domingo, agosto 28, 2016

PALAVRAS SÃO FACAS


Sons, palavras, são navalhas
E eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém. (BELCHIOR)


Li no Diário que “Para as carnes brancas Alzhira tinha uma faca, para as vermelhas outra. Para os legumes e verduras e para as frutas Alzhira também tinha facas diversas. Na verdade, Alzhira tinha um fascínio por facas. E tinha uma especial, a que cravou ao coração numa tarde de maio.” Leio que Alzhira em seu ato extremo deixou um bilhete: “As coisas que não nomeamos por medo das palavras nos ferir ao invés de nos esclarecer nos consome aos poucos. Palavras engolidas ferem a alma, como faca sangram por dentro”. Lembrei-me de vô que tinha sempre consigo um canivete para picar fumo e o punhal, para “não engolir desaforos”. Vó discordava de vô, dizia que quem resolve diferenças na ponta de faca impõem respeito pela força não pelo reconhecimento e “quem não é reconhecido só é obedecido enquanto tem força para empunhar a faca”. Vó dizia não conhecer letra, mas sempre nos pedia cuidado com as palavras: “são como faca; nos servem e nos fere, se não as usamos como se deve”. O Diário fez-me lembrar também tia que nos contou a história que segue.
“Era tardezinha e vento balouçava as árvores e misturava seu assobio ao canto de tizius e canários. O homem então dominava instrumentos e o fogo – diz que um Deus de nome Prometeu lhe ensinou estas artes e que foi castigado. Mas esta é uma outra história –. Era tardezinha, e um Deus veio ao homem e lhe ofereceu bem maior que produzir instrumentos e conservar o fogo. “Pedras e bastões quebram os ossos, impõem medo e o que serve, serve pela força; o que te ofereço não impõem; convence: convence o servo a servir, porque o faz acreditar poder ser senhor...” E o Deus deu ao homem a palavra e o advertiu: “quem a bem domina, tem nas armas seu último recurso, mas, como instrumento que corta, sua ferida não cicatriza, e, em línguas mordazes, tudo amarga e corrói. Palavra fere mais que arma!” Era tardezinha, o homem seguiu o que o Deus lhe ensinara, aos filhos dispensa o que lhe apraz do dom que recebera, daí a arte do poeta, do demagogo, do orador etc. Aos servos o uso proibiu. “Quem bem domina a palavra, dificilmente obedece quem a dita...”, ensinou-lhe o Deus.”
Uma outra recordação, ainda, me veio à mente: “o homem é o efeito de uma palavra que um outro pronuncia”, dizia meu professor de psicanálise, acrescentado a responsabilidade que temos ao falar de um que não seja nós: “uma casa destruída pode ser reconstruída, um carro, dependendo dos estragos em um acidente, pode ser reparado, uma palavra falsa contra a dignidade de uma pessoal produz um mal irreparável”. Antes da faca ao coração uma palavra condenou Alzhira ao ato extremo.

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