Para Maria Fernanda,
Laura, Victor e Tales
Já
quase chegando à pousada, notamos a casa verde da Rua Tangará. Chamei a atenção
das crianças, de minha companheira e sua mãe para seu aspecto arquitetônico que
destoava das demais edificações do local. A preocupação em chegar à pousada e
se desfazer das malas e do cansaço da longa viagem fez com que as crianças e as
mulheres desdenhassem minha observação. Uma
vez aliviados das bagagens e do cansaço, após um banho relaxante, uma refeição
restauradora e um merecido repouso, programamos nosso roteiro de exploração da
cidade indicando os pontos de interesses de uns e de outros. As crianças
queriam o mar, a companheira as trilhas, eu a cidade antiga. E foi na volta de
um de nossos passeios do dia seguinte que o um dos meninos notou: “só um cego
não perceberia que esta casa esta fora de lugar, ela não combina nada com as
casas locais, ficaria bem na cidade antiga”. “No entanto”, comentou uma das
meninas, ela está melhor conservada que as demais casas, algumas, aliás,
parecem abandonadas”. O que chamou-nos,
porém, mais atenção foi algo que na primeira noite, devido o cansaço da viagem,
não pudemos perceber: o latido de um cachorro misturando-se ao som lacônico de
um violino. Fazíamos relatos de nosso primeiro dia de excursão, havíamos feito
um passeio de escuna visitando algumas ilhas locais, as crianças puderam
mergulhar em uma praia paradisíaca, as mulheres caminharam se maravilharam com
a paisagem, eu aproveitei para fazer alguns ensaios fotográficos. Então conversávamos
animadamente, o mais novo cochilava, uma das meninas agarrou-se ao celular como
quem perdendo o ar agarra-se à máscara de oxigênio, quando os latidos e o som
de violino invadiu a noite e a acompanhou por longo tempo. Na manhã, enquanto tomávamos
café e organizávamos a jornada, faríamos uma trilha de pouco mais de três quilômetros
para encontrar uma praia paradisíaca, o senhorio nos cumprimentou,
desejando-nos uma boa jornada. Aproveitei para indagar-lhe sobre o som de
violino. “Ahh”, respondeu-nos, “vocês também ouviram o lamento do velho Eurípides!”
E narrou-nos a seguinte história. “Eurípedes é um antigo morador do Caboré,
nasceu aqui dizem os mais velhos. Morava na casa verde, vocês a devem ter
notado, vivia só com um cão guia. Era professor de música. Dizem que perdera a
visão durante uma sessão de tortura nos anos de chumbo, foi quando perdeu a
esposa e o filho que estava para nascer. Foram presos durante uma manifestação
de caiçaras. Ele foi encontrado nu, pintado de vermelho e cego. Da esposa, do
filho, nunca mais se soube. Desde aquela época ele costumava, nos fins de noite
tocar esta sonata. Dizem ser de um tal Stravinsky, e chamar-se Requiem Canticles. Mas eu digo costumava,
porque, há três ou quatro anos, vieram umas pessoas ai visitá-lo, diziam ter
noticias de sua esposa e do filho. Depois disto, não o vimos mais. O fato é
que, desde então, um ou outro turista, como vocês, relatam ouvir o cão guia e a
sonata, mas, desde que o levaram, a casa verde está vazia...” Observei ao
senhoril o mesmo que uma das meninas havia observado: “a casa parece-me melhor
conservada que as ao seu redor, que parecem, estas sim, abandonadas”. “Este é
outro mistério que envolve esta casa e o velho Eurípedes”, respondeu-me o
senhoril, desejando-nos novamente um bom passeio: “aproveitem o passeio, o dia
está formidável!”. Foi uma aventura por
dentro da serra, um percurso de três quilômetros, um caminho de mata fechada,
uma trilha íngreme e tortuosa, uma praia, um mar, recompensadores. Voltamos extenuados,
mas plenos. As crianças, mal comeram, tombaram. Eu também, deixando as mulheres
acompanhando o telejornal local, caí logo no sono. A certa altura, porém, os
latidos e os sons do violino de Eurípedes invadiram nosso aposento
despertando-me. Levantei-me, sem despertar a companheira, verifiquei as
crianças também em profundo sono, assim como a mãe de minha companheira, e decidi
ir ter com o velho professor. Deixei a pousada, era por volta de duas da manhã,
e dirigi-me à casa verde. Toquei a campainha, uma sombra aproximou-se da janela
e fez gesto para eu entrar. O portão destravou-se e a porta era já aberta.
Entrei... Ainda estou atônito: a ossada do cão guia ao lado do esqueleto do
músico segurando o violino em posição de quem o está tocando, ainda estão
impresso em minha retina. A polícia local abriu inquérito para saber as
circunstâncias e causa da morte do velho Eurípedes. “Pensávamos que ele havia
partido com os que vieram visitá-lo anos atrás”, comentou o senhoril da
pousada, quando acertamos a conta de nossa estadia.
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