segunda-feira, outubro 30, 2017

NÃO SOU APENAS MINHA PELE


Negro, eu nego
as acepções de teu vocabulário
E de tua torpe teoria,
de minha inferioridade,
me liberto
Nefanda é tua desmedida cobiça
Sujas são tuas mãos, não minha pele
Elas se impregnam do sangue
de homens e mulheres
filhos destas terras,
 e da distante África,
 de meus ancestrais
Eu não tenho porque envergonhar-me
de mim, da cor de minha pele,
de meus cabelos pixaim
Negro, eu nego
as acepções de teu vocabulário
E de tua torpe teoria
Sou desejo, sou vontade, sou paixão
Lúgubre é teu coração
não meu canto:
celebração, resistência, afirmação
Negro,
não sou minha pele,

sou uma nação.

sábado, outubro 28, 2017

MENOS PAULO FREIRE, MAIS BOLSONARO

Em uma diáfana manhã parnasiana de um azul de soneto deparei-me com Nelson Rodrigues. Tomamos juntos o trem para a Capital. Sujeito de prosa boa esse Nelson. Tornou a viagem, geralmente um perrengue, menos incomoda. O tempo passou e não percebemos.  Não obstante torcedor do Fluminense, Nelson é um futebolista genial. Ufanista de nosso escrete canarinho, admirador confesso de Garrincha e Pelé, Nelson se mostra um profundo conhecedor de nosso estofo. Embora lamente, vez ou outra, nosso “complexo de vira-lata”, ele acredita no brasileiro e afirma: “o brasileiro é uma nova experiência humana. O homem brasileiro entra na história com um elemento inédito, revolucionário e criador: a molecagem.” À medida que o trem avança, e os espaços vão sendo disputados, a cada nova estação, vou me deixando convencer que suas crônicas são “um dado fundamental para sociólogos, historiadores e políticos” e que “este país é uma descoberta contínua e deslumbrante”. Estamos quase chegando a nosso destino, quando ele me diz: “nossa resenha ensina mais sobre o país do que Os sertões, no princípio do século. Fazia referimento à clássica obra, de Euclides da Cunha. A viagem chega a seu destino, espanta-me não perceber o tempo passar. Tenho que despedir-me de Nelson e entregar-me ao dinamismo dos negócios humanos e seu tédio cotidiano.
Passo a jornada produzindo relatórios que serão assinados e engavetados sem serem lidos, tomando café, consultando o relógio, tentando certa sociabilidade, participando de um ou outro debate de natureza inútil. Alieno-me. Retomo e rumino fragmentos do agradável encontro com Nelson. Não precisa muito, o próprio Nelson está ao meu lado...,
O brasileiro não é um tipo único. Em Nelson, dois modelos se destacam: o “pau de arara”, o “subdesenvolvido”. “O pau de arara é um tipo social, humano, econômico, psicológico...” “Vamos imaginar”, diz-me Nelson, tentando ilustrar-me seu “pau de arara”, “Vamos imaginar esse pau de arara na beira da estrada. Que faz ele? Lambe uma rapadura. E além de lamber a rapadura? Raspa, com infinito deleite, a sua sarna bíblica... Não basta ao miserável a sarna, nem a rapadura. Ainda acrescentam a humildade.” E tem mais: “o sujeito é roubado, ofendido, humilhado e não se reconhece nem o direito de ser vítima.” O “subdesenvolvido” é o “brasileiro que não gosta de brasileiro”, um Narciso às avessas”, “vai ao estrangeiro e, em vez de conquistá-lo, ele se entrega e se declara colônia” (veio-me em mente um certo nosso deputado em recente viagem aos EUA). O “subdesenvolvido” tem vergonha de sua condição nacional,  cospe na própria imagem, desdenha o que produzimos, gostaria de ser um Lord inglês. Negam nossa história, negam nossos tímidos avanços, nossas poucas conquistas, nossos poucos homens e mulheres que se destacam na arte, na cultura, no esporte. Desdenham nossas potencialidades, vendem impotência e frustração. O subdesenvolvido de Nelson, são os “entendidos” que não têm um mínimo de isenção, de objetividade, de apreço aos fatos. Ressentidos com os fatos, os “entendidos” parecem dizer: “se os fatos não confirmam o que escrevo, pior para os fatos”. Os “subdesenvolvidos” de Nelson limitam-se a vender depressão, demonstram pouco apreço a nosso povo. Sonham com uma sociedade restrita. Nela não há “um único e escasso preto. E nem operário, nem favelado, e nem torcedor do Flamengo...” (ou do Corinthians, ou do Bahia). No Brasil dos subdesenvolvidos não cabem “paus de arara”, só há lugar para “os filhos da grande burguesia, os pais da grande burguesia, as mães da grande burguesia. Portanto, as elites”.     
Quando deixo a repartição, a tarde declina anunciando uma noite parnaziana, com um luar de soneto. Decido caminhar pela cidade contemplando figuras de Portinari, assumindo as marquises, revirando lixos, homens-bichos, dos versos de Bandeira. , me perguntando: não obstante seu realismo, nos é possível, como em certas passagens de Nelson Rodrigues, acreditar no brasileiro e deixar de ser esse embate de subdesenvolvidos e paus de arara?

Chego em casa, desfaço-me da bolsa, do paletó, desato o nó da gravata. Descanso Nelson Rodrigues entre Borges e Murilo Rubião. Ligo a televisão, passo o canais entediado. Em uma estação qualquer, um subdesenvolvido, um lorpa, rosna: “menos Paulo Freire, mais Bolsonaro”. E o pascácio continua: “menos diálogo, menos amorosidade, menos confiança no ser humano, menos esperança... Menos negros, menos homossexuais, menos direitos”. Como diria Nelson: é um “quadrúpede de 28 patas!”. Para evitar a insônia ou a hipótese de um pesadelo, tomo os remédios. Durmo, não hei de sonhar... 

domingo, outubro 01, 2017

MOURA TORTA

Tínhamos medo da “Moura Torta”. Seus cabelos desgrenhados, os olhos esbugalhados, apagados de sentido, a ausência de dentes no sorriso melancólico. Arrastava a perna esquerda, caminhava maltrapilha, catando bitucas de cigarro e mendigando. Era tia que nos colocava medo: “Arruma esse cabelo menino! Moura Torta vem te catar piolho”. E tia nos contava a história da Moura Torta. Celesthina Álvares, era seu nome de batismo. Filha do coronel Sebastião Salgado, cresceu formosa e gentil. Veio certa vez da cidade um reporte de jornal importante fazer matéria sobre uma certa galinha que andava de fasto e se achava galo. “Tanta coisa que se deve acontecer, lá na capital, e esse aqui, querendo saber de galinhas”, comentavam na venda de seu Quinzinho. Era moço educado, bom de prosa que, com paciência explicava: “Na capital não se pode publicar de tudo. Tem censura”. Dizia o moço, bebericando com os homens de Coronel, que na capital “homens e mulheres sumiam ou eram presos sem muitas explicações”. Contava de um que fora preso em uma mesa de bar por discordar de um certo tenente sobre criação de galos de rinha. “O tenente impôs sua razão, com voz de prisão”. Na capital, “tinha-se que tomar cuidado com que se dizia e, principalmente, se escrevia”, completava a conversa. Foram se ver, o moço e Celesthina, para despertar entre eles o mais fervoroso sentimento, para desconforto de coronel Sebastião Salgado e descontentamento de um certo Julio Batista, preterido por Celestina. Como o moço apareceu, desapareceu. Diziam uns que fora coronel, outros que fora o tal Batista, outros, a boca miúda, diziam que tinham sido homens da capital. Tínhamos medo da “Moura Torta”, de suas convulsões, seus arribar as vestes, mostrando-nos suas intimidades. Celesthina perdera a criança no trabalho de parto, entristeceu-se até a loucura, e quando a mãe morreu, abandonada à sorte e à caridade alheia. Tínhamos medo da “Moura Torta”, de Celesthina, com tia, aprendemos a ter piedade. Todos esconjuravam Celesthina, tia a acolhia, dava-lhe banho, trocava-lhe as roupas, penteava-lhe os cabelos. Celesthina sorria, sua falta de dentes, olhando-se no espelho. O sorriso de Celesthina eu jamais temera.          

SOBRE COISAS ÓBVIAS

“os homens em absoluto não são naturalmente inimigos. É a relação entre as coisas e não a relação entre os homens que gera a guerra...” J.J. Rousseau

Meus poucos leitores sabem de meu amigo Leopoldo, um fantasma de família, que diz ter sido mordomo na corte de D. Pedro II, e que tem o prazer de me sacanear, aparecendo-me nos momentos mais impróprios. Por estes dias tive o grato desprazer de sua visita. Leopoldo portava com sigo um exemplar Du Contrat social, de Rousseau, do ano de sua primeira publicação. Apresentou-me também um manuscrito que ele jura ser do genebrino, que, a época, não ousou colocar em circulação. Duvido que tal manuscrito seja de fato do mestre de Emílio. Não obstante, coloco tal manuscrito a disposição de meus poucos leitores, alertando-os que a tradução é de meu importuno, mas estimado, amigo Leopoldo, um sujeito nada confiável.
     
“[...] “A loucura não cria direito”. Isto é uma constatação óbvia, como é obvio que “a desigualdade social gera conflitos sociais”. Dizer obviedades é uma forma de filosofar sobre problemas graves. Diz-se o óbvio para que se trate de coisas que nos cercam e de nós mesmos. Por muito obvia que pareça uma assertiva, ela mascara a realidade. Dizer o óbvio atrai o olhar e desperta o pensamento, a capacidade de se compreender e compreender a realidade. Se vamos aceitar ou não nossa compreensão é uma outra história. O fato é que dizer o óbvio não é só uma estratégia filosófica, é um risco que se corre. Dizer o óbvio: “fazeis de minha casa em um covil de ladrões”, por exemplo, pode condenar-te à morte.
Então, é óbvio que a carência material incide consideravelmente sobre o desenvolvimento intelectual e moral dos indivíduos. É óbvio que onde falta o alimento, abunda a indolência, mãe de todo crime.
[...] É óbvio que é da desproporção da distribuição dos recursos, dos serviços e bens produzidos a causa dos conflitos sociais. Onde uns abundam no desfrute e no gozo dos desejos, e outros apenas nas satisfações das necessidades, não pode haver paz e tranqüilidade.
[...] é óbvio, mas há resistência em se aceitar, que a penalização cada vez mais severa dos carecidos dos bens produzidos para proteger o gozo escandaloso dos opulentos, não apagazigua a realidade social. Penalizar o expropriado é combater fogo com combustível... “
Todo acumulo, todo excesso é expropriação, é roubo. O mérito divino, de sangue, convencionado, todo mérito, em suma, favorece a desigualdade e a injustiça; é mola da corrupção...
[...] só há crime do bem estante, do opulento, do esbanjador. Só há crime do que expropria e goza sobre a carência, a indigência vil... A violência do homem sem recursos é resistência, luta de sobrevivência. Só há crime em quem expropria indiferente, sem indulgência. “Quem come dois pães, come o pão de alguém. Por isso dorme de olhos abertos”. Toda violência, todo conflito é fruto na desigualdade, na desproporção na distribuição dos bens produzidos. Não há pena que reduza a violência. Não é aprisionando o faminto que se produzirá a paz entre os homens. Apenas partilhando o pão se promove a paz.

[...] Todo acumulo é roubo. O roubo do expropriado leva-o a roubar, seu ato é resistência, sobrevivência, o crime esta antes, contra ele...