sábado, novembro 27, 2021

CARAMINHOLAS

 

Há alguns anos foi inaugurado em nossa cidade um caraminholal.  Um lugar amplo, bonito, acolhedor, mas com pouco uso. Faltava clareza de sua utilidade. Então, formou-se uma comissão e esta deu-se o papel de estabelecer os regimentos de uso do equipamento – vou usar este termo porque caraminholal é usual cá entre nós. E, dia desses, eis que me dou com um manifesto de convocação de audiência pública para apreciação da minuta do regulamento do equipamento. Eu cá com minhas caraminholas achei interessante e me dei de ir participar da dita audiência pública. A audiência foi assaz interessante, os presentes eram concordes quanto à importância do equipamento: “contribuía com a pujança turística da cidade”. Eram concordes também quanto aos usuários: “era um equipamento de todos os munícipes e para todos os munícipes, sem distinção alguma.” Um impasse, no entanto se estabeleceu:  “Era do equipamento a função de produzir caraminholas”, algo em que também não havia discordância, mas o entendimento sobre o que vinha a ser caraminholas dividiu a assembleia. Uns defendiam que caraminholas é uma espécie de pensamento em que vamos nos perdendo ou nos deixando perder, outros diziam que caraminholas eram também certas fantasias, certas histórias enganosas. Aqui a questão: “que tipo de caraminholas se queria estabelecer como própria do equipamento?” Uns defendiam que apenas os pensamentos em que nos perdemos deveriam ser permitidos.   Outros defendiam que o equipamento comportava também toda espécie de história enganosa, pois também em história enganosas nos perdemos. Embora dividida a assembleia, não houve acaloramento das discussões e se jogou a questão para instâncias superiores esclarecer. O que me chamou a atenção foi um tipo que chegou quase nos finalmentes, tomou da palavra, disse de sua importância na cidade, do respeito que merecia, tomou lá sua posição, e como chegou saiu, sem acompanhar o que se discutiu e se discutia na audiência. Fez-me lembrar algo que vó me dizia: “Fio quem não se dispõe a ouvir, por mais que tenha a falar, não é ouvido, é falado.” Deste “falado”, vó me explicou num outro momento. “Fio, ser muito falado não significa ser levado a sério, ou respeitado”. Estou me perdendo nesta caraminhola. Vó era artista em fazer-me perder em pensamentos.

sexta-feira, novembro 26, 2021

MEUS VERSOS

 

Eu queria cantar outros versos,

Que não lembrasse o Bandeira

E seu homem bicho

E o pretinho,

daquela canção dos Racionais.

Meus versos

Não os queria tomados de fome,

Subemprego gumertizado

De mulheres culpabilizadas

Da violência sofrida,

Por gente canalha,

Passando-se por crente

Em meus versos queria

Os sonhos de meus filhos

O beijo da companheira

A conversa com os amigos

Numa roda de cervejas

O brilho nos olhos de quem

Está aprendendo a se lançar na vida

Dos que se aventuram

Nos meandros da Academia

Meus versos,

de esperança e alegria, os queria

Mas o sangue preto,

De chacinas, ainda escorre

Enquanto a meninada se vira no corre

E a mãe, por um pacote de miojo,

É jogada numa cela fria

E, por um prato de comida,

A mana se vende na esquina

Eu queria cantar outros versos

Mas o juiz ladrão se postura presidente

Com o apoio dos que o ajudaram eleger

A familícia.

Era para ser de esperança e alegria

Estes meus versos de suicida

Esperando sua bala perdida.

 

 

sábado, novembro 20, 2021

NEGRISMO E NEGRITUDE

 A Consciência Negra é uma mentalidade e um modo de vida, o apelo mais que positivo já emanou do mundo dos negros. (Steve BIKO)

 

O ser negro não existe, não deveria existir. O ser negro é um, uma, que não conta, na relação com o outro; é um algo, uma coisa, um objeto de uso na relação com o outro. Ser negro é não ser reconhecido pessoa. O ser negro não se nasce. O ser negro se é tornado nas relações de expropriação da dignidade e humanidade do outro.

Ao ato de reduzir pessoas a coisa, a moeda, a mercadoria, chamamos negrismo. Em sua economia impera relações de dominação, submissão, subalternização, do outro, mediante a concentração de recursos naturais, técnicos, culturais, econômicos, em que pessoas são reduzidas a força de produção de tais bens e vetados de os usufruírem, pois acumulados e concentrados entre poucos. O negrismo se dá desde a aurora do humano. Se hoje, “raça”, “racismo”, assume os contornos próprios do negrismo, o negrismo sempre sombreou as relações políticas, especialmente quando se trata de justificar guerras de conquista e dominação de povos estrangeiros: bárbaros, selvagens, ímpios...

No Brasil, devido sua história colonial, escravista, patriarcalista, patrimonialista, elitista, o negrismo é percebido como conflito de raças. A concentração de renda e bens nas mãos de poucos, a carência indigente de milhares, demarcam os mandos e desmandos de uns e a subalternização dos demais. E quanto  mais escura a pele da pessoa, mais ela está sujeita a ser negro, a ser tornada negro. No entanto, mulheres e homens de peles claras não escapam ao negrismo. É característica do negrismo o desemprego, o subemprego, o emprego precarizado, a carência alimentar, a ausência de recursos e equipamentos de Estado, a não ser na intervenção truculenta e, por vezes, homicida das polícias. Onde impera o negrismo, a cor da pele pouco importa, a não ser para manter as pessoas divididas. No Brasil contemporâneo, brancos e pretos são descartáveis. A oposição de raças só se mantém por propósitos políticos. Manter a desconfiança, a suspeita, entre os que não contam, mantém o controle da economia, a concentração dos recursos naturais, dos bens materiais e a fruição dos bens culturais entre poucos. Entre nós, o racismo não é apenas estrutural, ele se mantém como estratégia do negrismo, do descarte de pessoas das decisões políticas e de acesso e fruição aos bens materiais e culturais produzidos.

Contra o negrismo, dá-se a Negritude. Negritude é oposição ao negrismo. É um ato de consciência, de resistência, de luta, de proposição de um outro modelo de co-vivência entre as pessoas: comunitária, solidaria, inclusiva, de partilha. A consciência negra assume que nossa sociedade tende a despersonalizar, a desumanizar, a coisificar o outro em nome do “mercado”, fundado numa economia predatória e políticas que não visam apenas o desmonte do Estado, mas, sobretudo, a manutenção do mandonismo, da subalternização, da despolitização das camadas populares, mantendo-as privadas dos bens econômicos, materiais e culturais que elas produzem, dividindo-as por polêmicas e conflitos genéricos e alienantes.

Instrumento da negritude, a consciência negra estende seu olhar e percebe que não apenas as pretas e os pretos são desqualificados, destratados, tornados inumanos. O negrismo não é uma questão de raça ou de cor de pele, é de quem consome os bens materiais e cultuais produzidos, e de quem, deles, recebe apenas migalhas ou nada recebe.

Se a negretização, o tornar menos as pessoas, se dá numa relação de desigualdade em que a pessoa é precarizada ao ponto de submeter-se às imposições dos operadores do “mercado” e aos interesses dos “senhores” do mundo, essa forma de evadir a pessoa de sua humanidade plena encontra na Negritude seu contraponto e resistência.

As mulheres pretas, os homens pretos, ainda são os que mais sentem na pele os efeitos do ser tornado menos, na sociedade de consumo, que lhes consome também a vida pouco usufruída. Mas não são mais apenas os mais pretos, as mais pretas que sofrem o ser tornado um que não conta. Todo brasileiro, toda brasileira em condições de precariedade e carência do necessário à própria existência é negro, é negra; a sombra do negrismo as atinge.

O mundo dos negros é o mundo dos que não contam. Assumir tal realidade, se insurgir contra ela, é Negritude. Não basta saber-se negro, é preciso combater o negrismo, os mecanismos e as estruturas de desumanização. É este o papel da Consciência Negra.