quarta-feira, maio 30, 2018

O PADASTRO


Quando pai passou, veio o padrasto. Foi chegando aos poucos. Trazia flores pra mãe, doces para nós. Fazia pequenos reparos na casa. “A casa”, dizia, precisava de um homem. Mãe cedeu e ganhamos o padrasto. A lua de mel durou pouco. O sujeito passou a não ter hora para chegar, geralmente estava alcoolizado, descia o cacete em nós e em mãe. Um dia se engraçou pra cima da mais nova. Mãe se resignava, “a menina era levada e tinhosa, ele era homem”. Não demorou muito, engravidou a primogênita, que foi expulsa de casa. Vivia de bicos e da exploração de mãe que mantinha a casa como diarista. Para termos um pouco mais de dignidade, fomos vender balas e sorvetes em faróis e composições da Companhia Paulista de Trens. Mas tudo que ganhávamos, ia para suas mãos. A mais nova entrou na vida. A preferida de mãe associou-se a um grupo de delitos. “Esta família é uma vergonha, aonde vim amarrar meus burros”, dizia, enquanto nos extorquia e humilhava mãe. Um dia envolveu-se num negócio mal explicado, para não ser preso desapareceu. Enquanto ficou fora, fomos nos organizando, e íamos, aos poucos, nos ajustando. Seu fantasma, no entanto, sempre rondou-nos, e numa certa tarde, como se nada tivesse acontecido, ele se apresentou. Trouxe flores e uma cesta básica. Encontramos forças, nos apoiamos e não o permitimos ficar. De quando em quando, a caçula, que nasceu pouco antes de ele ser preso, defende sua volta. Segunda ela, com ele “éramos uma família”; que “precisamos de um homem na família, para sermos respeitadas e ter segurança”. E por mais que lhe mostremos as marcas em nosso corpo, e de nossa mãe, ela não acredita. O pouco que nós temos hoje, aos olhos da caçula, é devido a nosso padrasto. Mas ela pensa assim por influência da primogênita, que hoje, sabemos, mesmo expulsa de casa, não deixou de ser acolhida por ele, que lhe deu uma vida de ‘rainha’, extorquindo-nos; que o tempo em que ele esteve ‘fora’, era por ela sustentado...

sábado, maio 12, 2018

O ESTRANGEIRO


Terezinha estendeu a mão à cigana. Esta, entre dentes dourados, vaticinou: “terás oito filhos, o terceiro é melhor não tê-lo”. Terezinha, não entendendo o enigma, desdenhou e riu. A cigana, ofendida, emendou como praga lançando: “sete flores, um espinho, eis teu destino”. Terezinha deu-lhe uma moeda, seguiu seu caminho. O tempo passou, com ele as palavras da cigana fizeram-se destino. Terezinha teve oito filhos. Homens e mulheres em igual número os teve. O terceiro, ao contrário dos demais não nasceu. Tal qual exilado, foi ao mundo lançado. Como a todos os outros, Terezinha não fez caso acolheu-o em seus braços o acalantou e curou-o como as mães fazem. Deu-lhe de si, como dera-se a todos os outros. E os outros todos tornaram-se senhores de suas vidas: são reis e rainhas, flores de rara espécie. O terceiro claudica, e buscou nos livros a arte de produzir cordas. Confeccionou-se uma e nela se enrola, a amarra ao pêndulo do tempo. Ao extremo, armou um laço. Enfiou-se nele. O tempo rege a corda e o cadafalso. Oito filhos Terezinha tem, se o terceiro não lhe é espinho, no entanto é estrangeiro.

sexta-feira, maio 04, 2018

PRAIA DE INAÊ MIRIM


Lembro-me, quando criança, de tia contar a história de uma linda caiçara que se jogou ao mar durante os festejos de Iemanjá. Pouco se sabia da moçoila, que passou a aparecer para veranistas desavisados ou incrédulos em noites de festa em homenagem à Rainha do Mar. Criou-se então a versão que a batizou de Inaê Mirim, que era a história que tia contava.  “Não sei bem dizer como de fato as coisas aconteceram, nunca vi o mar, mas sua brisa, que o vento nos trás, assim me narrou... A menina tinha cabelos encarapinhados e a pele negra, negra, lábios vistosos e olhos amendoados perdidos no infinito mar, era formosa e atraia os olhares de todos.  Costumava tomar banho nas águas do mar toda manhãzinha, fizesse sol ou chuva, fosse verão ou inverno e, nuinha, nuinha, se estendia nas pedras e lá ficava aos olhos de pescadores e veranistas, sem dar-lhes atenção. Diz-se que uma certa manhã apaixonou-se por um veranista que também se banhava à mesma hora que ela. Os locais se aperceberam e ficaram despertado de ciúme. O fato é que o mancebo, alguns dizem, deu-se sumiço, outros, fora sumido, sumiu sem deixar nome ou endereço. Caiu tristeza profunda sobre a pobre caiçara, que deu-se ao mar e à Janaina, para desconsolo de todos. É desta feita que Inaê Mirim, aparece aos veranistas e os carrega com ela, quando estes não observam as placas que proíbem o banho de veranistas antes das 9h.”  Toda vez que vou ao mar, recordo desta história contada por tia, e, com tal recordo, o ambiente se perfuma de bolinho de chuva, pipoca, fogo de fogueira, que me vejo em seu quintal e não na praia. Estou aqui selecionando algumas fotos que fiz para o próximo numero da revista em que trabalho. Pediram-me fotos de praias ao amanhecer. Passei os últimos dois meses visitando algumas praias indicadas por minha editora. Agora, selecionando-as, caiu-me às mãos esta: uma jovem negra, de beleza escultural acena-me de dentro o mar. Não lembro-me ter tirado tal foto. Em seu verso, se lê:  “Praia de Inaê Mirim, 19 de maio de 1968”. Nunca ouvi falar de tal praia, mas, o que mais me espanta é a data: refere-se é ao aniversário de passamento de tia.