sexta-feira, maio 19, 2017

DEZENOVE


“Eu sou de uma tradição que celebra o dia de morte do individuo, quando se pode narrar o que foi sua fugaz aventura na existência, se se tornou exemplar, merecedor de ser narrado ou esquecido por seus feitos. À vida, à existência, se sobrepõe a História. E a História é produto de nossas sandices. Só os loucos têm suas histórias contadas.” (Euripedes dos Santos)

 

Era um maio noturno, frio, chuvoso. Um maio de chumbo. O ano 1968. As entranhas da mãe, cumprindo o ciclo biológico, lutava para o expulsar do útero que até então o acolhia. A mãe, entre apreensões, incertezas, receios – o momento não era para ter mais um filho – sofrendo dores da luta, seguia os incentivos da parteira e das mulheres que a auxiliavam, e forçava o expelir do ansiado rebento. A luta era dele contra as forças que o expeliam. Ele queria não nascer, queria não entrar no mundo, não ter que assumir a existência. Sabia ser o útero o seu lugar. Venceu a natureza e viu-se jogado ao colo da mãe, adoentado de morte. Era frágil o fio que o ligava a vida. “Não vingaria!” ouviu com contentamento. Não teve tempo de alimentar-se da mãe apreensiva. Embrulharam-no em panos e correram com ele ao hospital. Incubaram-no por dias. A técnica venceu o seu não querer ser e, mirrado e incerto, vingou. Pegou gosto pela incerteza de uma existência longa, apegou-se ao que é mórbido, ao lúgubre. Em nada se mantém, deriva como barca sem leme.  Nutre o não ser: “o ser é ilusão e faina”. Tudo lhe é vão, sem sentido. Lamenta as pessoas apegadas a alcançarem um lugar fugaz num mundo. Quanta labuta por conquistas não fruídas, porque tênues e ilusórias. Não tem apego ao mundo sempre em desordem, sempre ruindo. São-lhe como resquícios de sol entre outono e inverno os avanços que a humanidade alcança. É tudo sempre destempero e tempestade. Os que riem, riem sobre cadáveres. Existir é-lhe um fardo. “Nunca esforçou-se pela vida, por esse mundo, por ser”, sua epigrafe. Em todas as suas lutas é vencido... Era um dezenove quando saltou cumprindo-se.