Para
Hélio Rosa de Miranda
Vó com
voz lamentosa puxava a reza. As Marias, assim chamávamos as rezadeiras,
seguiam-na arrastando tristes ave-marias e crendos-padres. No quintal os homens
fumavam e bebiam o defunto. Era preciso tia, de tanto em tanto, pedir
moderação, inda mais quando os homens explodiam em gargalhadas. Quem havia
passado era Sá Severina de Dona Doca. E de Sá Severina, muitas eram as memórias
da gente do pequeno arraial. Sá Severina fora a primeira professora e, também, cuidadora
de muitos ali. E todos tinham histórias para contar de Sá Severina. “Dinha”, um
contava, “me pegou de certa volta, com o olho nas frestas, eu espiava o banho
de Gesuelma. Lembra Gesuelma? Pois Dinha pegou que eu espichava olhos pelas
frestas e espiava Gesuaelma. Quando lembro a tapa que levei, os ouvidos chegam
a zunir: “fio de cão, eu conto pra comadre de tua safadeza! Não quero saber de
homem sem brio, não! Se emenda, se emenda! E outra tapa! Depois fez bolo e nos
explicou o que não convém a homens descentes.” “Cê lembra da vez que ela pegou
nós tudo e levou pra vê televisão? Fez todo mundo tomar banho e calçar
sandália. Depois fez nós tudo caminhar até Coronel Fabricio, que recebeu nós
com um arregalo nos olhos: “Comadre Severina, que novidade é esta, a comadre
por estas bandas? E estes empestiados?” “Combinei, compadre, com Sá Deodora de
estes meus filhos e estas minhas filhas de verem a novidade!” “Que novidade, comadre?” “A tal da caixa que mostra as
coisas e as pessoas do mundo dentro
dela” “Sei, agora entendo toda aquela labuta de Deodora em estar a preparar um
tanto de quitutes.” “Foi mesmo”, disse um, “um dia de não se esquecer. Só fui
ver televisão de novo quando mudei pra cidade.” “Eu gostava”, começou outro, “quando
ela nos ensinava as letras e os números. Cês lembram que ela dizia: “o mundo
entra por nossos olhos, e o tomamos por nossas mãos como bicho bravo, com
nossas mãos o amansamos e tiramos dele o que precisamos para viver. Sem
palavras o amansamos para que outros o monte.
Dominando as palavras, dominamos o mundo e ninguém nos monta.” Um
silêncio profundo, reverencial tomou o quintal por algum tempo. “Viva Dinha!”,
rompeu daquele momentâneo silêncio: “Viva! Viva!” Eu, ali, entendia: não se
deixar montar, é o que um professor, uma professora ensina.