domingo, julho 22, 2018

A CASA VERDE DA RUA TANGARÁ



Para Maria Fernanda, Laura, Victor e Tales

Já quase chegando à pousada, notamos a casa verde da Rua Tangará. Chamei a atenção das crianças, de minha companheira e sua mãe para seu aspecto arquitetônico que destoava das demais edificações do local. A preocupação em chegar à pousada e se desfazer das malas e do cansaço da longa viagem fez com que as crianças e as mulheres desdenhassem minha observação.  Uma vez aliviados das bagagens e do cansaço, após um banho relaxante, uma refeição restauradora e um merecido repouso, programamos nosso roteiro de exploração da cidade indicando os pontos de interesses de uns e de outros. As crianças queriam o mar, a companheira as trilhas, eu a cidade antiga. E foi na volta de um de nossos passeios do dia seguinte que o um dos meninos notou: “só um cego não perceberia que esta casa esta fora de lugar, ela não combina nada com as casas locais, ficaria bem na cidade antiga”. “No entanto”, comentou uma das meninas, ela está melhor conservada que as demais casas, algumas, aliás, parecem abandonadas”.  O que chamou-nos, porém, mais atenção foi algo que na primeira noite, devido o cansaço da viagem, não pudemos perceber: o latido de um cachorro misturando-se ao som lacônico de um violino. Fazíamos relatos de nosso primeiro dia de excursão, havíamos feito um passeio de escuna visitando algumas ilhas locais, as crianças puderam mergulhar em uma praia paradisíaca, as mulheres caminharam se maravilharam com a paisagem, eu aproveitei para fazer alguns ensaios fotográficos. Então conversávamos animadamente, o mais novo cochilava, uma das meninas agarrou-se ao celular como quem perdendo o ar agarra-se à máscara de oxigênio, quando os latidos e o som de violino invadiu a noite e a acompanhou por longo tempo. Na manhã, enquanto tomávamos café e organizávamos a jornada, faríamos uma trilha de pouco mais de três quilômetros para encontrar uma praia paradisíaca, o senhorio nos cumprimentou, desejando-nos uma boa jornada. Aproveitei para indagar-lhe sobre o som de violino. “Ahh”, respondeu-nos, “vocês também ouviram o lamento do velho Eurípides!” E narrou-nos a seguinte história. “Eurípedes é um antigo morador do Caboré, nasceu aqui dizem os mais velhos. Morava na casa verde, vocês a devem ter notado, vivia só com um cão guia. Era professor de música. Dizem que perdera a visão durante uma sessão de tortura nos anos de chumbo, foi quando perdeu a esposa e o filho que estava para nascer. Foram presos durante uma manifestação de caiçaras. Ele foi encontrado nu, pintado de vermelho e cego. Da esposa, do filho, nunca mais se soube. Desde aquela época ele costumava, nos fins de noite tocar esta sonata. Dizem ser de um tal Stravinsky, e chamar-se Requiem Canticles. Mas eu digo costumava, porque, há três ou quatro anos, vieram umas pessoas ai visitá-lo, diziam ter noticias de sua esposa e do filho. Depois disto, não o vimos mais. O fato é que, desde então, um ou outro turista, como vocês, relatam ouvir o cão guia e a sonata, mas, desde que o levaram, a casa verde está vazia...” Observei ao senhoril o mesmo que uma das meninas havia observado: “a casa parece-me melhor conservada que as ao seu redor, que parecem, estas sim, abandonadas”. “Este é outro mistério que envolve esta casa e o velho Eurípedes”, respondeu-me o senhoril, desejando-nos novamente um bom passeio: “aproveitem o passeio, o dia está formidável!”.  Foi uma aventura por dentro da serra, um percurso de três quilômetros, um caminho de mata fechada, uma trilha íngreme e tortuosa, uma praia, um mar, recompensadores. Voltamos extenuados, mas plenos. As crianças, mal comeram, tombaram. Eu também, deixando as mulheres acompanhando o telejornal local, caí logo no sono. A certa altura, porém, os latidos e os sons do violino de Eurípedes invadiram nosso aposento despertando-me. Levantei-me, sem despertar a companheira, verifiquei as crianças também em profundo sono, assim como a mãe de minha companheira, e decidi ir ter com o velho professor. Deixei a pousada, era por volta de duas da manhã, e dirigi-me à casa verde. Toquei a campainha, uma sombra aproximou-se da janela e fez gesto para eu entrar. O portão destravou-se e a porta era já aberta. Entrei... Ainda estou atônito: a ossada do cão guia ao lado do esqueleto do músico segurando o violino em posição de quem o está tocando, ainda estão impresso em minha retina. A polícia local abriu inquérito para saber as circunstâncias e causa da morte do velho Eurípedes. “Pensávamos que ele havia partido com os que vieram visitá-lo anos atrás”, comentou o senhoril da pousada, quando acertamos a conta de nossa estadia.

quinta-feira, julho 12, 2018

Eu quero me encantar com a política

Com o passar dos anos, com as experiências de vida, os estudos, os conhecimentos adquiridos, as relações constituídas, deveríamos ir perdendo a ingenuidade, tornando-nos mais capazes de compreender os fatos e acontecimentos, tomar diante deles posições críticas e criteriosas. Mas com a perda da ingenuidade, não podemos deixar de manter a capacidade de encantamento, de se surpreender, de dar espaço à espontaneidade e o inusitado. A falta de encantamento, de abertura ao inusitado, ao espontâneo, ao que não precisa de explicação apenas de fruição, não nos torna menos ingênuos, nos torna ou deterministas ou fatalistas ou indiferentes: nada nos surpreende, nada nos interessa, tudo é assim mesmo. Provoca, também, frustrações, rancores, amarguras. O Face tem se tornado um espaço para nossas amarguras, nossas frustrações e rancores. Tenho acompanhado grupos e amigos que empenham suas capacidades de analise críticas não para estabelecer um debate que nos abra a novas possibilidades, mas apenas para destilar ressentimentos e rancores. A política, meus amigos, deveria ser a arte de construir espaços de convivência onde singularidades, e não vaidades, dão razão de ser ao mundo. Tudo é política, mas o tudo não é totalidade, essa brecha que me permite saborear um sorvete com meus filhos, sem estar lhes parlamentando o quanto de vidas exploradas tem nele. E vendo meus meninos correndo atrás de uma bola me pergunto: “quem não sonhou ser um jogador de futebol?” (Skank). Assim, embora eivada de política “é emocionante um partida de futebol”. Sem ingenuidade eu entendo as implicações políticas e econômicas que envolvem uma partida de futebol, mas agora eu quero apenas me encantar com uma bela partida de futebol. Não curte futebol, tudo bem, vá ao teatro, ao cinema, leia um livro, ouça música, transe. Mas vá desarmado, a política se imiscui ai também. Eu quero e luto por um país outro, mas agora eu quero apenas me encantar. Não foi desta vez, será no Qatar!