domingo, junho 26, 2022

BAQUARA ARARÊ E OS IBIRÓ-BIRÓ

 

“As coisas se deram assim”, começou Baquara Ararê, que entre seu povo quer dizer Sábio como papagaio. “Quando não era ainda burbulê (a lua), cachipiap (o sol), quando não era ainda o mundo, e nele não era ainda os Ibiró-biró, pra pescar e fazer farinha. Quando ainda não existia abá (homem), ainá (mulher), Etê sonhou companheira Ibi“. Ibi, na língua do povo de Baquara Ararê, significa terra, enquanto planeta, que para ele é diferente de alorê, a terra em que se planta e se mora. “Etê”, continuou Baquara Ararê, quando acordou do sonho, Ibi era com Etê. E Etê fez colar de uaiquira (estrelas) para enfeitar Ibi e fez jamana (a chuva) para Ibi se banhar e  euetu (o vento) para Ibi se secar. E Etê fez para Ibi cachipiap (o sol) para Ibi brincar, caçar, plantar, tecer e burbulê (a lua) para Ibi dormir e sonhar. Etê cobriu Ibi  de seu ariê (fogo, espírito). Ibi  alorê (a terra), fez birô (os rios), cuiàda (as matas), cupuaçu, (as árvores) e fez todo tipo de eimap (animais), e tudo presenteou Etê. Etê e Ibi dançaram e cantaram e nadaram nas águas de Yguaçu. E Ibi ficou gravida de Etê, e Ibi fez nascer os Ibiró-biró, que quer dizer filhos de Ibi do rio, porque Ibi tem muitos outros filhos. E Ibi ensinou Ibiró-biró a caçar, pescar e nadar. Ibi ensinou também seus filhos a cantar e dançar e pintar o corpo. E o que os Ibiró-biro aprendem de Ibi, eles ensinam a seus filhos. Os Ibiró-biró fazem presentes para suas esposas: cocares, colares, pulseiras, suas esposas lhes fazem presentes: o peixe assado, a mandioca cozida, o cauim. Quando eles se encontram, Etê e Ibi que neles dançam e seus filhos são filhos de Etê e Ibi. Toda criança Ibiró-biró é sagrada.  É Etê e Ibi continuando a criação.” Depois disto, Babaquara Ararê sumiu no profundo das matas, onde seu povo não se deixa encontrar.

 

domingo, junho 19, 2022

O BEATO AUSTERO

 

No centro do quintal erguia-se o mastro e em seu topo os estandartes de Santo Antônio, São Pedro e São João. Da ponta do mastro fios com bandeiras se esticavam por mastros ao seu redor formando uma tenda multicolorida: era uma belezura de olhar. À noitinha, então, quando as estrelas da imensidão céu lhes vinha permear, a mistura de cores e luz era uma festa pro olhar. Vó preparava os doces e os quitutes: milho, batata doce na brasa, pipoca, canjica, pé de moleque, doce de abobara, paçoca. Tia preparava o quentão, o vinho quente, os caldos: feijão, couve, mandioca. Os tios armavam a fogueira, animavam as noites com musica, cantos e causos. Em causos, no entanto, ninguém superava tia: “Cê compadre”, era tia iniciando um causo. Silenciava a noite! Só o fogo mantinha o seu crepitar, como que combinado com tia. “Cê num soube de compadre Austero, que se dizia todo prosa, todo homem valente, cheio de coragem! Cê num soube, que o formoso se aprumô todo em dia de guardar penitência: “isto é bestera de padre, num dou respeito a quem veste saia não!” “Então, Sussuarana que te coma”, esbravejava a mãe, que, em vão, tentava lhe endireitar as ideias. E foi cumpadre Austero, em dia santo, pra cidade, todo garboso, cheio do perfume, da goma nos cabelos, parecendo um daqueles doutorzim da cidade, sabe? Mas, cumpadre Austero deu foi com burros n’água! Se tem coisa que mulher dama respeita é dia santo. Cumpadre Austero não encontrou um lupanar aberto. Só um ou outro buteco, com um ou outro desconsolado como cumpadre.  Depois de entornar umas, num destes butecos, amofinado, por não encontrar colo pra alugar, Cumpadre Austero, tomou rumo de casa, morrinhando praga contra os costumes “desta gente ignorante, apegada a crendices de padres velhacos”.  Quando cumpadre Austero está por chegar na picada do Jambeiro,   não é que cumpadre Austero se dá com uma moçoila de formosura sem igual? Pro cê ter ideia, cumpadre, diz que Ritinha, de cumadre Jacobina, perto desta,  perde é de longe em formosura. Imagina cumpadre: Ritinha! Num é outra não viu, é Ritinha!  “Eita, que a noite num tá perdida!”, entusiasmou o cumprade Austero e se galanteou pra riba da moça. E a moça, cumpadre,  não se fez de difícil não, ao contrario, foi é se oferecendo toda, sem pudor algum. E cumpadre Austero foi se enleando com a moça, e a moça foi se enleando com cumpadre Austero, e foram se embreando pela mata e se deram lá no chapadão do riacho. E a noite foi cedendo vez à aurora e o dia foi nascendo, cumpadre, e as lavadeira foram chegando com suas cantorias pra bater pano no chapadão. Foi um susto só, cumpadre. O mulheril calou o vozeiro, estatelou os olhos, engasgou a língua, até que rompeu da garganta de cumadre Tiana, o crendos padre e a Ave Maria, esconjurando uma onça-parda de beleza sem igual, descansando no lajedo. A bichana, cumpadre, com a rezaria de cumadre Tiana, agora acompanhada do mulheril, saltou ligeira nas águas do ribeirão e deu-se sumiço. Mas antes, cumpadre, a maldita cuspiu de si cumpadre Austero, como este veio ao mundo. Uns dizem,  cumpadre, que cumpadre Austero se tornou beato e vive de lupanar em lupanar clamando arrependimento e cobrando que se faça penitência. Outros, no entanto, dizem, cumpadre, que ele caminha pelas matas à noitinha procurando encontrar a formosa Sussuarana. É preciso ouvir o fogo crepitando, é preciso contemplar o céu permeado de bandeiras e estrelas para se ouvir os causos de tia. Viva Santo Antônio, Viva São João, Viva são Pedro e os encantos que nos oferecem!

domingo, junho 05, 2022

LEITURA


Perguntaram-me dos meus hábitos de leitura. Eu respondi que leio compulsivamente. Perguntaram-me de minha preferência de suporte: livro físico ou digital. Eu disse gostar do livro físico, mas leio em qualquer suporte: Lousa, Quadro de aviso, letreiros, anúncios em poste, porta de banheiro, bula de remédio, muros e paredes. Tudo eu leio. Não leio só o escrito eu disse a quem me indagava. Leio canto de pássaros, vento soprando, flores se abrindo, chuva caindo. Eu leio semblantes, olhos e olhares, contornos de lábios esboçando sorriso, insinuando um beijo. Eu leio a dor e a alegria em lágrimas escorrendo. Leio a acolhida num abraço, a despedida em acenos. Leio punhos cerrados, dedo em riste, apertos de mãos, uma mão estendida oferecendo apoio. Leio gritos de fúria, de indignação, de emoção. Leio o silêncio obsequioso ante o opressor, e a palavra presa à garganta que diz de amor. Mas de tudo o que leio, a leitura a que sempre volto, aquela em que mais me enleio, é a do calor e do frêmito de teu corpo enquanto teus lábios eu folheio.