sexta-feira, novembro 24, 2017

UM DIA EU E O MAR HAVEREMOS SERMOS UM



Flor de meu ser,


Há tempo, muito tempo, que eu estou longe de casa. Passo por uma rapaziada demasiado desalentada, desorientada, assumindo bandeiras que as aprisionam enganando-as com promessas de liberdade. Passo a diante e não acompanho o ódio em seus discursos. Sento em um banco de praça. O mar murmura sedutor sob um céu, ornado de estrelas e de uma tranqüilidade indiferente. Se você estive comigo, estaríamos localizando a carruagem de Odin ou falando de Calisto, Arcas, Zeus... As poucas pessoas com quem me relaciono me pedem que eu seja mais otimista. Dizem que “o pessimismo é um luxo de quem tem dinheiro”.  Não seria o meu caso. “Nada melhor que um dia após o outro”, o “tempo cura todas as feridas”. Retruco-lhes com certa arrogância “os dias se sucedem sem que nossos sonhos se realizem. É sempre uma frustração que nos arremata o dia. E “não há ferida que não deixe cicatriz e a dor desta é mais profunda que a da ferida. ” Mas eu não tenho feridas, e não carrego cicatrizes. Minha angustia esta estampada todas as manhãs nas primeiras paginas dos jornais.  Na televisão todo mundo quer ser outra pessoa e as pessoas vivem recordando um passado que não existiu. Tudo é sempre desejo e o desejo não se sacia. A realidade é apenas loucura e contradição.  Mas como diz o menestrel: “Eu não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais...” A vida não tem uma vontade para mim. Eu não tenho o que lhe propor. Ficamos neste empate. A noite avança, um pescador entoa endechas soturnas (me permitas o pleonasmo) enquanto se prepara para enfrentar o mar. É nessas horas em que “não é noite, não é dia; não é dilúculo, não é crepúsculo” que conjecturo, por própria iniciativa, não mais ser. Sinto o aclamo do mar para que eu seja um com ele. Abraçado ao mar é a forma mais digna de não ser. Se você estivesse aqui, tomaríamos vinho e banho de mar e contemplaríamos o sol, seus primeiros raios, abençoando o Cristo Redentor indiferente a mais uma noite de assombros, descalabros, silentes sofrimentos nos morros e favelas. Para quem este Cristo abre os braços? Talvez viesse-lhe aos lábios, em murmúrios como do mar: “Estranho o teu Cristo, Rio/ Que olha tão longe, além/ Com os braços sempre abertos/ Mas sem proteger ninguém...”. O dia ainda ensaia sua jornada, crianças, pés descalços, já despontam nos faróis. De todas as loucuras é a que mais me incomoda, aflige, desnorteia... Um dia eu e o mar haveremos sermos um. 

domingo, novembro 12, 2017

A DEMÉTRIO MAGNOLI

Sr. Demétrio Magnoli,
Com a devida licença, me permito uma outra leitura do caso Waak, a partir de seu texto. Antes de tudo: Não se tinha notícia de uma manifestação política racista ou um gesto de injúria racial do jornalista. Agora, independente de sua vontade, se tem. E é constrangedor! Repisá-lo, de fato, não nos purifica, mas deveria nos ensinar algo. “Homens públicos, mesmo sós, são públicos!”
Depois, a uma criança, a um adolescente, a um tresloucado, relevamos certos comportamentos, certas expressões. Achamos mesmo graça devido a ingenuidade, imaturidade ou insanidade, em coisas que fazem ou dizem. Mas, a uma altura da vida, nem em pensamento deveríamos nos permitir determinadas especulações, fantasias, desejos, muito menos certas expressões, mesmo que “gracejos idiotas”. Minha avó sempre nos ensinou: “Modere a língua em casa, para não falar demais na rua”. Se Waak, traquejado que é do mundo em que vive, da profissão que exerce, do que representa com o papel que assume, ciente de que pontos e vírgulas fora de lugar destorcem fatos e noticiais, e arruínam carreiras, se ele considerasse o simples princípio de minha avó, talvez não fosse vítima, antes de si mesmo, depois do contemporâneo minotauro a que fazes alusão. És certo, as utopias totalitárias que o senhor apontou não produziram o “homem novo” que se esperava. No entanto, o homem que temos produzido, cultivado com “discursos políticos odientos”, encontra em tipos como Waak, que seguem a pedagogia social do neoliberalismo, que insiste na disputa entre indivíduos e não na solidariedade, seus mais estimados gurus. Para Waak, para deleite de nosso minotauro, o leite já derramou. Para nós, porém, homens públicos e educadores, fica, a partir do ocorrido, um antigo ensinamento não muito diferente do que dizia minha avó: “Estando só, vigia teus pensamentos, pois estes se convertem em palavras. Em sociedade, vigie tua língua; pois nos julgam não pelo que somos; mas por nossas palavras”.

Com desejos de uma boa semana,

Claudio Domingos Fernandes

sábado, novembro 11, 2017

OS TABULAS RASAS



O povo não é hegemônico. E há uma camada de nosso povo, diminuta, ciosa de sua bem formada ignorância. Digo isto, porque não são pessoas sem formação, pelo contrário, geralmente freqüentaram os melhores colégios, as melhores universidades. Algumas carregam imponentes títulos acadêmicos. Não obstante são tábuas rasas: nada sabem de seu país, de seus personagens, os que se projetaram e inscreveram seus nomes à história da nação e para além de nossas fronteiras. Tudo o que é da terra desdenham ou desconhecem. Conservam um orgulho fidalgo. Afagam a vã ilusão de serem herdeiros de alguma nobreza européia. È um tipo comumente presente em nossa literatura. Nelson Rodrigues e Lima Barreto o descreve com sutilezas. Como disse, são pessoas bem formadas, mas tabulas rasas. Sempre fizeram dos estudos motivo para se distinguirem socialmente, não para, de fato, conhecer e produzir conhecimento e tornarem-se sabedores de algo. Contentam-se em papagaiar ditos formadores de opinião – em geral, colunistas de jornais e revistas de grande circulação, que se dizem independentes em suas opiniões, mas, na verdade, se submetem a escrever o que seus patrões lhes impõem –. Outro dia, ouvi um distinto representante da categoria afirmar com a arrogância de um livre docente: “eu há bem quinze anos não sei o que é ler um livro, folheio vez ou outra uma ou outra revista, corro os olhos pelo noticiário, sigo um ou outro comentarista de política ou economia, e me dou por satisfeito. Depois, o brasileiro não produz nada que valha pena. Somos péssimos escritores...” Até recentemente o grosso desta categoria se sentia bem, alheando-se à política. Com os olhos voltados para a América do Norte ou sonhando uma vida cômoda no velho continente, contentavam-se a comparecer às urnas. A breve ascensão de uma fatia das camadas populares incomodou seguimentos importantes da sociedade e esta camada de bem formados tabulas rasas foram envolvidos em sua insatisfação. Sem perceberem nossos doutos boçais se viram a manifestar, com resultados desoladores. Daí que temos assistido nos últimos meses, após terem se envolvido no engodo-golpe que colocou à direção do país uma quadrilha de estelionatários, suas equivocadas manifestações contra atividades e exposições artísticas e contra artistas, cientistas e intelectuais da pátria e de além fronteira. Não fosse o discurso de ódio que acompanha suas manifestações, diria são dignos de pena. No entanto, assentados em interpretações equivocadas da sagrada escritura, referendadas por pastores e padres de intenções duvidosas e seguindo grupos com nítidos interesses políticos e econômicos, que manipulam informações, distorcem fatos e inventam supostas conspirações, nossos camaradas de tão especifica camada, embora acreditem estarem defendendo valores democráticos além da família tradicional, acabam por sustentar o joguete das elites políticas e econômicas que vilipendiam o país e o entrega à especulação financeira. Repito, não fosse o discurso de ódio que sustentam, seriam dignos de pena. Nossos doutos-boçais deixam a literatura para se tornarem nossa maior preocupação política, se tornaram a base de sustentação de ideários faci-totalitários.

sexta-feira, novembro 03, 2017

EU NÃO SOU NEGRO


Lincharam um homem
Entre os arranha-céus,
(Li no jornal)
Procurei o crime do homem
O crime não estava no homem
Estava na cor da sua epiderme

Solano Trindade, Civilização branca, nova Alexandria: 2007

Dia destes, meu filho chegou triste da escola. Não quis comer, desinteressou-se do cachorro, exilou-se acabrunhado, silente, em seu quarto. Algo incomum num menino vivaz, espontâneo, falante. Procurei saber o que se passava: “Nada, quero ficar sozinho”. Deixei-o na dele, precisava ocupar-me de uns relatórios, revisar um artigo. Um pouco antes do café da tarde, ele se acostou a mim e ficou me observando terminar minha revisão. Perguntei-lhe: “Tudo bem? O que houve?” Não obtive resposta. “Deve ter balas ali na minha mala” apontei-lhe a mala acostada a uma estante. Pediu-me colo. “O que é nefando? E lúgubre?”, perguntou-me com voz chorosa, olhar apagado. “Lúgubre se diz de uma pessoa triste, de uma situação triste. Nefando é algo indigno de nomear, é algo do qual não se fala, porque é algo muito vergonhoso.” “Não quero ser negro!” falou-me com voz magoada. “E porque? O que tem de errado ser negro?”, perguntei-lhe estupefato. “A professora disse..., pediu pra gente pesquisar no dicionário. E o dicionário diz que negro é sujo, encardido, lúgubre, nefando. Eu não sou sujo. Eu não quero ser negro...: não quero ser negro!” “Querido”, disse-lhe, “você tem razão, nessas acepções nós não somos negros e os dicionaristas deveriam rever-se.” Expliquei-lhe que, talvez a professora não tenha alcançado seu objetivo, e procurei esclarecer-lhe que negro não era uma condição, mas uma posição ante a vida e que a cor de nossa pele não nos determina. [...]. Dormiu em meu colo. Enquanto me preparava um café, fiquei elucubrando o tema, que me levou a produzir o que segue

***
“(…) O que os racistas têm que fazer é tratar de encontrar em seus próprios corações em primeiro lugar porque foi necessário ter um negro, porque eu não sou um negro eu sou um homem (…) Se eu não sou o negro aqui, e vocês o inventaram, vocês os racistas tem que descobrir por que. E o futuro deste pais depende disso, se você é capaz ou não de fazer essa pergunta”. James Baldwin, 1963.

Nós somos humanos. Entre humanos não há raças. Há diferenças de gênero, sociais, econômicas, culturais, há desigualdades de oportunidades, de acesso aos bens produzidos, aos recursos naturais, ao uso da terra,ao conhecimento. Desde sua origem, os humanos espalham-se por todo planeta, ajustando-se a diversificados relevos geográficos e variadas temperaturas e intempéries climáticas. Algumas bastante inóspitas. As tonalidades de pele dos humanos são características de sua adaptação a essas diferenças geográficas e climáticas, e à miscigenação. De tal modo a tonalidade de pele dos humanos varia em uma escala de matizes consideráveis. Mas seja o sujeito de pele mais clara possível, seja o de pele mais escura possível, pertencem a uma e mesma espécie. E a espécie humana não se divide em raças.
A divisão dos homens em raças é uma invenção covarde, maliciosa e, ela sim, nefanda, de homens sem escrúpulos, gananciosos, orgulhosos de suas barbáries. Homens guiados pela cobiça, pela torpeza, cegados pelo desejo de tudo possuir. Procuraram na invenção das raças uma justificativa às suas ignomínias.
Os dicionaristas deveriam rever o verbete Negro. Na verdade deveriam aboli-lo, pois o negro, como condição, não existe.
O racismo existe e o combato. Ele é responsável pelo extermínio dos povos nativos, ontem e hoje. Pelo ingente tráfico de homens e mulheres do continente africano, aqui tornados escravos. O racismo está presente na persistente negação à terra aos nativos e quilombolas, no extermínio sistemático destes povos e de jovens de nossas periferias, na indisfarçada insatisfação de setores da sociedade com o ingresso de nossos filhos da nas universidades públicas. Na história recente da humanidade não podemos esquecer Auschwitz, sua face mais nefanda.
O racismo existe! O negro não! O negro, como raça, é uma invenção, Na citação de James Baldwin eu usei racista, no lugar de branco do texto original. É preciso considerar que nem todo homem branco é racista e que o racismo não é uma peculiaridade de homens brancos. Também o branco é uma invenção. A raça não existe, existe o racismo. A cor de minha pele não me define, a raça só existe como disposição a lutar contra toda forma de ódio e contra toda tirania.
Neste sentido, sem ser religioso, talvez se possa dizer, que ter raça é ser instrumento de paz e levar amor onde há ódio..., esperança onde há desespero, alegria onde há tristeza, luz onde há trevas, liberdade onde há opressão, dignidade onde há humilhação, partilha onde há fome e exploração...
O que segue escrevo para meu filho que tem razão: nós não somos negros, mas temos raça.

MENINO NÃO CHORE A COR DE TUA PELE

Menino não chore a cor de tua pele, não chore teus cabelos, o odor de teu suor. Não chore a ignorância dos que odeiam a si mesmos antes de odiarem a ti.
Brinca, menino, com teus sonhos. Faz do vento teu companheiro, da tarde caindo, uma canção. Corre ao lombo de um cavalo, banhe-se nas águas do rio, converse com os pássaros e os chame: irmãos. Cultive, menino, a paz.
Raça, menino, não é uma condição. É postura firme, corajosa contra a opressão. É luta de quem luta contra o ódio de quem primeiro se odeia e destila-se contra uma nação.
Menino não chore a cor de tua pele. Ela é tua proteção. Não desdenhe os que, por pura mediocridade e hipocrisia, destilam desinformações, cativam os ignorantes e os que desejam poder e riqueza, e alimentam ódio em seus corações. Não os desdenhe, repito, menino. Mas, dê conta dos que te amam e te ensinam a amar como escolha e responsabilidade, como solidariedade...
Dê conta dos que te amam, menino, e brinque com a esperança; arranque-a de teus livros. Não és a cor de tua pele e se tens raça é coragem, é bandeira que se impunha contra a dor, a fome, a humilhação. Tem raça quem se impõem contra a opressão.
Não chore a cor de tua pele menino, não chore teu cabelo, o odor de teu suor. Não tenha vergonha do que não és. Brinca, que é tempo de tua infância. Corre com o rio ou livre no lombo de um cavalo, suba em árvores, converse com pássaros, cante às flores e imagine em cada nuvem povos que se abraçam e dividem o pão. Lembre de teus ancestrais, de seus grilhões, da expropriação de seus sonhos, seus desejos e paixões; da luta que travaram, e mesmo sem condição de vencer a vilania, da resistência que impuseram. Raça é fazer memória e resistir; não é uma condição, é uma postura contra o extermínio de nossos jovens em terras quilombolas, nas reservas nativas e nas periferias de nossos centros urbanos.
Não é a cor de tua pele que te faz homem menino. É amar a vida, a liberdade, uma só humanidade. E raça é disposição a lutar contra toda tirania, contra a insensatez dos que expropriam, dos que traficam vida, negam direitos, produzem fome e sofrimento e executam homens e mulheres por ambição.

Tenhas raça menino contra toda opressão. Mas agora brinca, brinca e sonha, e veja nas estrelas ao redor da lua homens partilhando o pão. Não és tua cor menino: és esperança em nosso coração.