segunda-feira, outubro 24, 2022

PIPOCOS E PIPOCAS

 

“... Tem uma bala no meu corpo... E não é bala de coco” (Chico Cesar)

 

João Silva, do Morro dos Desparidos, jantando pipoca, acompanhava em sua televisão de tubo, a feliz conclusão da condução de Roberto Jeffersson à uma carceragem federal. Narrava o repórter que o distinto cidadão disparara cerca de vinte vezes contra policiais federais, arremessara granada, ferira policial, coisa e tal. E pacientemente, a operação policial esperou o distinto se entregar. “Fosse no morro, já tinha levado pipoco”, conjecturava João Silva. E João Silva não teve tempo de assistir à continuação da matéria, um estrondo interrompeu seu entretenimento, sua refeição, suas conjecturas. A porta de seu barraco veio ao chão: “perdeu vagabundo, perdeu vagabundo”, era a polícia invadindo seu lar. Quando a mãe, que embalava balas de coco no cômodo ao lado, chegou, João agonizava ao chão.  Alegou o policial que fora tomado de surpresa à reação de João. João morreu com dois pipocos, segurando uma vasilha com pipoca. Roberto Jeffersson passa bem, obrigado!

terça-feira, outubro 04, 2022

A CULPA NÃO É DO POBRE DE DIREITA, ELE NÃO EXISTE!

 

 

“A pobreza não é uma condição, é o resultado de uma relação de apropriação e exploração que subjuga muitos a poucos. Não há o pobre; há o empobrecido.” (Zózimo de Ítaca)

 

É preciso entender as relações e estruturas que mantém o empobrecido fiel aos que o expropriam. Se não entendermos estas relações, continuaremos condenando o empobrecido em suas escolhas, quando as pode ter, sendo ele refém da maquinaria que o mantém refém de seus expropriadores. Uma vez que entendamos, é quase improvável que consigamos esclarecê-lo de sua subjugada situação. Os que mantém os recursos e mecanismos de empobrecimento do empobrecido, mantém, sobretudo, os espaços discursivos “legitimadores” de sua posição. Púlpitos, cátedras, mídias estão a serviço dos expropriadores. Contra cada um de nós, da consciência que tomamos, há centenas de padres, pastores, professores, articulistas, “formadores de opinião” prontos a convencer o empobrecido que somos nós, e aquilo que defendemos, que os empobrece e não os expropriadores. A nossa ilusão de poder vencer os que empobrece o empobrecido pela mobilização popular, subvertendo as estruturas que o cativam, há de ser sempre frustrada, se ao invés de entendermos os processos de subalternização, passarmos a culpar o subalternizado. O empobrecido carrega em si o expropriador. Por vezes, ele não apenas anseia a vida dos que o empobrece, ele enseja, saindo da situação de empobrecido, tornar-se senhor não de si, mas sobre muitos. Este ensejo lhe é introjetado. Os instrumentos do expropriador são eficazes e eficientes. Nosso empenho discursivo insuficiente.   Não há empobrecido de “esquerda” e empobrecido de “direita”. “Esquerda” e “direita” são termos burgueses, é preciso uma certa condição econômica para se intitular ideologicamente. O empobrecido não tem ideologia tem carências, necessidades, anseios. O voto do empobrecido não é pelo ontem ou pelo amanhã, é pelo agora de suas necessidades. Nosso discurso não os atinge porque, Paulo Freire já havia ensinado: tomada de consciência é um ato pessoal e não se transmite. E, ainda na linha freireana,  é preciso pararmos de falar do empobrecido, objeto social, para o  empobrecido sujeito real e passarmos a falar com ele, deixando-o falar.  Em nossas relações e intervenções junto aos movimentos populares, uma nova práxis precisa ser estabelecida. Não é a partir da consciência que tomamos da realidade, mas é a partir da consciência que o empobrecido tem da sua realidade que devemos criar juntos as estratégias para avançarmos na resistência, e desta à superação, das relações e estruturas que nos subjugam aos que nos expropriam e empobrece. Por ter produzido o empobrecido, o expropriador o conhece e sabe como mantê-lo cativo. Nossa consciência dos processos que produzem o empobrecido é ineficaz sem nosso conhecimento do empobrecido sujeito real, dotado de anseios particulares, muitas vezes espelhantes do caráter do expropriador. E entender o empobrecido é preciso estar com ele, deixando-o se dizer e não dizendo-lhe dele. O empobrecido não se vê na descrição que dele fazemos, mas se vê nos modelos que os expropriadores lhes oferecem como entretenimento.


sábado, outubro 01, 2022

DO CONTO DO VIGÁRIO

 



Vigarista e vigarice são termos oriundos de vigário. Vigário é um termo religioso de origem latina, vicariu, us. Vicariu significa fazer a vez de outro ou de outra coisa. Na tradição católica, o sacerdote durante a administração dos sacramentos faz a vez de Cristo. Assim se confessa que quem administra o sacramento e consagrada a eucaristia é o próprio Cristo e não o sacerdote mesmo. Administrativamente, porém, fora dos ofícios religiosos, nem todo sacerdote é vicário. Administrativamente, vicário é o sacerdote que responde pelo bispo de uma diocese, ou pelo sacerdote titular de uma paróquia – o pároco, em sua ausência. De vicariu deriva vigário. E de vigário, vigarista. Vigarista é o sujeito que se passa por vigário sem sê-lo. A princípio, cair no conto do vigário é acreditar em quem se passa por autoridade religiosa sem que de fato ela seja religiosa. Tornou-se sinônimo de se deixar ser feito de otário, de se deixar levar por vigarices: discursos fraudulentos, conversas enganosas. O Vigarista se passa por vigário com intenção de enganar e roubar. Não o devemos confundir, portanto, com “padres de festa junina”. Estes não têm outra intenção que divertir-nos nas danças de quadrilha e com eles não nos enganamos, nos divertimos. O “padre de festa junina” que tomou a cena do último debate antes das eleições, não é padre de festa junina, ele não estava ali para nos divertir; não é vigário, não estava ali no lugar de outro, pois não representa autoridade religiosa alguma, ele é um embuste. O embuste é uma estratégia de engano. O padre “de festa junina” do debate é uma estratégia que a campanha da familícia encontrou para desviar a atenção de suas vigarices e dá folego à campanha do mitômano – é deste termo que lhe deriva a alcunha: mito . Só cai no conto do vigarista que se passa por vigário apenas quem acha que terá vantagem. É com a vantagem que o otário espera obter que o vigarista conta para aplicar seu golpe. A familicia já nos mostrou que não nos pode oferecer mais que mentiras. O padre de festa junina é a ilustração cabal de suas vigarices. Diz um amigo meu que entre o vigário e o vigarista é preciso distinguir o crente do crédulo. Diz ele: “o crente não crê em tudo e é capaz de questionar o que crê, já o crédulo está disposto a acreditar em qualquer coisa, principalmente se lhe promete vantagem. A relação do crente com o vigário se dá pelos benefícios dos sacramentos. A do crédulo com o vigarista pelas vantagens que este lhe promete. O crente quer estar bem com Deus, o crédulo quer se dar bem. Assim, o crédulo está para o vigarista como o otário para o malandro. E no Brasil há mais crédulos que crentes”. Estão loucos para caírem no conto da famílicia.