sábado, agosto 25, 2018

NOSSAS FRUTAS


A jornada não é das melhores! Passei a noite praticamente em claro, virando de um lado para outro, levantando e andando pela casa, ligando e desligando a televisão. Agora me vejo diante de um acumulo de relatórios para dar cabo, um idiota tagarela que emenda um assunto em outro sem respirar, conciliando o resultado de uma partida de futebol lá na França, as pregações de um certo pastor midiático, as disputas eleitorais,  a suposta vida boa no Japão, que ele pensa ser na Europa, em uma só ideia: “o brasileiro não presta”. Os idiotas tem essa característica falam pelos cotovelos, uma rajada de sandices e querem estar certos. Tento não dar-lhe atenção e concentrar-me nos relatórios.
Meu corpo opera uma centena de funções que independem de minha vontade. O sangue que corre por minhas veias, o coração que pulsa, a produção de glóbulos brancos, a respiração, o fio de cabelo que se solta de minha cabeça, nada disso é uma determinação minha, independe de minha intenção ou intervenção, acontecem, simplesmente acontecem.
Há também os automatismos psíquicos. Ideias, vontades, desejos, memórias, fantasias, pensamentos de toda ordem, conexos e desconexos com a realidade, irrompem em mim sem que eu os queira no instante em que irrompem. Essa fuga, por exemplo, deste trabalho técnico, burocrático, maçante, que exige clareza e precisão, em reminiscências de nosso primeiro encontro, um distante domingo de primavera, durante um passeio ao Ibirapuera. Foi o Bacana quem me apresentou a ti: “Ele tem este jeito de quem está “bolado”, mas é só tipo, é um cara legal”. Você riu. Seu riso me salva da papelada.
Assim, enquanto eu registro que a Casa está com 50 adolescentes e relaciono o número de refeições e cada item de cada refeição numa planilha, ao relacionar que no dia tal, no almoço, foi servido fruta, vem-me à mente as frutas de nosso pomar. Elas estão amadurecendo.
As fotografei em um banho de mar, elas atraem o olhar, despertam o apetite, já se sente o paladar de suas carnes. Ainda correm ingênuas ou despreocupadas, saltam graciosas as ondas do mar e constroem castelos de areia. Logo, logo estarão maduras. O que era em seus corpos brotos despontando, já são peras bem formadas...
O falastrão não termina nunca de falar e vaticina: “Nós cidadãos de bem, temos direito de nos defender!”
Somos um jogo dos automatismos biológicos e psíquicos que tentamos manter sobre controle com dietas, exercícios, disciplinas. Desenvolvemos regras, leis, normas para o corpo e a mente, mas o coração funciona por funcionar, como o desejo de um café apenas coado com bolinhos de chuva como vó fazia, aflora e basta. Poderia controlar a vontade de pedir ao sujeito de calar a boca, poderia não dar-lhe muita atenção, concentrando-me nos relatórios, divagando sobre nossos planos de férias, poderia deixá-lo falando sozinho, ir ao banheiro, tragar um cigarro, mas: “quanta idiotice!”, escapou-me da boca. Tivesse o cidadão de bem uma arma, todo o automatismo que me rege cessaria. Restaram as ofensas e ameaças. Não posso evitar que me venha ideias absurdas a seu respeito. Agora preciso de um conhaque, não de um café.
Nós podemos sustentar muitas coisas: valores, opiniões, fé, ilusões, descrenças. Eu sei que não podemos impor, apenas expor, ao outros o que achamos certo ou errado, e que devemos nos submeter às criticas e rejeições a nossos posicionamentos. Algo, no entanto, precisa ser acordado: cordialidade, bom senso, respeito, democraticidade são desejos comum. “Todo bom diálogo parte do que é comum para voltar ao que é comum, estabelecendo as divergências.”
Volto a pensar nas frutas de nosso pomar, conjecturando um provérbio de minha avó. Dizia ela: “fio há frutas que ao apetite é doce, ao paladar amargo. Quando não mata o corpo, fere a alma.” E completava: “Fio, um corpo sem vida é mais razoável, que um corpo de alma ferida”.
Somo seres pluricelulares, pluripsíquicos, plurirelacionais: milhões de pensamentos, desejos, gestos e vontades misturam-se a milhares de atividades de nosso corpo sem nos darmos conta. Somos pluripotentes, o que estamos sendo neste instante é só uma possibilidade, numa determinada circunstância. Mas o que somos a cada instante na circunstância em que estamos está conectado a uma escolha, uma aposta anterior que eliminou todas as outras possibilidades. Só podemos intervir sobre o que poderemos vir a ser, possibilidade não é certeza é risco...
Como velha raposa, volto aos relatórios: 18h/aulas de Capoeira no campo A, 18h/aulas de Fotografia no campo B..., “nossas frutas ainda estão verdes”.


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