domingo, julho 04, 2021

OS CORPOS DE SÃO BENTO

 

Na última década, Descompasso, em um de seus sábados de julho, tem amanhecido com um mistério: o aparecimento, em seus arredores, de corpo jovem, masculino, decapitado e amputado.  Já apareceu corpo no coreto da praça, no pátio de entrada da prefeitura, no altar da Igreja Matriz, no estacionamento da Câmara de vereadores. E nunca se chegou a identificar as vítimas. Fora esse evento, Descompasso é uma cidade bucólica durante todo o ano. Há queixas de roubo de galinha, de porcos, roupas do varal. Há chamados para apartar brigas de vizinhos, marido e mulher. Mas chega julho e sobre a cidade cai um misto de suspeita, temor, curiosidade. Nos últimos quatro anos, eu respondo pela investigação deste escabroso caso, batizado: “Caso dos Corpos de São Bento”.  São Bento é padroeiro de Descompasso e um dos corpos apareceu no dia de sua festa. Já os burburinhos tomam conta dos munícipes, e o delegado já está me açodando por um resultado positivo.  Hoje uma conversa em casa de minha mãe, surgiu um comentário sobre as floreiras de seu Alfrânio. Comentou uma minha irmã: “para os próximos dias teremos floreira nova no jardim do ranzinza.” “Como uma pessoa tão mau humorada tem mãos de fadas. Tudo o que ele toca flori e frutifica”. Se Alfrânio, de fato, era um exímio jardineiro. Seus serviços eram requisitadíssimo e seu jardim particular um cartão postal. Como logo passamos a outro assunto, mãe já falava de tia, de suas “invencionices”, o comentário de minha irmã passou ao largo. Mas, deixando a casa de mãe, por algum motivo, tomei a rua Guimarães Cortez que me fez passar em frente à casa de seu Alfrânio, atraindo meu olhar para seu jardim. Nunca havia me dado conta dos enormes vasos de cimento, cerca de um 50 cm de altura, com 50 cm de diâmetro de abertura e 30, 35 cm de diâmetro de base.  Um conjunto de doze vasos com pés de abacate, laranja, manga, maçã, rodeados de gerânios das mais diversas cores.   Ao redor floriam tulipas e azaleias também de variadas cores. A disposição dos vasos e os arranjos florais testemunhavam a maestria de seu Alfrânio. Por mero impulso, confesso, parei o carro, desci e me dirigi em direção ao jardim e casa de seu Alfrânio. É preciso dizer que de seu Alfrânio pouco se sabia. Era um sujeito reservado. Um solteirão pouco amigável. Dizem que no passado ele dividia a casa com um companheiro, mas este, devido seu temperamento o teria abandonado.  Desde então, “tinha atenção apenas para suas plantas”, comentavam. Bati à sua porta, sem estar certo do que fazia ali. Não houve resposta. Percebi, então, a ausência de sua camionete, intuindo que não se encontrava. Veio-me a ideia de verificar os fundos da casa. Encontrei apenas instrumentos de jardinagem, o vaso que minha irmã fizera referência, algumas mudas e sacos de terra. É, eu tinha imaginado coisa. Já retornava para o meu carro, quando Alfrânio estacionou a camionete, desceu, abriu o porta da garagem, guardou a camionete e dirigiu-se, em minha direção, para os fundos,  trazia consigo um saco de ráfia todo ensanguentado. Vendo-me, Alfrânio assustou-se de tal modo que congelou-se, largando súbito o saco. Do saco rolou a cabeça de cabeleira loura. O corpo, ainda com as mãos, era na camionete.  Alfrânio mantém-se catatônico.   Descompasso terá um julho sem mistério.

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