Em uma
diáfana manhã parnasiana de um azul de soneto deparei-me com Nelson Rodrigues. Tomamos
juntos o trem para a Capital. Sujeito de prosa boa esse Nelson. Tornou a
viagem, geralmente um perrengue, menos incomoda. O tempo passou e não
percebemos. Não obstante torcedor do
Fluminense, Nelson é um futebolista genial. Ufanista de nosso escrete
canarinho, admirador confesso de Garrincha e Pelé, Nelson se mostra um profundo
conhecedor de nosso estofo. Embora lamente, vez ou outra, nosso “complexo de
vira-lata”, ele acredita no brasileiro e afirma: “o brasileiro é uma nova
experiência humana. O homem brasileiro entra na história com um elemento
inédito, revolucionário e criador: a molecagem.” À medida que o trem avança, e
os espaços vão sendo disputados, a cada nova estação, vou me deixando convencer
que suas crônicas são “um dado fundamental para sociólogos, historiadores e
políticos” e que “este país é uma descoberta contínua e deslumbrante”. Estamos
quase chegando a nosso destino, quando ele me diz: “nossa resenha ensina mais
sobre o país do que Os sertões, no
princípio do século. Fazia referimento à clássica obra, de Euclides da Cunha. A
viagem chega a seu destino, espanta-me não perceber o tempo passar. Tenho que
despedir-me de Nelson e entregar-me ao dinamismo dos negócios humanos e seu tédio
cotidiano.
Passo
a jornada produzindo relatórios que serão assinados e engavetados sem serem lidos,
tomando café, consultando o relógio, tentando certa sociabilidade, participando
de um ou outro debate de natureza inútil. Alieno-me. Retomo e rumino fragmentos
do agradável encontro com Nelson. Não precisa muito, o próprio Nelson está ao
meu lado...,
O
brasileiro não é um tipo único. Em Nelson, dois modelos se destacam: o “pau de
arara”, o “subdesenvolvido”. “O pau de arara é um tipo social, humano,
econômico, psicológico...” “Vamos imaginar”, diz-me Nelson, tentando ilustrar-me
seu “pau de arara”, “Vamos imaginar esse pau de arara na beira da estrada. Que
faz ele? Lambe uma rapadura. E além de lamber a rapadura? Raspa, com infinito
deleite, a sua sarna bíblica... Não basta ao miserável a sarna, nem a rapadura.
Ainda acrescentam a humildade.” E tem mais: “o sujeito é roubado, ofendido,
humilhado e não se reconhece nem o direito de ser vítima.” O “subdesenvolvido”
é o “brasileiro que não gosta de brasileiro”, um Narciso às avessas”, “vai ao
estrangeiro e, em vez de conquistá-lo, ele se entrega e se declara colônia” (veio-me
em mente um certo nosso deputado em recente viagem aos EUA). O “subdesenvolvido”
tem vergonha de sua condição nacional, cospe na própria imagem, desdenha o que
produzimos, gostaria de ser um Lord inglês. Negam nossa história, negam nossos
tímidos avanços, nossas poucas conquistas, nossos poucos homens e mulheres que
se destacam na arte, na cultura, no esporte. Desdenham nossas potencialidades,
vendem impotência e frustração. O subdesenvolvido de Nelson, são os “entendidos”
que não têm um mínimo de isenção, de objetividade, de apreço aos fatos. Ressentidos
com os fatos, os “entendidos” parecem dizer: “se os fatos não confirmam o que
escrevo, pior para os fatos”. Os “subdesenvolvidos” de Nelson limitam-se a
vender depressão, demonstram pouco apreço a nosso povo. Sonham com uma
sociedade restrita. Nela não há “um único e escasso preto. E nem operário, nem
favelado, e nem torcedor do Flamengo...” (ou do Corinthians, ou do Bahia). No Brasil
dos subdesenvolvidos não cabem “paus de arara”, só há lugar para “os filhos da
grande burguesia, os pais da grande burguesia, as mães da grande burguesia. Portanto,
as elites”.
Quando
deixo a repartição, a tarde declina anunciando uma noite parnaziana, com um
luar de soneto. Decido caminhar pela cidade contemplando figuras de Portinari,
assumindo as marquises, revirando lixos, homens-bichos, dos versos de Bandeira.
, me perguntando: não obstante seu realismo, nos é possível, como em certas
passagens de Nelson Rodrigues, acreditar no brasileiro e deixar de ser esse
embate de subdesenvolvidos e paus de arara?
Chego
em casa, desfaço-me da bolsa, do paletó, desato o nó da gravata. Descanso Nelson
Rodrigues entre Borges e Murilo Rubião. Ligo a televisão, passo o canais entediado.
Em uma estação qualquer, um subdesenvolvido, um lorpa, rosna: “menos Paulo
Freire, mais Bolsonaro”. E o pascácio continua: “menos diálogo, menos
amorosidade, menos confiança no ser humano, menos esperança... Menos negros,
menos homossexuais, menos direitos”. Como diria Nelson: é um “quadrúpede de 28
patas!”. Para evitar a insônia ou a hipótese de um pesadelo, tomo os remédios. Durmo,
não hei de sonhar...