado dificuldade pois ele indica brevidade e as vezes ele se estende a quase o último instante de presença do jovem entre nós, nele impõem-se o desafio de adaptação do jovem às normas do Centro, à sua rotina e horários, aos funcionários e coetâneos e companheiros. O momento seguinte chamamos “Construção”, tem o sentido de indicar que será colocado bases, ou fundamentos edificantes ao jovem para que ele se reestruture e se consolide numa perspectiva pró-ativa autônoma e responsável. Atingida esta fase chega-se ao “Crescimento”, em que o jovem deve demonstrar que amadureceu reflexivamente, sendo capaz de julga seus atos, reconhecer seus erros, aceitar o processo pelo qual está passando, se propor uma vida de resignação devotada ao trabalho honesto, ao sacrifício que a vida nos impõem. Diante de tal atitude, o jovem entra no “Recomeço”, quando ele é preparado para retornar ao convívio familiar e social. Lembro-vos que, por não termos claro ainda se o breve ou longo período do adolescente em cada fase, estágio, momento, etc. não sabemos ainda se mantemos ou mudamos as nomenclaturas “Acolhida”, “Construção”, “Crescimento”, “Recomeço”. Eu, por exemplo, defendo que não só a nomenclatura mas o próprio Centro deva ser rebatizado de Novo Horizonte,  que indica que o jovem que aqui entra será preparado uma nova realidade, algo que,de fato não ocorre, pois, geralmente, quando ele deixa o Centro,geralmente a realidade que havia deixado antes de aqui chegar, degringolou, sem tornar-se outra. Eu tenho proposto, mesmo sabendo que os mais broncos a ele reage com virulência, casa de borboletas.

Eu bem sei que antes de mudarmos a nomenclatura das coisas precisamos ter compreensão de sua natureza e seu propósito. Eu tenho que educar é uma exigência à qual não podemos escapar e seu sentido é transformar, não a sociedade, mas o individuo, tornando-o de ser social em ser humano. Tarefa cada vez mais difícil de atingir.

As Borboletas desde as mais antigas culturas está associada à alma, à Psiquê, grega, Ela está associada à transformação e renascimento. No cristianismo arcaico à ressurreição. Muitos ainda hoje a usam como um símbolo para representar uma mudança importante na vida.

Devido ao processo de metamorfose, as borboletas, indicam, porém que tal mudança, transformação, metamorfose, não se dá sem desconstrução de si mesmo, sem luta e luto interior, sem mortificação de si e reestruturação, reconstrução da própria subjetividade.

Todos nós conhecemos o processo pelo qual uma lagarta (nosso jovem) se transforma em uma borboleta (o jovem que queremos ver sair de nosso Centro). Normalmente, a história começa com uma lagarta muito faminta (desejo de consumo) que eclode de um ovo (uma sociedade desestruturada e desestruturante). Essa lagarta devora e se entope de folhas (numa sociedade de consumo, se exige sempre mais e mais). É próprio da lagarta querer comer e comer e comer. Mas um dia, a lagarta para de comer, fica pendurada de ponta-cabeça em um pequeno galho ou uma folha e tece um casulo sedoso ao seu redor ou se transforma em uma crisálida brilhante. Dentro de sua cápsula protetora, a lagarta transforma radicalmente seu corpo e depois de certo tempo emerge como borboleta ou mariposa. É um processo fantástico. Eu gosto de pensar a educação como processo em que transformamos, não a realidade, mas seres capazes de a sobrevoar, deixando de estar preso às suas estruturas alienantes e desentruturantes da personalidade humana. Deixar de ser lagarta é deixar de ser consumista, numa sociedade de consumo, é deixar de ser hedonista numa sociedade de indivíduos desdenhosos da dor e do sofrimento do outro, deixar de ser lagarta é tornar-se autônomo uma sociedade que te quer submisso, alienado, resignado.  Tornar-se borboleta é ser capaz de emergir da realidade que degringola e tornar-se capaz de a sobrevoar como um novo ser. Devemos transformar o sujeito para si mesmo, não para uma sociedade caduca, que em seu horizonte não prenuncia bonança, mas tempestade.

Não devíamos ser um centro. Devíamos ser um casulo: Um lugar de embates constantes, de conflitos agoniantes, um caldeirão de cuja sopa (se vocês espremerem um casulo em tempo certo saberão do que estou falando) nasce um ser livre, que não espera a liberdade cantar, por ser liberdade e canção que deseja alcançar.

Repito e termino: Não devíamos ser um Centro, devamos ser casulo.”    

PIEDADE


Agora eu vou cantar pros miseráveis (Blues da Piedade, Cazuza)


Nem que em nossos presídios tivessem apenas homicidas matadores de "país de família", "famílias de bem", diga-se de passagem, nem que em nossos presídios tivessem apenas estupradores, pedófilos, esquartejadores de velhinhas; nem que em nossos presídios estivessem apenas os mais horrendos autores de crimes hediondos. Nada nos autoriza a olhar com indiferença ou, o que nos torna mais desprezíveis ainda, disfarçada rejubilação os massacres de Amazonas e Rondônia. Não podemos estar num nível tão arcaico de humanidade e nos dizer de matiz cristã ao mesmo tempo. Indigna-me a fala desdenhosa ou jubilosa, menos contestatória, de representantes do governo, a começar pelo pulha em comando, desses lamentáveis episódios. Não podemos ser menos humanos, porque ser humano é a primeira condição para poder professar qualquer tipo de religião, até mesmo a mais bárbara, quanto mais a cristã, que supõe um estado de aprimoramento do humano capaz de acolher o Cristo, e não a Igreja essa ou aquela, em seu ser. Indigna-me assistir homens de batina e gravata, e bíblia debaixo do braço, ou aberta num único salmo, gesto de quem não sabe ler, ou não compreende o que lê, mas precisa aparentar saber, desdenhar ou jubilar, em nome de um bem, que me soa como desejo de vingança, com a morte injustificada de um outro ser humano. Nem que fossem os mais pérfidos dos humanos, e esses estão no poder, deveríamos contentar-nos. Resta-me pedir piedade: Piedade, por essa gente hipócrita e covarde. Piedade por sermos menos humanos que os que morrem condenados por nossa impiedade.


quinta-feira, janeiro 05, 2017

A FESTA NÃO ACABOU


“... todos iam trocar beijos, brindar e desejar feliz ano novo uns para os outros...”

 

Por recomendações médicas, evito os telejornais. Por posições ideológicas não leio Folha, Estadão, Globo, Veja, Isto é... Por motivos de saúde e por motivos ideológicos sou um alienado. Isso não me impede de tomar ciência dos fatos mais gritantes. Depois tem pessoas que esperam e instigam-me a comentar um ou outro fato. Hoje fui apresentado ao texto do Contardo Calligaris, de sua coluna semanal no cotidiano Folha de São Paulo. Ele comenta o atentado de Istambul, que matou 39 pessoas e o massacre de Campinas, em que uma família foi dizimada por um misógino substanciado por ideologias de ódio que nos campeia.

“Quando alguém ataca uma festa, é quase sempre porque ele não foi ou não se sentiu convidado”, comenta Contardo.  Pode ser. Mas a festa pode ser apenas a oportunidade para cometer a sandice que orienta minhas ações. Será onde eu vou encontrar, com segurança, as pessoas que pretendo atingir, e para o meu ato não há necessidade de convite.

 “As festas, em tese, deveriam espantar a tristeza, mas conseguem apenas escondê-la”, discorre Contardo. Caso me engane, Aristóteles já dizia, com outras palavras, que por confundirmos os meios com o fim, nos perdemos naqueles e nos afastamos do último. Isto se dá porque sabemos o que queremos, mas não lhe conhecemos a face. Numa festa queremos confraternizar e divertir-nos, mas nos falta, às vezes, a noção de confraria e  divertimento. Festa é um meio com um fim que não é espantar tristeza, se a estamos usando para isso, o fim é mesmo a frustração.   Mas frustrações não nos leva a matar ninguém. No máximo procuramos um analista, que é uma forma de nos matar.

“A ideia da festa da qual fomos excluídos está na mente humana há muito tempo.” Continua Contardo, fazendo referência a Avner Falk “(um grande psicólogo israelense)” que relaciona a queda do paraíso ao trauma de nascer e crescer.

Seja o ato de Istambul, seja o massacre de Campinas, não os consigo ligá-los a traumas ou mitos remotíssimos. Eles têm a ver com ideologias modernas, que pensávamos superadas, mas que bafejam-nos seus horrores. Lembro que recentemente um deputado, em tribuna, em rede nacional, tripudiou uma mulher, oferecendo seu voto contra ela, ao homem que a torturou no período mais nefasto de nossa história. Misoginia e ódio tratado como ação política e festejado por milhares de Sidneis, Brasil a fora. O crime de Campinas se liga mais ao clima de acirramento das lutas políticas ideológicas e fisiológicas que à nossa sede de paraíso. 

Há pessoas para quem qualquer festa “parece extraordinária”, principalmente quando elas se “sentem excluídas”. Mas geralmente essas pessoas apenas resmungam sua solidão. Mas há pessoas que não gostam da festa alheia, não por ter sido excluído, mas porque se colocou numa posição de não aceitação do gozo do outro, ou por querer determinar o gozo do outro, subvertendo a alegria alheia em dor e sofrimento. Istambul está nesse percurso.

Sidnei é uma outra história. A intolerância como ação política inflou a misoginia de Sidnei e a mistura do subjetivo ao ideológico e suas cargas emotivas o levaram ao crime horrendo que cometeu. Outros Sidneis hão de se levantar. Sidnei era misógino, ainda temos que considerar os homofóbicos, os racistas, os religiosos fundamentalistas, os xenófobos.

O furo continua. Mal arranhamos a borda!