sexta-feira, fevereiro 28, 2020

O SENTIDO DE NOSSO EXISTIR É TORNAR-NOS HUMANOS


A humanidade não é algo já dado, é um vir-a-ser. Homens e mulheres nascem e se constituem como promessas lançadas ao futuro. A humanidade é uma conquista, não um ponto de partida. De tal modo, homens e mulheres, promessas de uma humanidade a ser construída, nascem condenados a criar e saber de sua própria humanidade, produzindo um mundo menos desigual, menos expropriador de nossa vida, de nossas alegrias, de nossas esperanças, indo além de si mesmos, se superando. Penso numa humanidade que agrega, aproxima, inclui, que acolhe, reparte e distribui ao invés de acumular avidamente e consumir-se, consumindo compulsivamente.
Criar é o modo continuo de homens e mulheres contraporem-se à desumanização... Criando, homens e mulheres interferem no mundo, transforma-o, interferem em si mesmos, humanizam-se, impondo-se uma ética, dando-se um sentido, um significado, um valor.
Homens e mulheres se humanizam aprendendo a interpretar a si mesmos e ao mundo, sabendo-se inter-relacionados uns com os outros, com o mundo e assumindo o cuidado consigo, com o outro, com o mundo.
Homens e mulheres que não buscam conhecerem-se, conhecer uns aos outro, conhecer o mundo, se deixam dominar por uma má consciência, em que o calculo e o interesse aliam-se aos excessos do ter pelo ter e do consumir-se no consumir.
Os excessos do ter pelo ter e do consumir-se no consumir amesquinham-nos e barram-nos a constituição de um saber-nos de nós mesmos e dos saberes necessários para o desenvolvimento de nossa humanidade que não se produz a sós mas no convívio com os outros.
Se à humanidade se chega, ela é a identidade de uma coletividade, não é o perfil de um indivíduo. Quanto mais gritante é a distância entre os membros de uma comunidade, menos humana ela é. De tão gritante que é a desigualdade entre nós, beiramos à barbárie.

sexta-feira, fevereiro 21, 2020

CONHECE-TE A TI MESMO



“Todos os seres humanos compartilham a capacidade de se conhecer a si mesmos e de se pôr em seu são juízo” (Heráclito)

A frase “conhece-te a ti mesmo” encontrava-se na entrada do Oráculo de Delfos, local dedicado a Apolo, deus grego da luz e do sol. Nele encontrava-se a suprema sacerdotisa (Pítia) que, em estado de transe, transmitia as vontades dos deuses. E exercendo, pois, o papel de ligação entre os deuses e a humanidade, Pítia exercia uma enorme influência em decisões políticas, já que governantes de varias regiões recorriam a ela a fim de receberem orientações acerca de suas ações.
Segundo explica Zózimo de Ítaca, a frase “Conhece-te a ti mesmo” à entrada do Oráculo de Delfos, orientava o visitante a examinar-se bem antes de consultar a sacerdotisa, não fazendo-a perder tempo com perguntas supérfluas ou superficiais.
Um ateniense, chamado Sócrates, foi ao santuário consultar o oráculo. Diziam os atenienses que ele era um sábio, e ele desejava saber o que significava ser sábio. O oráculo, na pessoa da sacerdotisa, perguntou-lhe: “O que Sócrates sabe?”. Ele respondeu: “Só sei que nada sei”. Então o oráculo exclamou: “Sócrates, por saber que não sabe, é o mais sábio de todos os homens.”
Desde este evento, a frase “conhece-te a ti mesmo” é atribuída à filosofia socrática, pois Sócrates ensinava-a acrescentando que “uma vida não examinada não merece ser vivida”. O interesse de Sócrates fora sempre a de encontrar meios para se viver uma vida mais autêntica e feliz. A seu ver, conhecer-se é o ponto de partida para tal vida.
Na concepção de Benveniste, o conhecimento de si exige e pressupõe o outro, isto é: “a consciência de si só é experimentada por contraste. Eu não emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém, que será na minha alocução um tu” (BENVENISTE, E. Problemas de Linguística Geral I. Campinas/SP: Ponte. 1988, p. 286). Assim, “ninguém pode conhecer a si mesmo, porque ninguém aparece para si mesmo como aparece para os outros” (ARENDT, H. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras. 2004, p. 69).
De Benveniste e Arendt chegamos a entender que sem a presença de outra pessoa, a consciência de mim não poderia surgir.  E se “para uma coisa existir ela precisa ser nomeada”, não existe o eu sem que não tenha sido nomeado. Não há, portanto, “consciência sem contribuição exterior. Eu me faço graças aos outros... [E] eu é o conjunto dos vínculos que vou tecendo com os outros” (JACQUUARD, Albert. Filosofia para não-filósofos, respostas claras e lúcidas para questões essenciais. Rio de Janeiro: Campus. 1998, p. 17;18). Assim eu só conheço a mim mesmo em contato com os outros, e sem a contribuição minha com os outros não há vida autêntica e feliz como Sócrates procurava...

segunda-feira, fevereiro 17, 2020

JESUS DA GENTE FILHO DE MARIA DAS DORES BRASIL



Narra o evangelista Marcos que “Jesus saiu com os seus discípulos para as aldeias de Cesaréia de Filipe, e pelo caminho perguntou-lhes: "Quem dizem os homens que eu sou?" Responderam-lhe os discípulos: "João Batista; outros, Elias; outros, um dos profetas". Então, perguntou-lhes Jesus: "e vós, quem dizeis que eu sou?". Respondeu Pedro: Tu és o Cristo" (Marcos 8, 27-29). Em Mateus (16, 16) a resposta de Pedro é mais contundente: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”.
“Desde então, Jesus começou a manifestar a seus discípulos que precisava ir a Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciões, dos príncipes dos sacerdotes e dos escribas; seria morto e ressuscitaria ao terceiro dia.” (Mateus 16, 21). E “se me perseguiram, também vos hão de perseguir.” (João, 15, 20).

"E vós, quem dizeis que eu sou?".Vinculada à nossa realidade presente, de milhares de Josés desempregados, e tantos Evaldos1 cravejados, a Estação Primeira de Mangueira trará à Marques de Sapucaí o samba enredo: A verdade vos fará livre, desfila uma resposta ao questionamento do Cristo. E em sua resposta desenha o rosto esquecido do Cristo: “rosto negro, sangue índio, corpo de mulher”, o Cristo que aparece nos corpos oprimidos da história. O Cristo da Mangueira é o Cristo que não exige conversão ou cobra dizimo, em seu amor “não há fronteiras”. Filho de Maria das Dores Brasil, “enxuga o suor de quem sob e desce a ladeira”.
Modestamente a Mangueira anuncia seu samba como uma reza, mas não, não é uma reza; é a Boa Nova como a muito não se anunciava: “Não há futuro sem partilha.”
E contra “os profetas da intolerância”, arrecadadores de dizimo, cultuadores do Messias de arma na mão, inventores de mil pecados que justificam a opressão e a exploração do povo, valendo-se de seus privilégios, a Mangueira canta o Jesus da Gente, o Jesus que anda pelos morros, pelos guetos, pelas periferias do Brasil e do mundo e se faz reconhecer no que está com fome, no sedento, no privado de liberdade: “tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber, era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim...” (Mateus 25, 35-36).
No samba enredo da Mangueira não há desrespeito ou agressão ao Cristo. O atentado contra Cristo não está em representá-lo como mulher, como negro, como índio ou folião desfilando com os seus. O atentado contra Cristo está na violência contra a mulher, na violência contra os povos nativos, contra as comunidades quilombolas, na violência contra aqueles que não congregam em nossas igrejas e templos... Cristo não frequenta grandes templos, Cristo não frequenta palácios, “de peito aberto, de punhos cerrados” está nas “fileiras contra a opressão”.
Os religiosos podem ficar tranquilos, o Cristo da Mangueira não é o Cristo de suas teologias acumuladas de rancor contra o pobre, o Cristo que a Mangueira trás para a Sapucaí é justamente o pobre que nossas tradições religiosas e nossos podres poderes abandonaram. O samba enredo da Mangueira não é uma reza: é revelação. Um Deus encarnado pobre, para os rapinadores da fé é loucura. Eles não sabem que “a esperança brilha mais na escuridão” e que o Cristo não ressurge nos altares de suas igrejas e templos; ressurge “no cordão da liberdade”, pois quis identificar-se com quem padece, com quem sofre os desafios da fome, da sede, da nudez, do encarceramento, da humilhação, da negação à saúde, educação, moradia, vida em plenitude.
Mangueira, tenha esperança, haveremos de pegar a visão:  “Não existe futuro sem partilha, nem Messias de arma na mão”

1-    Em abril de 2019, uma ação do Exército matou o músico Evaldo dos Santos Rosa em Guadalupe, na Zona Norte do Rio, na véspera. O carro onde estava o artista e a família foi fuzilado com mais de 80 tiros.