Em Bananópolis não se fala de outra coisa: Tio Paulo e o Playboy do Porsche. E na lanchonete próxima ao Centro de Estudos Sociais o assunto está na mesa. Ataíde Leonel, aluno do 3º semestre do curso de Ciências do Comportamento Social, entre um pedido e outro, acompanha as conjecturas do grupo de professores da mesa 10. Um lembra Machado de Assis que dizia de dois brasis: “um oficial, outro real”. Um outro corrobora a ideia, citando Euclides da Cunha. Um terceiro especula: “Tio Paulo e Playboy do Porsche ilustram estes brasis”, e emenda: “De um lado, um Brasil explorado por uma casta econômica, resquício do escravismo, concentradora de nossas riquezas, que submete a política a seus interesses. Uma elite inculta, mas esnobe. Do outro, brasileiros pobres, que vivem em condições precárias, sendo explorados e tratados como gentalha.” No ir e vir de uma mesa a outra, Ataíde Leonel, vai pescando o possível daquilo que os doutores comentam. “Garçom!”, alguém grita: “Traz mais uma e coloca na conta do Tio Paulo!” Risos tomam conta do ambiente. “Já Joaquim Nabuco dizia”, toma a palavra uma professora, “que a escravidão permaneceria por muito tempo uma característica do Brasil, pois nos é transmitida no leite materno.” Ataíde pensou pedir a palavra, mas engoliu o que tinha a dizer: “quem era ele, diante dos ilustres acadêmicos?” Depois, alguém o exigia na mesa 6. “No Brasil toda riqueza é fruto de roubo e quanto mais sangue um tem nas mãos, mais nobre pretende ser”, ensaia um dos acadêmicos. A noite avança, e o debate na mesa 10, regado a cervejas e porções de fritas e torresmos, desfila teses e teóricos de nossas “estruturas escravagistas”. Servindo uma mesa aqui, outra ali, Ataíde pesca o que pode das etílicas elucubrações acadêmicas e formula para si mesmo as suas, anotando o que consegue no verso de uma comanda. “Chegando em casa as sistematizo”, pensava consigo. Um chiste de uma professora principia uma confusão entre os acadêmicos da mesa 10 e dois clientes da mesa 8. O rapaz da oito exige que a professora se desculpe, sua “galhofa” o ofende. É que a erudita, dizia que nossas forças militares são patrimonialistas, “não foram constituídas para proteger a coletividade, mas para proteger as elites econômicas e seus bens”. Ilustrando o arrazoado, ela, ébria e irônica, elucubra: “Nas áreas nobres, são cachorrinhos de madame, cheios de comissuras (aqui ela faz uns gracejos de corpo), nas periferias, como pitbulls vorazes (novamente, gestos que ampliam a fala), sente-se no direito de julgar, condenar, humilhar e executar corpos pobres”. O rapaz era militar. Estava de folga. Não gostou da comparação, não gostou, principalmente, do gestual acompanhado a fala da professora. Depois: “Não era hora mais de vadia doutrinadora estar na rua”. “Pelo contrário, meu amigo”, reage a professora, “a hora, está hora, é a hora das vadias!” O acento ébrio-anasalado de suas palavras gera risos ante a tensão presente. O rapaz sente-se afrontado, saca a arma, dispara... Ataíde tomou a frente da professora... O comando militar emitiu nota lamentando profundamente a perda de uma vida e manifestou sentimentos de consternação à família enlutada. Informou, ainda, que um Inquérito Policial Militar foi instaurado para melhor apurar os fatos, a fim de que não sejam feitas conclusões precipitadas e sejam observados todos os direitos e garantias constitucionais do militar, que já se encontra em atividades administrativas. Por fim, reforçou o “compromisso da Brigada com o respeito aos direitos humanos e à dignidade das pessoas em todas as nossas atividades, e reitera que não tolera qualquer tipo de violência ou abuso em suas tropas." Um jornal local publicou matéria sobre Ataíde Leonel, 37 anos, estudante universitário, que, para manter os estudos, prestava serviços de garçom. Deixa esposa e um filho por nascer. Encerrando a matéria, o jornal publicou as anotações de Ataíde: “as minorias não são reconhecidas como sujeito, a cidadania a elas garantida é apenas formal. Os pobres e periféricos, na concepção das elites, são descartáveis, constituem uma ameaça aos seus interesses” (Professor Miguel). “É sempre um fato isolado a cotidiana violência policial contra pobres, trabalhadores, desempregados, sem-terras, moradores de rua, os que não contam por seu CEP e ou cor de pele” (Professora Stella). Das anotações de Ataíde: “Capitães do mato vestem farda”, dá título à matéria. Uma associação de vigilantes noturnos (cabe notar que dita associação está sob investigação, por fazer uso de policiais em folga para oferecer proteção ao comércio local) está com uma ação contra o jornal. O termo “capitães do mato”, defende, “fere a dignidade de nossos associados.” Conhecendo Bananópolis, um amigo me confidencia: “Em breve, haveremos de assistir moção de aplausos na tribuna ao jovem policial.” Em Bananópolis, nada de novo acontece.