segunda-feira, abril 29, 2024

MARCO SENNA

 

Que é, pois o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pede, não sei. Agostinho de Hipona


O que diz Agostinho de Hipona acerca do tempo, se pode dizer da amizade. Se ninguém me pergunta, sou capaz de produzir um tratado. Se me questionam, no entanto, faltam-me palavras. Então, recorro a Cícero que dizia preferir um amigo a todos os bens da terra, ou a Aristóteles que ensinava: “a verdadeira amizade se dá onde não há outro interesse que o bem do amigo.” E o bom amigo, segundo Aristóteles, é uma pessoa ética, justa, cortês e coerente em suas condutas. Estas qualidades não faltam ao meu amigo. E, aquilo que na tradição cristã chamamos anjo protetor, é, em nosso dia a dia, a presença de um amigo. Mas com palavras que não preenchem todo o sentido de uma amizade: ter um amigo é ter um dom imerecido. E eu recebi esta graça. Meu amigo é de uma humanidade que poucos atingem. Ele é como um bom vinho: fica melhor com o passar do tempo.


sábado, abril 27, 2024

CAPITÃES DO MATO

 



Em Bananópolis não se fala de outra coisa: Tio Paulo e o Playboy do Porsche. E na lanchonete próxima ao Centro de Estudos Sociais o assunto está na mesa.  Ataíde Leonel, aluno do 3º semestre do curso de Ciências do Comportamento Social, entre um pedido e outro, acompanha as conjecturas do grupo de professores da mesa 10.   Um lembra Machado de Assis que dizia de dois brasis: “um oficial, outro real”. Um outro corrobora a ideia, citando Euclides da Cunha. Um terceiro especula: “Tio Paulo e Playboy do Porsche ilustram estes brasis”, e emenda: “De um lado, um Brasil explorado por uma casta econômica, resquício do escravismo, concentradora de nossas riquezas, que submete a política a seus interesses. Uma elite inculta, mas esnobe. Do outro, brasileiros pobres, que vivem em condições precárias, sendo explorados e tratados como gentalha.” No ir e vir de uma mesa a outra, Ataíde Leonel, vai pescando o possível daquilo que os doutores comentam. “Garçom!”, alguém grita: “Traz mais uma e coloca na conta do Tio Paulo!” Risos tomam conta do ambiente. “Já Joaquim Nabuco dizia”, toma a palavra uma professora, “que a escravidão permaneceria por muito tempo uma característica do Brasil, pois nos é transmitida no leite materno.” Ataíde pensou pedir a palavra, mas engoliu o que tinha a dizer: “quem era ele, diante dos ilustres acadêmicos?” Depois, alguém o exigia na mesa 6. “No Brasil toda riqueza é fruto de roubo e quanto mais sangue um tem nas mãos, mais nobre pretende ser”, ensaia um dos acadêmicos.  A noite avança, e o debate na mesa 10, regado a cervejas e porções de fritas e torresmos, desfila teses e teóricos de nossas “estruturas escravagistas”.  Servindo uma mesa aqui, outra ali, Ataíde pesca o que pode das etílicas elucubrações acadêmicas e formula para si mesmo as suas, anotando o que consegue no verso de uma comanda. “Chegando em casa as sistematizo”, pensava consigo. Um chiste de uma professora principia uma confusão entre os acadêmicos da mesa 10 e dois clientes da mesa 8. O rapaz da oito exige que a professora se desculpe, sua “galhofa” o ofende. É que a erudita, dizia que nossas forças militares são patrimonialistas, “não foram constituídas para proteger a coletividade, mas para proteger as elites econômicas e seus bens”. Ilustrando o arrazoado, ela, ébria e irônica, elucubra: “Nas áreas nobres, são cachorrinhos de madame, cheios de comissuras (aqui ela faz uns gracejos de corpo), nas periferias, como pitbulls vorazes (novamente, gestos que ampliam a fala), sente-se no direito de julgar, condenar, humilhar e executar  corpos pobres”. O rapaz era militar. Estava de folga. Não gostou da comparação, não gostou, principalmente, do gestual acompanhado a fala da professora. Depois: “Não era hora mais de vadia doutrinadora estar na rua”. “Pelo contrário, meu amigo”, reage a professora, “a hora, está hora, é a hora das vadias!” O acento ébrio-anasalado de suas palavras gera risos ante a tensão presente. O rapaz sente-se afrontado, saca a arma, dispara...  Ataíde tomou a frente da professora... O comando militar emitiu nota lamentando profundamente a perda de uma vida e manifestou sentimentos de consternação à família enlutada. Informou, ainda, que um Inquérito Policial Militar foi instaurado para melhor apurar os fatos, a fim de que não sejam feitas conclusões precipitadas e sejam observados todos os direitos e garantias constitucionais do militar, que já se encontra em atividades administrativas. Por fim, reforçou o “compromisso da Brigada com o respeito aos direitos humanos e à dignidade das pessoas em todas as nossas atividades, e reitera que não tolera qualquer tipo de violência ou abuso em suas tropas." Um jornal local publicou matéria sobre Ataíde Leonel, 37 anos, estudante universitário, que, para manter os estudos, prestava serviços de garçom. Deixa esposa e um filho por nascer. Encerrando a matéria, o jornal publicou as anotações de Ataíde: “as minorias não são reconhecidas como sujeito, a cidadania a elas garantida é apenas formal. Os pobres e periféricos, na concepção das elites, são descartáveis, constituem uma ameaça aos seus interesses” (Professor Miguel). “É sempre um fato isolado a cotidiana violência policial contra pobres, trabalhadores, desempregados, sem-terras, moradores de rua, os que não contam por seu CEP e ou cor de pele” (Professora Stella). Das anotações de Ataíde: “Capitães do mato vestem farda”, dá título à matéria. Uma associação de vigilantes noturnos (cabe notar que dita associação está sob investigação, por fazer uso de policiais em folga para oferecer proteção ao comércio local) está com uma ação contra o jornal. O termo “capitães do mato”, defende, “fere a dignidade de nossos associados.” Conhecendo Bananópolis, um amigo me confidencia: “Em breve, haveremos de assistir moção de aplausos na tribuna ao jovem policial.” Em Bananópolis, nada de novo acontece.

domingo, abril 07, 2024

A Land Rover e o caramelo

        Era um maio, um sol pálido, encoberto de nuvens, anunciava uma jornada friorenta, chuvosa. Na esquina, uma matilha disputava sacos de lixo. Um caramelo, passou a seguir-me.  Quando entrei na padaria, ele  retornou aos sacos de lixo. Se comentava a partida da noite passada. “O juiz foi comprado”, disse um. “Deixa disso, rapaz! Serginho estava impedido, o juiz anulou corretamente”. “E o pênalti,  o que você diz do pênalti, que ele não marcou?” “É, o pênalti, convenhamos, só não marcou porque não quis!”. Eu ordenei um pingado, um pão na chapa. “Você assistiu?” fui indagado. “Entre um cochilo e outro, acompanhei alguma coisa!”, respondi sem interesse em participar da conversa. “O pênalti, foi ou não foi?” “Não contra o Timão, sem muita disposição de continuar o debate!”, respondi. Fui servido, deixei a conversa de lado, busquei uma mesa afastada, para folhear o jornal. Consultei o relógio, faltavam 20 min: “dava tempo!”, pensei. Quando deixei a padaria o caramelo voltou a me seguir. Caminhava em direção ao Mercado Central. A orla vazia, o mar agitado. Um ou outro banhista arriscava um mergulho. Um pouco antes do Mexilhão, topei com Geraldinha em uma canga florida. “Corajosa, você!”, comentei. Ela sorriu-me, peguntou por minha mãe, meu pai, quis saber se o caramelo era meu. “Não! Resolveu seguir-me!”, respondi.  “Foi bom te ver. Ia procurar-te mais tarde. Preciso trocar umas fechaduras, você faria isso pra mim?”, perguntou-me. Eu estava indo a uma consulta, nada grave, rotina. Combinei de passar por sua casa, retornando. “Prepara aquele linguado ao molho, que chego para o almoço”, brinquei. Saí da consulta, passei no Mercado, comprei legumes e verduras para mãe, uma cachaça. O caramelo já não me seguia, o avistei, com uns outros dois, rosnando a um Pinscher conduzido por um casal de banhista.  Já em casa, deixei as compras de mãe, peguei a caixa de ferramentas e segui para Geraldinha. “Vou ali, fazer um “bico”, devo demorar... almoço por lá!” Avisei mãe. “E esta cachaça?”, perguntou mãe. “Dizem que ajuda a amolecer dobradiças”, respondi irônico. “Juízo, rapaz! Juízo!” “Benção! Vou indo”. “Deus te abençoe!”... Atravessava a Oceânica fantasiando as vésperas com Geraldinha. Mergulhado em seu sorriso prazeroso, corria seu corpo à ponta de língua, brincava em suas “dobradiças”... O soído de buzina, o rumor brusco de freada, o coração saltando à boca, o suor frio tomando o corpo... Veio-me de perder os sentidos, tamanho o susto. “Por pouco, a Land Rover não atropela o pobre do caramelo!”, dizia à Geraldinha.  “Por Deus, você não é cardíaco!”, disse-me, cafuneando-me em seu colo. Uma chuvinha fria umedecia a vidraça

sexta-feira, abril 05, 2024

Geografia de ti

 


 

Amo tua voz e tua cor

E teu jeito de fazer amor

Revirando os olhos e o tapete,

Suspirando em falsete

Coisas que eu nem sei contar.

Kleiton & Kledir

 

 

No palco evolui uma banda de amigos. O garçom nos serve frutos do mar e vinho. Animado, você me fala de seus estudos e do texto que está desenvolvendo para o grupo de teatro.

Tuas palavras misturam-se à música e chegam-me com o cheiro de vinho em teus lábios buscando os meus, a caricia de tuas mãos sob meus joelhos, teu perfume adocicado.

        Teus olhos cintilam e devoram-me … Eu me exponho e me velo, suando as mãos, as pernas tremulas, sorrindo um riso frouxo, mas decoroso.

            Um casal de amigos nos cumprimenta, ficamos de ir visitá-lo antes de retornarmos à Capital.

            “Não és sequer a razão do meu viver,/ Pois que tu és já toda a minha vida!”

Dizes-me de Florbela Espanca e da canção que nos chega na interpretação de nossos amigos. Tuas palavras me excitam, tua voz penetra-me os sentidos já inebriados, o corpo ardendo… Silencio-te, penetrando-me em teus lábios, misturando nossas línguas, derretendo-me por entre as pernas... 

O mar calmo, envolvido pela brisa, descansa suas águas a nossos pés.  A noite avança descompromissada. Enlaço-me a ti, beijo-te como beijo primeiro.

         Tua respiração, teu hálito quente, tua saliva misturada à minha, encharcando-me de teu sabor. Tuas mãos quentes, ágeis, macias, puxa-me para teu corpo, apalpa-me vorazes. Eu me sufocando.

- Vamos subir!

[…]

Deixo que me dispas e com teus lábios percorra meu corpo, os seios, o umbigo, ...  Tua língua brinca em mim e eu me derreto...

- Vem! Me fode! Me fode todinha!

[…]

Contemplo teu corpo nu adormecido, “decorando tua geografia”. Na boca o gosto de ti, de tua seiva em meus lábios.

No espelho do banheiro escrevo: “A vida deveria ser assim: uma grande paixão, um amor delirante, um perene sonho avançando noites descompromissadas. Teus lábios brincando em mim!”

Adormeço em teus braços.