A
jornada não é das melhores! Passei a noite praticamente em claro, virando de um
lado para outro, levantando e andando pela casa, ligando e desligando a televisão.
Agora me vejo diante de um acumulo de relatórios para dar cabo, um idiota
tagarela que emenda um assunto em outro sem respirar, conciliando o resultado
de uma partida de futebol lá na França, as pregações de um certo pastor midiático,
as disputas eleitorais, a suposta vida
boa no Japão, que ele pensa ser na Europa, em uma só ideia: “o brasileiro não
presta”. Os idiotas tem essa característica falam pelos cotovelos, uma rajada
de sandices e querem estar certos. Tento não dar-lhe atenção e concentrar-me
nos relatórios.
Meu
corpo opera uma centena de funções que independem de minha vontade. O sangue
que corre por minhas veias, o coração que pulsa, a produção de glóbulos brancos,
a respiração, o fio de cabelo que se solta de minha cabeça, nada disso é uma
determinação minha, independe de minha intenção ou intervenção, acontecem,
simplesmente acontecem.
Há
também os automatismos psíquicos. Ideias, vontades, desejos, memórias, fantasias,
pensamentos de toda ordem, conexos e desconexos com a realidade, irrompem em
mim sem que eu os queira no instante em que irrompem. Essa fuga, por exemplo,
deste trabalho técnico, burocrático, maçante, que exige clareza e precisão, em
reminiscências de nosso primeiro encontro, um distante domingo de primavera,
durante um passeio ao Ibirapuera. Foi o Bacana quem me apresentou a ti: “Ele
tem este jeito de quem está “bolado”, mas é só tipo, é um cara legal”. Você riu.
Seu riso me salva da papelada.
Assim,
enquanto eu registro que a Casa está com 50 adolescentes e relaciono o número
de refeições e cada item de cada refeição numa planilha, ao relacionar que no
dia tal, no almoço, foi servido fruta, vem-me à mente as frutas de nosso pomar.
Elas estão amadurecendo.
As
fotografei em um banho de mar, elas atraem o olhar, despertam o apetite, já se
sente o paladar de suas carnes. Ainda correm ingênuas ou despreocupadas, saltam
graciosas as ondas do mar e constroem castelos de areia. Logo, logo estarão
maduras. O que era em seus corpos brotos despontando, já são peras bem
formadas...
O
falastrão não termina nunca de falar e vaticina: “Nós cidadãos de bem, temos
direito de nos defender!”
Somos
um jogo dos automatismos biológicos e psíquicos que tentamos manter sobre
controle com dietas, exercícios, disciplinas. Desenvolvemos regras, leis,
normas para o corpo e a mente, mas o coração funciona por funcionar, como o desejo
de um café apenas coado com bolinhos de chuva como vó fazia, aflora e basta. Poderia
controlar a vontade de pedir ao sujeito de calar a boca, poderia não dar-lhe
muita atenção, concentrando-me nos relatórios, divagando sobre nossos planos de
férias, poderia deixá-lo falando sozinho, ir ao banheiro, tragar um cigarro, mas:
“quanta idiotice!”, escapou-me da boca. Tivesse o cidadão de bem uma arma, todo
o automatismo que me rege cessaria. Restaram as ofensas e ameaças. Não posso
evitar que me venha ideias absurdas a seu respeito. Agora preciso de um
conhaque, não de um café.
Nós
podemos sustentar muitas coisas: valores, opiniões, fé, ilusões, descrenças. Eu
sei que não podemos impor, apenas expor, ao outros o que achamos certo ou
errado, e que devemos nos submeter às criticas e rejeições a nossos posicionamentos.
Algo, no entanto, precisa ser acordado: cordialidade, bom senso, respeito,
democraticidade são desejos comum. “Todo bom diálogo parte do que é comum para
voltar ao que é comum, estabelecendo as divergências.”
Volto
a pensar nas frutas de nosso pomar, conjecturando um provérbio de minha avó.
Dizia ela: “fio há frutas que ao apetite é doce, ao paladar amargo. Quando não
mata o corpo, fere a alma.” E completava: “Fio, um corpo sem vida é mais
razoável, que um corpo de alma ferida”.
Somo
seres pluricelulares, pluripsíquicos, plurirelacionais: milhões de pensamentos,
desejos, gestos e vontades misturam-se a milhares de atividades de nosso corpo
sem nos darmos conta. Somos pluripotentes, o que estamos sendo neste instante é
só uma possibilidade, numa determinada circunstância. Mas o que somos a cada
instante na circunstância em que estamos está conectado a uma escolha, uma
aposta anterior que eliminou todas as outras possibilidades. Só podemos
intervir sobre o que poderemos vir a ser, possibilidade não é certeza é
risco...
Como
velha raposa, volto aos relatórios: 18h/aulas de Capoeira no campo A, 18h/aulas
de Fotografia no campo B..., “nossas frutas ainda estão verdes”.