O texto que segue eu o colhi dos cadernos de ensaio de Euripedes Santos. E embora esteja intitulado "Rascunhos para um Romance", ele pertence ao conjunto de cartas que Euripedes escreveu para “Flor de minha existência”, cujo verdadeiro nome Euripedes sempre manteve oculto. Se seguirmos observações de Rodner Lucio, “Flor de minha existência” é, com razoável probabilidade, Ihvs Aghapemene, que Euripedes Santos cultivava em seu jardim.
Falar é um mal necessário! Quem muito
fala tem pouco a dizer e provoca mais desentendimento que esclarecimento. Por
outro lado, as coisas precisam ser ditas, mesmo que escapem à fala e aos termos
que as qualificam. Escrever é menos necessário que a fala. Quem fala pretende
ser ouvido. Há quem escreva para não ser lido. Há, na escrita a pretensão de
ordem e clareza. Mas tal pretensão não suporta uma leitura mais atenta. Toda
escrita suscita questionamento, novos argumentos. Ciente de tais limitações, eu
me sinto mais seguro escrevendo. Não é uma justificativa; é algo próximo de uma
psicanálise, busco um autoentendimento: “falando nos curamos”, disse-me um
amigo.
Na infância, por vergonha, engolia as
palavras. Fui, muitas vezes, chacoteado por trocar o “l” pelo “r”. Acabrunhado,
isolava-me, escondia-me nos livros de meu avô. E, por defesa, compus-me este
personagem circunspecto e sisudo.
Para evitar, ainda hoje, incômodos,
evito falar, engulo as palavras. Mesmo junto de ti passos horas em silêncio,
engolindo as palavras. Não é por vergonha; é por receio. E meu receio é
perder-te.
Quando em sua presença, penso
abrir-te um largo e generoso sorriso e dizer-te com viva animação de meus dias
e de como anelo-te percorrendo a vida comigo. Mas basta que me ergas o olhar
para eu emudecer e carrusmar-me. Voltemos à palavra.
A palavra escrita é limitada, ordena
o pensamento, mas não desce às emoções, às sensações, aos sentimentos mais
profundos. Não há palavra que descreva, uma dor, uma alegria, as confusões
mentais provocadas por “bobagens” ou por "questões graves".
A realidade toda não cabe na fala;
não emerge na escrita. Na fala, na escrita, a realidade dissimula, sorri-nos e
escapa-nos. Não é dito: "na escrita, o poeta finge a dor que não sente”?.
Por vezes, ele não atinge dizer toda a dor que sente. Depois a realidade não é
um estado imóvel, completo, definitivo. E aquele que a retrata está nela
precariamente, susceptível a inúmeras circunstâncias. Escrever é ter ciência
das incompatibilidades entre sentir e pensar e representar um e outro.
O comportamento indica apenas a
desordem, nunca as motivações. Se de fato “o poeta finge a dor que sente” e o
filosofo “especula acerca do que é ausente” como indicar se a dor é dor ou
fingimento? E se é dor, como classifica-la “bobagem” ou dor grave?
Dizia minha avó: “este menino”, e
apontava o dedo para mim, “em um copo d’água, faz tempestade”. Minha avó
aconselhava-me: “Antes de quebrar, encha os pulmões de ar e grite tua raiva.”
Até hoje, geralmente, engulo o grito e explodo em arremesso de objetos.
O medo é uma força estranha.
Acua-nos, imobiliza-nos, emudece-nos. O medo também provoca desatinos e produz
atitudes desesperadas. Insegurança produz medo. E num relacionamento, o acumulo
de medo é o ciúme. Ciúme é incerteza quanto ao amor que se deseja receber e
excesso de confiança quanto ao amor que se dá. E eu sei de teu amor, receio não
amar-te à tal altura. Pouca estima também produz medo.
Somos racionais? Sim! Mas somos
sobremaneira passionais. A razão nos guia, mas o que nos move ou imobiliza são
as paixões. E estas duas faculdades nunca estão de acordo. Em mim são
totalmente assimétricas.
“Passo os dias à beira do abismo”
pode ser apenas figura de linguagem; uma construção fictícia. Mas descreve
também a condição espiritual de uma pessoa.
O abismo abriu-se diante de mim na
noite em que dissestes: “quero experimentar um outro amor”.
E eu vivo com esta sombra: de um
outro amor surgir-te.
Não te quero presa a mim. Mas te
anelo de tal forma que perder-te é não ser.
Li em algum lugar um dito de Ovídio:
“Vejo o que é melhor e aprovo; sigo o que é pior”. Paulo diz a mesma coisa em
uma de suas cartas. Amo-te deste amor que, assim, no papel, compreende
querer-te o que é melhor e o melhor é que sejas livre e ame quem queiras. Mas,
por medo, assumo atitudes que te reprimem e me fazem perder-te.
Amar, bem sei, não é sentir: Amar é
querer.
Com todas as contradições que
carrego, eu só posso querer por mim e em mim. E eu quero que as coisas
aconteçam como têm que acontecer. Assim, amar-te-ei amando tua vontade, mesmo
que tal vontade seja, de mim, querer afastar-te.
Receio perder-te, e tal receio me
dilacera. Ando sem chão, o abismo se me abre, apela-me ao salto. Imponho-me,
sem razoabilidade alguma, superar as conturbações que me assolam.
Eu quero amar-te assim: amando tua
vontade, mesmo que seja não me amar!
Querer é uma palavra desarrazoada,
sem profundidade.
Desarrazoado temo perder-te!
Nenhum comentário:
Postar um comentário