terça-feira, agosto 30, 2016

O CÃO DA HISTÓRIA


Diz que sou réu de corromper a mocidade. Mas eu, Atenienses, afirmo que Meleto (um dos acusadores) é réu de brincar com assunto sério; por leviandade, ele traz a gente à presença dos juízes, fingindo-se profundamente interessado por questões de que jamais fez o mínimo caso. (Sócrates, in Platão: Apologia de Sócrates)

Escrito entre os anos de 1914 e 1917, e mantido incompleto, O Processo, romance de Franz Kafka, foi publicado postumamente em 1925. Clássico da literatura mundial, o presente romance narra a ação de um julgamento de exceção – formal, burocrático –, conduzido por personagens medíocres, despersonalizados, obscuros, que parecem cúmplices do sistema judicial.  Josef K  que, “uma certa manhã, sem saber por que, foi preso”, perpassa todo o romance pela angustiante e frustrada busca por descobrir em que uma acusação contra ele se baseia para processa-lo. E, “contra uma acusação que nunca lhe é formalmente apresentada e sobre a qual ele não consegue obter informações”, Josef K, “na véspera de seu trigésimo primeiro aniversário, por volta das nove horas da noite, a hora do silencio nas ruas...”, foi, “como um cão”, executado com uma faca cravada “profundamente em seu coração”. É consenso entre os comentadores que a tragédia kafkiana de Josef K assume diversos aspectos simbólico-religiosos dos conflitos pessoais de Kafka com o pai e com o mundo judaico.

Transpondo do romance ao processo político [não há nada de judicial em tal processo] a que sujeitam Dilma Rousseff, não posso deixar de notar além de seu caráter burlesco revestido de formalidade jurídica, que tal processo não passa de um julgamento de exceção: antes de haver um crime já havia a decisão de culpa. E nessa toada vão se seguindo, um após outro, o discurso dos nobres senadores alinhados com o descompromisso com nossa combalida democracia. Josef K foi executado à hora do silêncio nas ruas, os algozes de Dilma se dizem representar “as vozes da rua”, vozes que ao perceberem enredadas em um golpe silenciam-se ou dissimulam. Por mais que tenha se esforçado, a acusação não encontrou crime contra Dilma, invocam “o conjunto da obra”, e hoje, pateticamente: “a vontade de Deus!” Dilma é “sangrada!” Nossa história se mancha novamente, pela via da conspurcação política.

Faltou à Dilma o discurso que segue:

Dizem que sou ré de crimes que não se provaram. Mas eu, nobres parlamentares, afirmo que Aécio Neves, Ronaldo Caiado, Cássio Cunha Lima (alguns dos acusadores) são réus de leviandade, eles (e os que formalizam este pedido de impeachment),  trazem-me à julgamento num jogo de cartas marcadas, fingindo-se profundamente interessados por questões de que jamais fizeram o mínimo caso, porque é oficio continuo de seus arranjos políticos. Caio de cabeça erguida porque os que me martirizam são os que, de fato devem à justiça.

Porque a história não é romance o cão da história não será Dilma Rousseff, mas os que lhe cravam a faca do impedimento.


É GOLPE! É GOLPE! É GOLPE!

domingo, agosto 28, 2016

PALAVRAS SÃO FACAS


Sons, palavras, são navalhas
E eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém. (BELCHIOR)


Li no Diário que “Para as carnes brancas Alzhira tinha uma faca, para as vermelhas outra. Para os legumes e verduras e para as frutas Alzhira também tinha facas diversas. Na verdade, Alzhira tinha um fascínio por facas. E tinha uma especial, a que cravou ao coração numa tarde de maio.” Leio que Alzhira em seu ato extremo deixou um bilhete: “As coisas que não nomeamos por medo das palavras nos ferir ao invés de nos esclarecer nos consome aos poucos. Palavras engolidas ferem a alma, como faca sangram por dentro”. Lembrei-me de vô que tinha sempre consigo um canivete para picar fumo e o punhal, para “não engolir desaforos”. Vó discordava de vô, dizia que quem resolve diferenças na ponta de faca impõem respeito pela força não pelo reconhecimento e “quem não é reconhecido só é obedecido enquanto tem força para empunhar a faca”. Vó dizia não conhecer letra, mas sempre nos pedia cuidado com as palavras: “são como faca; nos servem e nos fere, se não as usamos como se deve”. O Diário fez-me lembrar também tia que nos contou a história que segue.
“Era tardezinha e vento balouçava as árvores e misturava seu assobio ao canto de tizius e canários. O homem então dominava instrumentos e o fogo – diz que um Deus de nome Prometeu lhe ensinou estas artes e que foi castigado. Mas esta é uma outra história –. Era tardezinha, e um Deus veio ao homem e lhe ofereceu bem maior que produzir instrumentos e conservar o fogo. “Pedras e bastões quebram os ossos, impõem medo e o que serve, serve pela força; o que te ofereço não impõem; convence: convence o servo a servir, porque o faz acreditar poder ser senhor...” E o Deus deu ao homem a palavra e o advertiu: “quem a bem domina, tem nas armas seu último recurso, mas, como instrumento que corta, sua ferida não cicatriza, e, em línguas mordazes, tudo amarga e corrói. Palavra fere mais que arma!” Era tardezinha, o homem seguiu o que o Deus lhe ensinara, aos filhos dispensa o que lhe apraz do dom que recebera, daí a arte do poeta, do demagogo, do orador etc. Aos servos o uso proibiu. “Quem bem domina a palavra, dificilmente obedece quem a dita...”, ensinou-lhe o Deus.”
Uma outra recordação, ainda, me veio à mente: “o homem é o efeito de uma palavra que um outro pronuncia”, dizia meu professor de psicanálise, acrescentado a responsabilidade que temos ao falar de um que não seja nós: “uma casa destruída pode ser reconstruída, um carro, dependendo dos estragos em um acidente, pode ser reparado, uma palavra falsa contra a dignidade de uma pessoal produz um mal irreparável”. Antes da faca ao coração uma palavra condenou Alzhira ao ato extremo.

domingo, agosto 21, 2016

NOSSAS CONQUISTAS NOS AMARGAM

Os temas se misturam, se imbricam, produzem um caldo temperado às nossas ideologias. Desdenhamos o que deveria ser reconhecido. Valorizamos o que deveria ser combatido. Não quero heróis, não os preciso. Quero o espírito, mesmo que frágil, contraditório, ainda em formação, do que, querendo, colocando vontade e disciplina, somos capazes. E somos capazes de um salto para além de nossos limites, somos capazes de um golpe preciso, somos capazes de dominar o vento e remar vigorosamente. Somos capazes de vencer quando nos dão por vencidos. Na Copa sofremos um revés e, até antes da partida de ontem, se apostava em outro, como se apostava em desastre (Zika, dengue, terrorismo, violência generalizada...) em vexame internacional, por nossa suposta "desorganização". O revés não veio, até o momento, fora o queixume à forma como torcemos “ruidosamente", não fizemos feio, (o que deixa alguns muito triste. Nelson Rodrigues tem uma explicação para isso). Quem esperava um novo revés do Brasil se ressente, prefere agora desmerecer a seleção alemã. Outros preferem ficar nesse mimi com Neymar (que ele responda na justiça o que tem que responder e não só ele). Ele não jogou só, outros dez jogaram com ele. Ele jogou o que precisava jogar e foi o suficiente. Mas, segundo os entendidos, ele pode mais e minha bronca com ele é só esta: de seu desempenho em campo. Para mim, o que fica destes jogos e seus resultados é que poderíamos ser grandes e estar à altura de qualquer atleta mundial, em qualquer modalidade. Talentos culturais e esportistas doados à sua prática temos de sobra, nos falta estadistas, homens que não façam da política um instrumento de seus ressentimentos e interesses mesquinhos, capazes de oportunizar nossas potencialidades. Aprendo nesses dias que nossos anseios políticos são parcos, mesquinhos e nos deixamos conduzir por homúnculos e queremos impingir a tudo nossa miopia política. Nosso desdém com a vitória, com o sucesso qualquer que seja, de quem quer que seja, é fruto de nossa insatisfação com a política. Nascemos para sermos gigantes (não o do "em berço esplêndido"), nos deixamos governar por anões, a tudo reduzimos - infelizmente - ao tamanho de nossos políticos. Nossas ideologias nos turvam a dimensão de nossa grandeza... Nossas conquistas nos amargam...

sábado, agosto 06, 2016

SEMEN E GEN-GAIA



Eu já escrevi em outro lugar (Ab Erectus, O Todo em Fragmentos) que em uma expedição arqueológica encontrei um conjunto de textos em tábuas de argila que remontam a tempos imemoriais, e que Leopoldo, um fantasma de família, que se diz mordomo de Pedro II, apresentou-me traduções realizadas por um seu antigo camarada, conhecedor de línguas inexistentes. O texto que segue é uma dessas traduções. Relembro que Leopoldo gosta de me pregar peças.
“El, o irreconhecível, desceu ao solo e cuspiu-lhe sua saliva, moldou dois seres um no outro e os separou, dando-lhe nomes Semen e Gen-Gaia. Aos seres  El, o irreconhecível, deu o verbo e o fogo. Semen corria os campos e domesticava as criaturas que El, o irreconhecível, lhe ensinou a caçar. Gen-Gaia ordenava os frutos da terra. De tudo, os seres ofereciam louvores a El, o irreconhecível, que os abençoava. Uma tarde El, o irreconhecível, entediado, desceu ao lago. Gen-Gaia banhava-se em suas águas. El, o irreconhecível, desassossegou-se. No ínterim, Semen sonhou coberto por um touro. Na manhã seguinte Semen não saiu para o campo. Escondeu-se à sombra da grande árvore e observou El, o irreconhecível, esvaziar o lago de suas águas e fazer-se água no lago. Semen observou Gen-Gaia banhando-se em El-águas. [...] Semen desejou o lugar de Gen-Gaia; guardou despeito por El, o irreconhecível. De Gen-Gaia nasceram os povos da terra. Semen os tomou e os ensina tudo o que aprendera de El, o irreconhecível. Semen ensinava a cada filho de Gen-Gaia um nome diverso de El, o irreconhecível, e uma língua diversa. E Semen infundiu em cada povo o seu resentimento e o seu desejo de preposto de Gen-Gaia. E cada povo deseja os desejos de Semen. Por isso o homem fustiga a terra e domina a mulher, querendo o seu lugar...”
Leopoldo é assaz um fantasma gozador.

O SÁBIO E O IMPOSTOR

"nossa força de resistência desaba quando aplaudimos as ilusões que o poder nos oferece" Zózimo Oliveira.
Certa vez prenderam um sábio e o levaram á presença do imperador. O imperador queria que o sábio aparecesse a seu lado diante do povo. O sábio recusou-se. O imperador ofendeu-se, mas tinha receio de punir o sábio, muito querido do povo. Então, o imperador mandou fazer uma grande festa, em homenagem ao sábio. E teve magníficas apresentações e espetacular queimas de fogos. O povo embasbacou-se com tamanha celebração, que por alguns instantes esqueceu as vilanias do imperador e de sua corte corrupta. Mas o sábio não se fez presente. Então vieram contar-lhe do espetáculo, dos fogos e toda magnitude da homenagem. O sábio chorou o entusiasmo do povo: "para comprar-me o apoio, um impostor compra a multidão com pirotecnia." Indignado com a postura do sábio, o imperador o proibiu de manifestar-se em público e de mencionar o seu nome por todo o império. "Sob o jugo de um impostor é me um honra não ser lembrado, assim o meu nome não se associa ao que combato." Dias depois do grande evento, e de ter calado o sábio, o imperador mandou ao povo a conta do grande evento: o povo trabalharia mais, receberia menos, para manter suas regalias e de sua corte. O imperador produziu, então, uma nova grande celebração que o povo achou magnifica. Foi transmitida pela Globo e chama-se Olimpíadas.

terça-feira, agosto 02, 2016

PUTA


Devido ao sombrio momento que vivemos, o termo ‘puta’ está em voga como ofensa, desnudando nosso caráter hostil e pouco democrático. E cabe um comentário.
Eu já escrevi em algum lugar que o termo ‘puta’ é um advérbio de intensidade: “tive um puta medo!”; “Foi uma puta aventura!” Indica também admiração: “É um puta diretor!” Acostado a ‘merda’ aponta contrariedade: “Puta merda! Que cagada fizemos!”. Com o passado do verbo parir na terceira pessoa do singular mando alguém ao quinto dos infernos. Assim: “Vá a puta que te pariu!” constitui ofensa, não por referência ao oficio milenar, mas “por tratar a mãe do outro”, como me explicou certa feita tia, “como porta do inferno, como morada do coisa ruim.” Com filho, filha, constitui, geralmente, expressão ofensiva. Mas já vi funcionar como admiração: “Seu filho da puta, você conseguiu! Parabéns!”
“O xingamento”, dizia vó, “é destempero, desatino de aborrecimento, de injustiça sofrida, que mesmo padre, homem de Deus, sucumbe. Nem sempre é ofensivo; é, por vezes, desafogo.” Lembro sempre Joaldo, a quem, vendo o mar pela primeira vez, faltou-lhe palavras para sua admiração e saiu-se com essa: “Puta que o pariu, que coisa tamanha é essa!” E todos rimos de seu vexamento.
“Já  ofensa”, ensina vó, “é coisa de gente covarde, gente sem caráter, gente que não tem argumento. Não se vexam de sua mesquinhez e tenta desfazer-se do outro porque não lhe alcança o respeito que pretende e que, de fato, não merece. Como a maledicência é do inculto, a ofensa é do arrogante. Contra a mulher é sentimento de pequenez e vilania.” E ‘puta’ era um dos poucos termos que vó nos vetava.
Em bar de pai, Zózimo, depois do terceiro copo, chorava Beatriz que o abandonava aos braços dos homens do ‘Beko’. O irmão o repreendia: Por que choras, mano, o amor dessa rameira? Seja homem, tenha tino!” Zózimo chorava inda mais, e entre lágrimas retrucava o irmão: “não é pela puta que choro, irmão! Não é pela puta que choro. É pela mulher. Ana Beatriz, meu irmão, é puta: uma Puta Mulher! E é pela mulher, pela puta mulher que é Ana Beatriz, que choro”
 A quem de esquerda, a  quem de direita, acredita que agredir, humilhar, enxovalhar o outro é posicionamento político, meu profundo lamento. Tais comportamento não denotam consciência política (termo fora de moda), mas uma puta imbecilidade, em casos mais extremos covardia. Dos idiotas me compadeço, aos covarde: ides ao quinto dos infernos...

Aproveito a oportunidade para me manifestar: FORA TEMER!!!