sexta-feira, dezembro 06, 2024

UM CORPO NEGRO

 



Em Aqui Próximo, cidade deveras estupefaciente, a secretaria de segurança, para melhorar a eficiência da corporação militar, incluiu na formação dos cadetes a disciplina de artes, que ficou sob responsabilidade de um renomado coronel: Benedito di Forlì.

Em aula inaugural à seleta platéia, Forlì exaltou o papel das artes na formação humana, ressaltando que a arte capacita o homem para melhor compreender a realidade e nela intervir. “De tal modo”, argüiu o competente mestre, “a arte pode, sem sombras de dúvida, muito contribuir na formação militar.”

Forlì, então, teorizou: “um militar com maior sensibilidade artística, saberá como melhor agir no seu cotidiano conflituoso.” Então Forlì explanou: “a cor é tonal segundo a incidência de luz. A luz não apenas ilumina os olhos, ela tranqüiliza, dá segurança, conforta. A ausência de luz conturba, desestabiliza, ameaça. Assim, tons claros são tons cheios de luz e irradiam harmonia, beleza, benevolência, gratidão. A ausência de luz carrega a cor de algo sombrio, agressivo, pervertido... Estas nuances da arte nos ajudam a compreender a ação militar. Como o artistas precisa saber, compondo sua obra, manipular as cores e seus tons, o militar precisa saber atuar nas diversas nuances de tons e cores no seu dia-a-dia. Forlì apresentou, então, à seleta classe duas obras de arte, produzidas por militares. “Temos aqui, senhores, duas obras que muito contribuem em nossa reflexão. A primeira intitula-se ‘Passeio pelo Jardins’. Percebam senhores, como o artista trabalha com delicadeza, o arranjo de cores em tons claros, suaves, iluminados, despertam segurança. É uma obra que suscita uma certa reverência. Contemplando este ponto, onde o branco é de uma luminosidade impar, nos vem de curvar-se e pedir perdão. Esta outra obra, pelo contrário, veja como ela agride os olhos, seus tons carregados, sombrios, agridem e desestabilizam. Diante desta tela, principalmente onde o preto é retinto, a sensação de ameaça é tal, que nos vem de sacar a arma e descarregá-la, em legítima defesa.” O silêncio estarrecedor foi rompido com a pergunta de um cadete selecionado para participar do prestigiado evento: “Senhor, esta segunda obra, qual o titulo dela?” “Um corpo negro!”, respondeu o comandante, sob efusivos aplausos.

Presente à apresentação, O governador agradeceu Forlì pela magistral lição e pronunciou: “Senhores, se a arte está presente em toda e qualquer atividade humana, se ela é uma prática que acompanha o sujeito e o modela, ela já está presente na formação de nossos militares e os subordinam às características dos locais onde atuam. Sendo assim, agradeço ao coronel Forlì e o dispenso da tarefa a ele atribuída, pois revogo a inclusão de sua disciplina na formação militar, por considerá-la desnecessária a nossos policiais. Um ou outro, é certo, erra o tom, conturbando os passeios nos Jardins. Mas o erro, como a arte é presente em toda atividade humana. ‘Um Corpo Negro”, estes onze furos na tela, é uma obra de arte!”.

UM CORPO NEGRO

 



Em Aqui Próximo, cidade deveras estupefaciente, a secretaria de segurança, para melhorar a eficiência da corporação militar, incluiu na formação dos cadetes a disciplina de artes, que ficou sob responsabilidade de um renomado coronel: Benedito di Forlì.

Em aula inaugural à seleta platéia, Forlì exaltou o papel das artes na formação humana, ressaltando que a arte capacita o homem para melhor compreender a realidade e nela intervir. “De tal modo”, argüiu o competente mestre, “a arte pode, sem sombras de dúvida, muito contribuir na formação militar.”

Forlì, então, teorizou: “um militar com maior sensibilidade artística, saberá como melhor agir no seu cotidiano conflituoso.” Então Forlì explanou: “a cor é tonal segundo a incidência de luz. A luz não apenas ilumina os olhos, ela tranqüiliza, dá segurança, conforta. A ausência de luz conturba, desestabiliza, ameaça. Assim, tons claros são tons cheios de luz e irradiam harmonia, beleza, benevolência, gratidão. A ausência de luz carrega a cor de algo sombrio, agressivo, pervertido... Estas nuances da arte nos ajudam a compreender a ação militar. Como o artistas precisa saber, compondo sua obra, manipular as cores e seus tons, o militar precisa saber atuar nas diversas nuances de tons e cores no seu dia-a-dia. Forlì apresentou, então, à seleta classe duas obras de arte, produzidas por militares. “Temos aqui, senhores, duas obras que muito contribuem em nossa reflexão. A primeira intitula-se ‘Passeio pelo Jardins’. Percebam senhores, como o artista trabalha com delicadeza, o arranjo de cores em tons claros, suaves, iluminados, despertam segurança. É uma obra que suscita uma certa reverência. Contemplando este ponto, onde o branco é de uma luminosidade impar, nos vem de curvar-se e pedir perdão. Esta outra obra, pelo contrário, veja como ela agride os olhos, seus tons carregados, sombrios, agridem e desestabilizam. Diante desta tela, principalmente onde o preto é retinto, a sensação de ameaça é tal, que nos vem de sacar a arma e descarregá-la, em legítima defesa.” O silêncio estarrecedor foi rompido com a pergunta de um cadete selecionado para participar do prestigiado evento: “Senhor, esta segunda obra, qual o titulo dela?” “Um corpo negro!”, respondeu o comandante, sob efusivos aplausos.

Presente à apresentação, O governador agradeceu Forlì pela magistral lição e pronunciou: “Senhores, se a arte está presente em toda e qualquer atividade humana, se ela é uma prática que acompanha o sujeito e o modela, ela já está presente na formação de nossos militares e os subordinam às características dos locais onde atuam. Sendo assim, agradeço ao coronel Forlì e o dispenso da tarefa a ele atribuída, pois revogo a inclusão de sua disciplina na formação militar, por considerá-la desnecessária a nossos policiais. Um ou outro, é certo, erra o tom, conturbando os passeios nos Jardins. Mas o erro, como a arte é presente em toda atividade humana. ‘Um Corpo Negro”, estes onze furos na tela, é uma obra de arte!”.

segunda-feira, junho 10, 2024

DE QUANTOS INSTANTES SE COMPÕE UMA HISTÓRIA?

 


Para Padre Carmine Mosca em ocasião de seus cinqüenta anos de sacerdócio.

 

As horas se compõem de minutos, os minutos de segundos. O instante não, instante não se mede com o tempo. A categoria que mede os instantes é o afeto.

E a História não se compõe de horas, dias, meses, anos ou séculos. Não, a história se compõe de instantes. E cinqüenta anos é um instante de instantes. Instantes de afetos que ficam como cicatrizes e nos torna quem somos. São os afetos marcados em nós que nos personaliza. Assim são muitos os instantes que nos compõe: a mão calejada de nosso pai cariciando a barriga de nossa mãe em que ainda estamos por vir-a-ser; o olhar materno da mãe, marejado de alegrias e expectativas, a nos dar de si em seus seios; as festas pelos primeiros passos, pelas primeiras palavras, pela queda do primeiro dente. O primeiro dia de escola, o encantamento pela professora, os primeiros amiguinhos, o primeiro sorriso de um amor não confessado. O batismo, a primeira comunhão, o crisma, a decisão vocacional. As amizades que vão se consolidando, os desafios que vamos superando, as perdas, as conquistas, os encontros memoráveis, as despedidas. Cada instante rememorado é uma composição de afetos, que entre tantos instantes fugazes, nos coloriu nossa existência. Uns se formaram ao longo de anos, outros no passar de horas, mas todos se entrelaçam e formam o nó impossível de se desfazer e nos torna o que somos. Nossa história não se conta em anos, se conta em instantes, em afetos. A memória não recorda acontecimentos, a memória é composta de sentimentos, de afetos.  

Ao celebrar seus cinqüenta anos de sacerdócio, Padre Carmine Mosca deu-nos esta lição: “Somos um instante de instantes em que nos assombramos com o bem que podemos fazer e nos horrorizamos com os tantos males que produzimos”. Eu não sei dizer de males que Padre Carmine possa ter produzido, desde o instante que o conheci, sua presença é um bem cicatrizado em mim.

segunda-feira, abril 29, 2024

MARCO SENNA

 

Que é, pois o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pede, não sei. Agostinho de Hipona


O que diz Agostinho de Hipona acerca do tempo, se pode dizer da amizade. Se ninguém me pergunta, sou capaz de produzir um tratado. Se me questionam, no entanto, faltam-me palavras. Então, recorro a Cícero que dizia preferir um amigo a todos os bens da terra, ou a Aristóteles que ensinava: “a verdadeira amizade se dá onde não há outro interesse que o bem do amigo.” E o bom amigo, segundo Aristóteles, é uma pessoa ética, justa, cortês e coerente em suas condutas. Estas qualidades não faltam ao meu amigo. E, aquilo que na tradição cristã chamamos anjo protetor, é, em nosso dia a dia, a presença de um amigo. Mas com palavras que não preenchem todo o sentido de uma amizade: ter um amigo é ter um dom imerecido. E eu recebi esta graça. Meu amigo é de uma humanidade que poucos atingem. Ele é como um bom vinho: fica melhor com o passar do tempo.


sábado, abril 27, 2024

CAPITÃES DO MATO

 



Em Bananópolis não se fala de outra coisa: Tio Paulo e o Playboy do Porsche. E na lanchonete próxima ao Centro de Estudos Sociais o assunto está na mesa.  Ataíde Leonel, aluno do 3º semestre do curso de Ciências do Comportamento Social, entre um pedido e outro, acompanha as conjecturas do grupo de professores da mesa 10.   Um lembra Machado de Assis que dizia de dois brasis: “um oficial, outro real”. Um outro corrobora a ideia, citando Euclides da Cunha. Um terceiro especula: “Tio Paulo e Playboy do Porsche ilustram estes brasis”, e emenda: “De um lado, um Brasil explorado por uma casta econômica, resquício do escravismo, concentradora de nossas riquezas, que submete a política a seus interesses. Uma elite inculta, mas esnobe. Do outro, brasileiros pobres, que vivem em condições precárias, sendo explorados e tratados como gentalha.” No ir e vir de uma mesa a outra, Ataíde Leonel, vai pescando o possível daquilo que os doutores comentam. “Garçom!”, alguém grita: “Traz mais uma e coloca na conta do Tio Paulo!” Risos tomam conta do ambiente. “Já Joaquim Nabuco dizia”, toma a palavra uma professora, “que a escravidão permaneceria por muito tempo uma característica do Brasil, pois nos é transmitida no leite materno.” Ataíde pensou pedir a palavra, mas engoliu o que tinha a dizer: “quem era ele, diante dos ilustres acadêmicos?” Depois, alguém o exigia na mesa 6. “No Brasil toda riqueza é fruto de roubo e quanto mais sangue um tem nas mãos, mais nobre pretende ser”, ensaia um dos acadêmicos.  A noite avança, e o debate na mesa 10, regado a cervejas e porções de fritas e torresmos, desfila teses e teóricos de nossas “estruturas escravagistas”.  Servindo uma mesa aqui, outra ali, Ataíde pesca o que pode das etílicas elucubrações acadêmicas e formula para si mesmo as suas, anotando o que consegue no verso de uma comanda. “Chegando em casa as sistematizo”, pensava consigo. Um chiste de uma professora principia uma confusão entre os acadêmicos da mesa 10 e dois clientes da mesa 8. O rapaz da oito exige que a professora se desculpe, sua “galhofa” o ofende. É que a erudita, dizia que nossas forças militares são patrimonialistas, “não foram constituídas para proteger a coletividade, mas para proteger as elites econômicas e seus bens”. Ilustrando o arrazoado, ela, ébria e irônica, elucubra: “Nas áreas nobres, são cachorrinhos de madame, cheios de comissuras (aqui ela faz uns gracejos de corpo), nas periferias, como pitbulls vorazes (novamente, gestos que ampliam a fala), sente-se no direito de julgar, condenar, humilhar e executar  corpos pobres”. O rapaz era militar. Estava de folga. Não gostou da comparação, não gostou, principalmente, do gestual acompanhado a fala da professora. Depois: “Não era hora mais de vadia doutrinadora estar na rua”. “Pelo contrário, meu amigo”, reage a professora, “a hora, está hora, é a hora das vadias!” O acento ébrio-anasalado de suas palavras gera risos ante a tensão presente. O rapaz sente-se afrontado, saca a arma, dispara...  Ataíde tomou a frente da professora... O comando militar emitiu nota lamentando profundamente a perda de uma vida e manifestou sentimentos de consternação à família enlutada. Informou, ainda, que um Inquérito Policial Militar foi instaurado para melhor apurar os fatos, a fim de que não sejam feitas conclusões precipitadas e sejam observados todos os direitos e garantias constitucionais do militar, que já se encontra em atividades administrativas. Por fim, reforçou o “compromisso da Brigada com o respeito aos direitos humanos e à dignidade das pessoas em todas as nossas atividades, e reitera que não tolera qualquer tipo de violência ou abuso em suas tropas." Um jornal local publicou matéria sobre Ataíde Leonel, 37 anos, estudante universitário, que, para manter os estudos, prestava serviços de garçom. Deixa esposa e um filho por nascer. Encerrando a matéria, o jornal publicou as anotações de Ataíde: “as minorias não são reconhecidas como sujeito, a cidadania a elas garantida é apenas formal. Os pobres e periféricos, na concepção das elites, são descartáveis, constituem uma ameaça aos seus interesses” (Professor Miguel). “É sempre um fato isolado a cotidiana violência policial contra pobres, trabalhadores, desempregados, sem-terras, moradores de rua, os que não contam por seu CEP e ou cor de pele” (Professora Stella). Das anotações de Ataíde: “Capitães do mato vestem farda”, dá título à matéria. Uma associação de vigilantes noturnos (cabe notar que dita associação está sob investigação, por fazer uso de policiais em folga para oferecer proteção ao comércio local) está com uma ação contra o jornal. O termo “capitães do mato”, defende, “fere a dignidade de nossos associados.” Conhecendo Bananópolis, um amigo me confidencia: “Em breve, haveremos de assistir moção de aplausos na tribuna ao jovem policial.” Em Bananópolis, nada de novo acontece.