Devo nascer umas tantas vezes ainda
“Quem salta da vida,
Não renasce,
Torna-se alma perdida”
Disseram-me
Vou contentando-me
De tecer rabiscos
Devo nascer umas tantas vezes ainda
“Quem salta da vida,
Não renasce,
Torna-se alma perdida”
Disseram-me
Vou contentando-me
De tecer rabiscos
O pouco gosto em viver que me toma não é explicável. Eu não me sinto bem alojado no mundo, e não faria falta alguma não estando nele. Mas esse não querer ser e estar é em mim, e não me impede de acreditar num mundo outro. Paradoxalmente, eu sou um entusiasta do humano, de suas realizações. Eu costumo dizer a meus alunos que nós somos seres incríveis, capazes de feitos inacreditáveis, detemos o poder de criar, de fazer coisas e realidades inexistentes existirem. Digo a eles que de habitantes de copas de árvores e cavernas sombrias, hoje vislumbramos habitar outros planetas, de seres vulneráveis e fugazes, criamos formas sofisticadas de nos proteger e prolongar nossa existência. Com nosso corpo e com nossa voz, aliando criatividade e fantasia, produzimos artes e esportes de infinita variedade. Nos corremos, saltamos, rolamos, nadamos, com aparato técnico, voamos, nos lançamos no espaço. Nós desenhamos, esculpimos, moldamos, fotografamos, produzimos ritmos e músicas do mais variado estilo e gênero. Do teatro ao cinema, narramo-nos, damos forma às nossas fantasias. Com aparatos técnicos, observamos o macro e o micro, produzimos imagens belíssimas. Digo tudo isto, porque acompanhei, ontem, meus filhos no 1º Poá Geek Festival: que mundo fantástico! Quanta diversidade! Quanta plasticidade e Beleza! Penso nesta infinita capacidade que temos de produzir coisas fantásticas, a partir de nossas fantasias. Saio dali, como meu filho, entusiasmado. Entro na rua do comercio, pessoas revilam o lixo, outras dormem embrulhadas em papeis. Ao dizer a meus alunos das muitas possibilidades e capacidades que temos de produzir coisas belas com nosso corpo, com nossa voz, e coisas incríveis, como lançar satélites ao espaço que nos permitem nos comunicar com os pontos mais remotos da terra, também produzimos miséria, pobreza, violência. Tudo o que se apresenta ante nossos olhos é produto de nossas ações, o belo e o grotesco, o bem e o mal, o sublime e o repugnante. Nada existe fora de nossa ação. Somos nós que produzimos o mundo como ele é, o mundo fantástico e o mundo concreto. Para que o mundo fantástico não se torne um lugar de alienação é preciso dar respostas ao mundo concreto. Antes de habitar outros planetas já deveríamos ter resolvido a fome, a vida insalubre, a falta de dignidade em que vivem centenas de milhares de seres humanos. Eu me entusiasmei com o universo geek, porque é plástico, enche-me os olhos de encanto, vislumbro o belo do humano. Homens e mulheres revirando o lixo fazem-me sentir menos: esta é uma realidade que já deveríamos ter superado. O entusiasmo pelo humano cede ao grotesco de nossa realidade. Aloja-se em mim o desejo de não ser. Saber de nossa grandeza e me deparar com nossa mesquinhez me deprime.
Eugênio
Onan, antes do sexo real, descobriu a fantasia erótica e a pornografia. Menino
desengonçado e raquítico, era tomado, em sua infância, por apalermado. Falava
pouco, e quando falava, provocava risos que o envergonhavam. Preferia brincar
só, construindo bonecos e potes de barro. Daí nasceu seu apelido na infância: Tijolinho.
O acanhamento de Eugênio Onan foi produzido, seu semblante sempre fechado, foi
produzido, sua fisionomia melancólica foi produzida. Eugênio Onan é resultado
das interações escolares, familiares, comunitárias em que foi se tornando a
pessoa que é hoje. Como dizia, antes de conhecer o sexo real, o embolar dos
corpos, na troca de suores e fluidos, Eugênio Onan conheceu as narrativas
eróticas e a pornografia. O pai de Eugênio tinha uma pequena mercearia e era
frequentada por operários de uma fábrica de tecidos. Entre os operários tinha
um que estava sempre acompanhado de um livro. Ele era chamado pelos
companheiros de Erudito. “Erudito”, disse certa feita um, “o que você está
lendo agora?” “Rapaz, nem te conto! É uma história por demais picante!” E mesmo
dizendo que não contava, Erudito passou a contá-la: “[...] e a menina era um pitel de menina,
cabeça bem formada, redonda, redondinha, olhos negros vivazes, lânguidos, nariz
gracioso, boca formosa, lábios carnudos, sedentos, sorriso brejeiro. Os cabelos
trançados à africano. Ela foi descendo o vestido de chita, revelando o corpo. O
corpo, o corpo, meus caros, que corpo! Seios pequenos tipo pera, ornados por
duas rijas amorinhas. Cintura bem ornada cingida por um cordão de sementes de
lágrimas de Nossa Senhora. Depois, lentamente foi baixando a calcinha,
mostrando os pentelhos, a frestinha do grilo...”. Eugênio, que brincava por
ali, com seus hominhos de barro, não tinha mais que doze anos. Como os
operários, ia se deixando levar pela narrativa de Erudito. E desenhando em sua
mente aquela personagem, ia sentindo um frêmito descomunal. Mais tarde, umas de
suas obras viria a receber o título: “Mulher de peras com amoras.” “Cabra de
sorte este pandego! Rapariga assim não se acha não, vice?”, exclamou um dos operários,
ao fim da história. Enquanto Erudito estava sempre acompanhado de um livro,
Miquéias trazia sempre consigo uma Playboy, ou fotonovelas pornográficas, que,
depois de três quatro copos de cachaça, deixava abandonada sobre o balcão. O
pai de Eugênio corria a recolher e esconder. A mercearia atendia também
mulheres e crianças em busca de itens para casa e guloseimas. Então, era
preciso manter um certo decoro. Certa feita, Eugênio voltou furiosíssimo da
escola. A professora o fizera ir à frente da sala e ler um paragrafo da
cartilha. No que ele leu “plobrema”, a professora, para o riso de muitos,
desceu-lhe a régua: “Prrrroblllleeeema, prrrrrrobllllleeeema, seu energúmeno!”
“A carrasca”, sua premiadíssima obra, relembra este episódio. Dizia, Eugênio
voltou para casa furioso, pudesse aniquilava a professora e todos que dele
riam. Passando pela mercearia do pai, deu, antes do pai, com uma das revistas
de Miqueias: “o confessionário”. À medida que as cenas enchiam o olhar de
Eugênio, sua raiva ia se aplacando. Desde então, Eugenio buscava se antecipar
ao pai, no confisco das revistas de Miqueias. As revistas e os contos eróticos,
além da escultura e, depois, a pintura, tornaram-se o refúgio de Eugênio contra
as aporrinhações dos professores, companheiros de escola e familiares. Hoje lhe
são refúgio contra o mundo. Eugênio só se satisfaz alheio ao mundo. A vida
concreta o oprime. Moldando suas figuras, dando forma a suas angústias e
fantasias, Eugenio se assegura na
existência. Dia destes entrou Eugênio em um Dink’s Bar. No palco, à meia luz,
uma “erotic Woman” performava ao som de
Lady Gaga. Pouco a pouco, o vestido preto colado ao corpo foi descendo,
revelando-o, liberando os seios miúdos, duas peras ornadas por duas rijas
amoras. A cintura, cingida de uma delgada corrente de prata e uma pequena
medalha de Santa Maria Madalena, serpenteia de um lado a outro. Na anca direita
uma sutil borboleta estampa a pele, parece ganhar vida. Lentamente, a calcinha
vai descendo por entre as pernas, revelando uma pelve imberbe. Os olhos de
Eugênio fixam-se à fresta. “Vamos fazer amor?” ao pé do ouvido, ouviu Eugênio o
convite de uma ruiva. “Eu já cheguei ao gozo, meu bem!”, respondeu Eugênio,
tomando em um gole só a dose de vodka. Fora um dia difícil para Eugênio, ele
saiu desejando ter uma bomba e mandar tudo aos ares. Cogitou jogar-se debaixo
de um carro. “Você precisa dar uma, Eugênio!” disse-lhe um conhecido, andas
muito estressado. Eugênio lhe sorriu desanimado, seguindo seu caminho, entrou
naquele Dink’s bar. Encontrou numa dançarina à meia luz, seu ponto de sossego.
***
ARTISTA
BANANENSE É DESTAQUE EM CHICAGO
Abre
hoje, no Museum of Contemporary Art de Chicago, a exposição Eugênio Onan: The
bananense genius, que coloca à visitação do público norte americano obras do
renomado escultor e pintor bananense, Eugênio Onan. As obras de Onan são, como
ele mesmo afirma: “para o gozo do olhar”. Em uma entrevista para o The New York
Times diz ele: Eu produzo refúgios aos horrores da vida real, em que as
relações concretas frustram, humilham, sufocam. Minha obra é para quem não
encontra, na vida real, ponto de sustentação e não encontra coragem para dela
saltar. Eu prendo meu olhar ao impossível de uma relação e o transformo em
minha obra. Meu prazer é escópico, eu projeto ao mundo minhas fantasias, é
nelas, tornadas visíveis que me encontro e gozo.” A exposição em Chicago trará
a público sua mais recente obra: Medalhinha de Maria Madalena no dorso nu de
uma dançarina. – Diário de Bananópolis, 13 de agosto de 2022.
“Falar já é sublimar” (Castoriadis)
Querida,
a manhã é cinza e fria. Levanto-me e preparo o café. Enquanto conjecturo sair
ou não para caminhar, penso na eventualidade de encontrar-te. Mas, os deuses do
acaso já não mais existem, não mais tramam encontros inesperados. Está em meu
caminho uma livraria, passo por ela todos os dias, vez ou outra a frequento,
apenas para me inteirar de uma nova publicação. Nunca encontro o título que
procuro. No fundo, eu sei que não vou encontrar. Não são os livros e meu
interesse por eles que me atraem à esta
livraria. Penso sempre poder encontrar-te, sem aviso, folheando algum exemplar.
Seria-me festa no olhar, festa de embriagar a alma de contentamento. Dia deste tive
um destes sonhos contigo. Eu era na livraria e buscava o livro do Barthes, o Fragmentos
de um discurso Amoroso. Achando-o entre os livros de literatura erótica,
folheio-o e nele leio “Espero um telefonema, e essa esperança me angustia mais do
que de costume. Tento fazer qualquer coisa e não consigo.” Ouço, então, atrás
de mim uma voz conhecida: “A espera é um encantamento”, viro-me e me deparo com
teu sorriso seguido de uma explicação: “a pessoa encantada pela espera tem medo
de, saindo de onde está, perder o ser que busca encontrar”. Tua presença
transborda-me. Abro os braços para acolher-te em mim. Neste instante, desperto. É o
vazio a me tonar à realidade. Nessa livraria sempre observo os que entram,
batem papo, leem tranquilamente, saboreando um café. Mas é tudo tão cinza, sem
vivacidade. Há dias que me vem de me plantar e não arredar pé da livraria, no
aguardo de tua presença. É relutante que cedo ao: “Senhor, precisamos fechar!”.
A festa de ter-te e encantar-me de tua presença se adia. Sonho e realidade se
conluiam contra mim. Não saber de ti é como viver no exílio. E neste sentimento
exilar deliro. Toda pessoa por quem passo, toda voz que ouço, é, numa primeira
impressão, a tua presença. O encantamento da espera não é apenas imobilizante,
é, sobretudo, delirante. O café está pronto, seu aroma preenche a cozinha. É teu
perfume que sinto: alucino o que desejo. Escrevendo-o, mantenho-me lúcido.