quinta-feira, janeiro 27, 2022

DA DIFERENÇA

 

“A diferença é uma intuição imediata. Abrimos os olhos e o diferente se manifesta como outro ante nós. Esta intuição primeira nos desestabiliza, nos confronta, nos remete a nós mesmos. Sabemos de nós diante do outro. Depois damos conta das semelhanças e dessemelhanças que nos aproximam ou afastam do outro. A partir de mim, julgo que o outro tem as mesmas necessidades, os mesmos desejos, os mesmos receios que eu. E o outro torna-se me amigável ou ameaçador. A meu juízo, ele deseja o mundo tanto quanto eu. E entre a possibilidade de partilhar ou consumir egoisticamente o mundo, com o outro eu passo a disputar o mundo. A diferença não funda a desigualdade, a diferença dá-nos a alteridade. A desigualdade nasce das disputas pelo mundo. É do desejo de desfrutar o mundo e submeter o outro aos meus desejos, isto é, de desfrutá-lo também, que se dá a desigualdade. A igualdade não é outra coisa que o ato do outro de resistir à imposição de meus desejos, para que possa fruir de seus próprios desejos. A diferença não se pode apagar: basta abrirmos os olhos e ela nos sorri. A igualdade se negocia todas as manhãs. Não há igualdade se não se respeita as diferenças e se não se compartilha o mundo.” (Rodner Lúcio)

quarta-feira, janeiro 19, 2022

ABSTRAÇÃO

O abstrato não é algo que brota na mente, é algo que se abstrai de algo concreto. Do nada não se abstrai nada. De abstrações também se abstrai; a abstração primeira é sempre de algo concreto. O impossível do absoluto é ele ser abstração de abstração à enésima potência.

Eu vejo um pássaro voando, pássaro é abstração de algo que voa. Voar é abstração de uma forma especifica de deslocamento.  Desse algo voando eu digo ser pássaro e não avião, abstração de um outro algo, que também se desloca no ar. Do pássaro, e não de aviões, de seu voo eu abstraio liberdade.  Da criança na areia, construindo castelos, banhando os pés na água, abstraio contentamento e torno-o desejo. Desejamos abstrações.  O desejo anda lá nas esferas do absoluto, embora também nasça do concreto.

É um fim de tarde. Os pescadores arrematam os últimos preparativos antes de lançarem-se ao mar. Lá no horizonte o sol vai empalidecendo-se, dando lugar aos primeiros vestígios de uma noite que promete estrelada. Acompanho os últimos turistas recolhendo suas tralhas, pondo-se a caminho das pousadas: “amanhã tem mais!”, grita um ao filho que teima em continuar um com o mar.

Tomo um gole da cerveja e corro a costas da mão pelos lábios. Sorris-me. Teu sorriso é vida à enésima potência, abstraio. O desejo é que o tempo pare.

quarta-feira, janeiro 12, 2022

EM TEUS LÁBIOS

 

Dei-me com o fenômeno

Desafiando-me

Dei de ombros

Não quero saber de mim

Por que daria conta da coisa em si?

“Eu te apelo em ti”

Disse-me o gaiato

“Soy latinoamericano mi compadre!”

Sem cogitar, respondi

O fenômeno esvaneceu-se

Mergulhei-me em teus lábios.

segunda-feira, janeiro 10, 2022

DA NATUREZA E NOSSA MAIOR TRAGÉDIA

 

A natureza não é algo estático. Não, ela se movimenta. Água corre, se avoluma, transborda. Pedras se desgastam, se desprendem, fendam, rolam. Terra encharca, desmorona, erode. Árvores caem. A natureza é movimento. Ela não se vinga das ações humanas sobre ela. Ela simplesmente tem suas leis e as segue peremptoriamente. As pessoas são dotadas, umas mais, outras menos, devidos a fatores socioeconômicos, de inteligência. Esta dotação nos capacita, uns mais, outros menos, a entender as leis que regem a natureza, seus ciclos, seus movimentos. Desta capacidade, uns mais, outros menos, acreditam ser possível dominar e explorar ad infinitum a natureza, tirando dela seu sustento, seu conforto, sua segurança, seu lazer. Alguns incluem glória e poder ao pacote. Mas é da inteligência não apenas a capacidade de entender as leis da natureza e de usufruir deste conhecimento; é da inteligência também observar, avaliar, destacar situações temerárias, que colocam em risco o bem estar, a segurança, a integridade física e mental, a vida das pessoas, e procurar recursos preventivos. Uma árvore que cai numa floresta sem dela darmos conta é um evento natural, uma onda que impacta contra uma rocha e a faz rolar para dentro do mar, se não nos atinge, é um evento natural. Um cisco que cai de uma palmeira e infecta o olho desatento de uma pessoa, já não é apenas um evento natural. Teve ali uma displicência humana. Não há acidentes naturais onde há a presença humana. Há falta de bom senso, de inteligência, de descaso. Desrespeitamos nossa capacidade de saber, de aprender, de usar o que já sabemos ou deveríamos já saber, de evitar “acidentes”. Não, não é a natureza reagindo, se vingando. A natureza tem leis, não sentimentos. Somos nós, presunçosos ou displicentes que somos, que escolhemos ignorar o que já sabemos – ignorar o que se sabe é algo criminoso – e não fazer caso dos riscos a que nos submetemos.  Não fossem as vidas perdidas e as pessoas sequeladas, o desprendimento da rocha em Capitólio seria um espetáculo: é um espetáculo. A forma como desprende, tomba e impacta contra a água é lindo. Nossa presença tornou-o uma tragédia. Cabe-nos lamentar pelas vidas perdidas, mas não poderemos dizer que não sabíamos que poderia acontecer e que poderíamos ter evitado ou amenizado a gravidade, para que a fruição da natureza não se tornasse uma tragédia. Não, não foi a natureza nos punindo – li isto em algum lugar –. Ela não estava lá de espreita apenas esperando a nossa aproximação para se lançar contra nós. Nós, por descaso ou displicência, descuidamos do que estava para acontecer.  Somos nós que, podendo, nos recusamos a fazer caso do que já sabemos. Produzimos tragédias não por não saber, mas por ignorar o que sabemos. Este ignorar é consciente, é trágico, é criminoso. Se há algum sentimento na natureza a nosso respeito é de pena. Mas não há, a natureza segue suas leis e nós nossa ignorância, mesmo sabendo. Somos seres dignos de pena. Mas a natureza não tem sentimentos.